JOAQUIM
ANTÓNIO PINTO
“Na minha mocidade fui muito
namoradeiro”, revela-nos a determinada altura da sua narrativa, com uma
certa nostalgia no olhar, o nosso entrevistado deste mês, facto confirmado pela
sua actual esposa, que assistia à conversa.
Mas comecemos pelo princípio:
“Nasci há 91 anos, mais
precisamente no dia 22 de Setembro de 1923, em Benalfange. Fiquei orfão de mãe
tinha ainda poucos meses e algum tempo depois o meu pai voltou a casar,
curiosamente com uma irmã da minha falecida mãe, que era portanto minha tia e
também minha madrinha. A minha infância repartiu-se entre a casa do meu pai e a
da minha avó. Quando faltavam precisamente quinze dias para fazer 7 anos já o
trabalho me esperava. Abalei do Monte do Espargal, perto dos Foros de Vale
Figueira e fui para uma herdade nos arredores de Montemor, que se chama
Terrinha, guardar umas cabritas e tomar conta de duas burrinhas. Ganhava 5
tostões por dia e de comer. Dormia em cima dumas palhas, dentro da manjedoura,
e tapava-me com o que já tinha sido uma manta e que me haveria de acompanhar
até mais tarde.”
Começou bem cedo a conhecer o
lado duro da vida. E continuou a relatar a sua história longa e bem
movimentada:
“Tinha nove anos, e porque iria
ganhar 10 tostões por dia, e também de comer, fui então guardar cabras na
Fazenda da Brunheira, perto da ermida da Sra. da Visitação.”
E a escola ?
“Isso era coisa que só sabia que
existia por ouvir dizer…”
Depois deste desabafo, continuou:
“Por volta dos meus doze anos
consegui, como ajuda de gado, uma jorna de 3 escudos por dia, secos, portanto
sem direito a alimentação, na herdade da Amendoeira. Dormíamos, tanto eu como o
pastor, num rego, perto de um regato, com juncos como colchão e tapava-me com a
tal manta que me ia resguardando nas minhas andanças.”
Deu por esta altura um “salto na carreira profissional”:
“Com catorze anos fui ´promovido´
a moço da porta, que consistia em ter a responsabilidade de transportar água
para o monte e partir e carregar lenha para a cozinha. Estava na Caravela da
Robusta. Dois ou três anos depois fui trabalhar para o Monte do Sobral, perto
dos Foros do Cortiço, e então já fazia todos os trabalhos agrícolas.”
Como sempre acontece nesta altura das histórias, era chegado o momento dos namoricos. E o amigo Pinto não foi excepção:
“Não fui muito bem sucedido com a
minha primeira namorada. Inicialmente não me aceitou o namoro, porque a mãe
dizia que ainda estava muito nova, mas deve ter começado a pensar bem e,
passado pouco tempo, chegou-se ao pé de mim e disse-me que, afinal, se as
outras namoravam, ela também tinha esse direito. Mas este namoro estava
destinado a não correr bem. Um ano depois um meu vizinho roubou-ma e começou
ele a namorar com a moça. Mas eu vinguei-me. Já andava com ela fisgada e meses
depois fui eu que lha roubei a ele. Mas atenção: mesmo durante estas
peripécias, continuei vizinho do rapaz e a nossa amizade nunca foi abalada.
Curiosamente, esta rapariga acabou por casar mas não foi com nenhum da gente.”
Vamos então entrar num outro capítulo da vida do nosso entrevistado:
“Por esta altura e por estas
bandas, costumava dizer-se que quem sabia tocar concertina equivalia a ter um
burro carregado de ouro, porque se era muito considerado e, portanto, convidado
para tudo o que era festa e funçanada. Então, resolvi comprar esse instrumento.
Fui aprendendo sozinho, de ouvido, e a observar com atenção outros tocadores.
Quando já sabia tocar umas coisas começaram a surgir os convites para ir tocar
aqui e além dentro da nossa zona. Organizavam-se muitos bailaricos e a
juventudae, como não tinha outros divertimentos, juntava-se a bailar onde quer
que fosse.”
E aqui surgiu então a informação que acima já revelámos:
“Em jovem fui muito namoradeiro.
Deixe-me contar-lhe um episódio curioso. Um dia fui a um baile ao Monte das
Hortas, que fica ali perto da estrada que liga Arraiolos a S .Pedro da
Gafanhoeira. Meti-me a caminho, a pé, já se vê, e quando cheguei, como não
conhecia lá ninguém, fui recebido com uma certa desconfiança. Mais tarde, porém,
apareceu um rapaz que me conhecia e me foi apresentando. Divulgou que eu tocava
bem concertina e, como o tocador que lá estava não era assim grande artista, pediram-me
para tocar umas modas. Assim foi e, a partir desse momento, parecia que já
estava em casa. Em determinada altura fui dançar com uma rapariga que me
perguntou por que motivo estava assim acanhado e eu respondi que tinha receio
que, por não me conhecerem, me dessem cabaço. Ela respondeu-me que as raparigas
dali não eram cabaceiras e que, quanto a ela, a poderia ir buscar sempre que
quisesse. Estava o baile armado. A partir dali comecei a dançar com quem
calhava e acabou tudo em beleza.”
Às tantas, quando o baile acabou, foi hora de regressar a casa
“Claro, e a pé, já se vê. No
caminho até inventei a seguinte quadra:
Fui
a um baile ao Monte das Hortas
Estavam
os ganhões à ceia
Logo
por sorte me calhou
Ir
bailar com a mais feia.
Não fui muito feliz na quadra,
porque não correspondia à verdade. As raparigas com quem dancei não eram feias.
Os versos foram feitos ali à pé de chaparro e a palavra feia só aparece porque
não encontrei outra melhor para fazer a rima. Mas já que falamos de quadras,
aqui vão mais duas da minha autoria:
Hoje tivemos um dia quente
E vamos ter uma noite fria
O melro da minha tia,
Já nem canta nem assobia
Divirtam-se todos bem
Nesta pequena hora
A todos digo adeus
E boa noite que me vou embora.
Foi uma fase bem animada que
terminou de uma forma menos feliz:
“Na verdade
eu era muito divertido e até casar fui sempre dado a arranjar namoradas. Até
que um dia assentei e casei com a que seria a minha primeira mulher e mãe da
minha filha, hoje com 64 anos. Morávamos no Monte de Alcanede, na estrada da
Valeira, onde era carreiro. Mais tarde, já com 32 anos, acabei por me
divorciar.”
E teve então que dar novo rumo à sua vida:
Passados oito anos voltei a casar
com a que é a minha actual mulher desde há mais de meio século – Rosária da Felicidade Catarro Pinto. Fomos
morar para a Quinta Seca, perto de S. Geraldo, onde trabalhei mais de 30 anos.
A seguir voltou às origens:
“Precisamente. Regressei a
Benalfange, onde me mantive até 1996, data em que fui residir para a minha
actual morada, na Pintada. Desde Maio que somos utentes do Abrigo na vertente
de “Centro de Dia”.
Antes de terminar, o nosso amigo Pinto quis expressar o quanto o desgosta nunca ter aprendido a ler e a escrever:
“A vida nunca me proporcionou
essa possibilidade. Como lhe disse, comecei a trabalhar muito cedo e mesmo
depois de adulto nunca estive perto dos meios que me poderiam dar essa
hipótese. Deixe-me contar-lhe um episódio que ilustra bem a tristeza que é
ser-se analfabeto, sobretudo se se estiver num ambiente estranho: Há uns anos,
uma médica que esteve aqui em Montemor, porque tinha dúvidas quanto a uma
doença que me atormentava, perguntou-me se eu estaria disposto a ir a uma
consulta ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Disse-lhe naturalmente que sim
e a doutora passou-me uma carta para eu entregar aos médicos, com a indicação
para onde me deveria dirigir. Cheguei ao hospital, cuja dimensão eu nem sequer
adivinhava. Entrei por ali dentro e sempre que via alguém de bata branca
perguntava onde ficava o local que me estava destinado. Ninguém pareceu
incomodar-se em me orientar devidamente. Diziam-me para ir por aquele corredor
porque depois estava lá uma placa. Chegado aí, logo me aparecia outro corredor,
repetia a mesma pergunta a outra pessoa e a resposta era sempre mais ou menos a
mesma. Andei por ali às voltas, desesperado e já sem saber o que fazer. Até que
me apareceu uma pessoa mais compreensiva, a quem expliquei a minha situação e
me encaminhou correctamente. Ora se eu soubesse ler, tudo se tinha tornado mais
fácil e não tinha tido nem metade das dificuldades. Foi uma grande lição que
aprendi, infelizmente, tarde de mais.”
Amigo Joaquim Pinto, que vá
continuando com essa lucidez e boa disposição, na companhia da sua esposa. E
quando comemorar o centenário voltaremos a falar.