ANTÓNIO JOAQUIM VISEU:
UMA HISTÓRIA COM 100 ANOS
Quando uma associação ou qualquer
outra entidade comemora cem anos da sua fundação, a efeméride é, justamente,
motivo de referência. Todavia, quando é um cidadão a atingir essa bonita e
provecta idade, tal acontecimento ainda mais justificadamente merece um
destaque muito especial.
No Abrigo festejou-se no passado
dia 14 de Fevereiro o aniversário do nosso utente Sr. ANTÓNIO JOAQUIM VISEU, que nessa data entrou no privilegiado e
restrito número dos centenários, facto que, mesmo não sendo inédito nesta
Instituição, legitima uma natural alegria entre todos os dirigentes, colaboradores
e colegas.
Fomos falar com o aniversariante
que, já viúvo, entrou para o Abrigo em Julho de 2000. Tentámos recolher algumas
recordações de quem teria muito para contar. Como nos confessou, a sua memória
já não é o que era e em termos de saúde queixa-se, sobretudo, da falta de vista
e de um zumbido constante nos ouvidos que o incomoda e ensurdece.
Uma infância de pobreza
Mas vamos ouvi-lo: “Nasci no dia 14 de Fevereiro de 1913 no
Monte da Amoreirinha, perto de Santa Sofia, filho de Manuel Viseu e de Jacinta
Maria. Éramos extremamente pobres e passámos muita miséria. A nossa infância, a
minha, a dos meus três irmãos e a de uma irmã, foi penosa. O meu pai foi sempre
trabalhador rural e não ganhava o suficiente para alimentar a família. Nenhum
de nós andou à escola. O meu pai, que chegou a frequentar o Seminário, sabia
ler e escrever muito bem, mas nunca nos ensinou nada do que sabia. Todo o seu
tempo era pouco para arranjar comida o que nem sempre conseguia. Tinhamos falta
de tudo, desde a comida às roupas. Ainda muito jovem, fui muitas vezes de monte
em monte a pedir que nos dessem um pedaço de pão.”
Desses tempos não guarda gratas
recordações: “Comecei muito cedo a
guardar gado e, com o decorrer dos anos, fui conhecendo praticamente todos os
trabalhos agrícolas. A primeira vez que vim à Vila já teria mais de dez anos e,
tanto nessa vez como nas seguintes, deslocava-me a pé e descalço, porque botas
era um luxo a que não podíamos aspirar. Vinha normalmente encarregado de fazer
uns mandados para a minha mãe, mas o objectivo principal era o de, pelo
caminho, visitar algumas pessoas amigas na esperança de que nos dessem qualquer
coisita. Chegado à então vila, aproveitava para ver coisas que nem sequer
suspeitava existirem, tão longe nós vivíamos do chamado progresso. Mais ou
menos por essa altura, talvez com 8 ou 9 anos, uma senhora que possuia uma
grande quantidade de perus foi falar com a minha mãe propondo que eu fosse para
lá guardá-los. Ganhava as refeições e se havia mais algum pagamento em dinheiro
não sei, porque nunca cheguei a ver nenhum. Um dia apareceu um peru morto e
culparam-me a mim, ainda que injustamente. Não me bateram, mas despediram-me.”
Como recordação mais antiga, tem
uma vaga ideia de ouvir falar da 1ª Grande Guerra (1914/1918), mas era muito
novo e viviam muito isolados dos locais onde se poderia falar desse assunto,
pelo que não ligou muito a isso.
A vida prosseguiu
Vamos dar um salto no tempo e
encontrar o nosso amigo Viseu já a preparar-se para juntar os trapinhos com a
sua conversada: “Aos 23 anos casei-me
com Augusta Rosalina Coelho, já falecida há 14 anos, e fui morar para o Monte
da Azinheira, perto de Patalim e Monte da Crasta, no Alto da Abaneja. Só depois
nos deslocámos para Santa Sofia. Vivi sempre por aqueles lados.” E recorda
pormenores do casamento: “Quando
resolvemos juntar-nos, a Augusta já estava grávida. Então, como a minha patroa
– Maria Inácia Soares – não permitia que os seus trabalhadores vivessem
amigados, como então se dizia, lá fomos, transportados num churrião, casar a S.
Sebastião da Giesteira. Quem presidiu ao acto foi um fulano de nome António
Caixeiro, que provavelmente seria um funcionário do Registo Civil. Por essa
altura já eu tinha o estatuto de carreiro, trabalhando com uma parelha.”
As 100 velas
Como é frequente, nem sempre as
pessoas são mais conhecidas pelo seu apelido de baptismo. O Sr. ANTÓNIO JOAQUIM
VISEU não fugiu à regra: “É verdade. A
partir de certa altura também começaram a chamar-me “Almodôvar”, por causa do
meu pai ser tratado por “Tio Almodôvar” devido ao facto da sua família ser
natural daquela localidade alentejana.”
No dia em que celebrou os cem
anos, rodeado de tanta gente amiga, o Sr. Viseu “saiu-se” ao almoço com estas
quadras:
Tenho uma família
pequena,
Tenho
dois filhos e quatro netos,
Tenho
uma nora, sou bisavô
E
recebo muitos afectos !
As
minhas primeiras palavras
Vão
p’ra esta Instituição,
Agradeço
às empregadas
E
também à Direcção !
Aos
utentes deste Lar
Eu
dedico o meu carinho.
Estamos
todos aqui à espera
P’ra
andar o mesmo caminho !
Porque ficámos a saber, durante a nossa conversa, que tinha jeito para versos, desafiámos o Sr. Viseu a dizer-nos outros. Apelando à memória, lá nos foi ditando:
Sei muito e não sei nada,
Tudo
quanto sei nada vale
Sei
que vivo até morrer
Sei
que não curo o meu mal.
Sei
que tenho de trabalhar
Isso
já há muito que eu sei
Sei
o tempo que já passei
Não
sei o que terei de passar.
Sei
que tenho voltas a dar
Sei
que morro não tarda nada
Sei
que a vida é desgraçada
E
quem trabalha sei eu
E
tudo quanto sei é meu.
Sei
muito e não sei nada !
E com estas palavras, que
encerram pensamentos muitos íntimos e profundos, despedimo-nos do Sr. António
Viseu com um obrigado pela paciência com que nos aturou, com os votos de saúde
e os desejos de que possamos voltar a falar e a ouvir novos versos no seu 101º
aniversário.