MARIA JOAQUINA COUVEIRO
Se
quiséssemos encontrar um exemplo de entrega voluntária aos outros, a nossa
entrevistada deste mês poderia servir perfeitamente para tal fim.
Vamos
ouvir então, em poucas palavras, a sua história de vida:
“Tenho 80 anos e nasci algures, no campo, num
monte cujo nome desconheço porque a minha mãe nunca me disse nem eu tive
curiosidade em saber. Tenho apenas, como recordação mais distante, residir no
monte do Curral da Légua, ali à esquerda da estrada para Évora. Ainda andei à Escola,
teria eu os meus oito anos, na Amoreira da Torre. Mas só fiz a primeira
classe.”
Mas
porquê? quisemos saber:
“Por essa altura apareceu-me um abcesso no
artelho da perna direita. O meu pai levou-me ao médico, que me lancetou mas não
fiquei curada. Iam sempre surgindo novas feridas na perna, que se estendiam até
quase ao joelho. Porque as dores me impediam de andar, e não tinhamos qualquer
meio de transporte, tive de abandonar a escola. Mais tarde, teria eu uns doze
anos, o meu pai levou-me ao hospital de Évora, onde o médico nos disse que só
uma operação poderia resolver o problema. O meu pai não quis. Dizia ele que com
banhos de sol e muito óleo de fígado de bacalhau eu ficaria curada.”
E
ficou ?
“Claro que não. Passado um ano, quando já
morava no Monte da Relva, e porque não se vissem melhoras algumas, o meu pai
resolveu vir a Montemor consultar o Dr. Vicente Silva. Quando viu aquele quadro,
o médico disse-lhe que eu tinha de ser imediatamente internada aqui no Hospital
de Santo André para ser operada. O meu pai, então, não teve outro remédio se
não o de concordar. E passado um mês estava a ser operada pelo Dr. Silva Araújo
(pai). Ainda estive internada mais uns cinco meses. Quando saí, quase que tive
de reaprender a andar, o que aconteceu já aos catorze anos com a ajuda da minha
mãe.”
Com
dezasseis anos começou a trabalhar nas duras tarefas agrícolas e a escola foi
sonho que há muito estava desfeito.
“Morávamos então perto das Artozinhas, ali
para os lados da Ponte da Laje. Como tinhamos uma família numerosa, porque para
além dos meus pais, éramos 6 filhos, 4 rapazes e 2 raparigas, havia que
contribuir para o orçamento familiar.”
E
por esta altura não surgiu o normal namorico ? Por que se manteve solteira até
hoje ?
“Foram as circunstâncias da vida. Realmente,
quando tinha os meus dezasseis ou dezassete anos, ainda namorei, mas as coisas
não correram bem. Ele namorava com outra rapariga e foi com ela que acabou por
casar. E eu nunca mais quis namoros, com receio de vir a passar por idêntico
desgosto.”
Entretanto,
os anos foram passando e …
“Três dos meus irmãos e a minha irmã foram
casando e tempo depois o meu pai faleceu, pelo que fiquei com a minha mãe e o
meu irmão Franquelim, que também nunca constituíu família. E à medida que o
tempo foi passando, mais necessária eu era em casa, porque a idade da minha mãe
e a doença de que padecia se foi
agravando, confinando-a a uma cadeira de rodas até aos 88 anos, idade em que
faleceu. Para além disso, também o meu irmão Franquelim, que trabalhava na reparação
de estradas, foi forçado a reformar-se aos 59 anos por motivos de doença.
Faleceu com 82 anos. Daqui se percebe que, durante muitos anos, deixei de ter
vida própria para me dedicar exclusivamente a tomar conta da casa e dos dois
enfermos. Mas sentia que era essa a minha obrigação.”
Deve
ter passado por muitas dificuldades, inclusivamente financeiras, no decurso
dessa vida de sacrifício…
“Passei anos muito difíceis, sem me chegar
qualquer espécie de auxílio. Olhe: quando o meu pai morreu, o pouco dinheiro
que tínhamos destinou-se a pagar o funeral. Sem outras ajudas, fui forçada a ir
ter com a Assistente Social para lhe explicar a nossa situação. Deu-me uma
senha para ir fazer um avio na mercearia e uma outra senha para ir ao
estabelecimento do sr. Daniel Passinha (Daniel Lopes Borges) comprar uns
tecidos para fazer roupa com que fizemos o luto. Foi esta a única ajuda que nos
chegou.”
Depois
do falecimento da mãe, mas ainda a tomar conta do irmão, a D. Maria Joaquina
resolveu inscrever-se no Abrigo dos Velhos Trabalhadores.
“Exactamente. Tinha 62 anos quando a minha
candidatura foi aceite e fiquei como utente do “Centro de Dia”, tal como o meu
irmão, visto vivermos juntos. Estivemos nesta situação durante quinze anos, e
entretanto o meu irmão também faleceu. Finalmente, há três anos passei à
condição de residente no Lar, única solução possível para o meu caso.
Enquanto
esperávamos pela D. Maria Joaquina para iniciarmos esta nossa conversa,
verificámos que ela saía do Posto de Enfermagem do Abrigo. Quisemos saber se
estava com algum problema e explicou-nos:
“Há três meses surgiu-me uma outra ferida na
mesma perna e sensivelmente em local próximo da anterior. Quero crer que não
tem nada a ver com o caso que já relatei e que ficou resolvido há mais de
sessenta anos. De qualquer forma, tenho feito pensos dia sim dia não mas a
verdade é que a situação não fica resolvida em definitivo. Por este motivo, já
foi pedida ao hospital de Évora, através das vias competentes, uma cirurgia
para se resolver de vez este problema. Vamos ver quanto tempo terei de
esperar.”
Pois
bem: fazemos votos para que tudo se resolva como deseja e que, finalmente,
possa desfrutar de longos anos em paz e com saúde.