PALMIRA DA LUZ PARREIRA
Dia 23 de Junho, véspera de S. João.
O nosso amigo André, que estava
de partida para o Porto, para mais uma actuação, nas festas da cidade, com os
seus colegas dos “Peña Kalimotxo”, sugerira, para nossa entrevistada do mês,
uma Senhora que eu próprio já conhecia por termos sido vizinhos, há muitos
anos, na rua dos Almocreves.
Nem chegaram, portanto, a ser
necessárias as apresentações. E a conversa que se seguiu, dada a excelente
memória e discurso fácil da D. Palmira, foi apenas a de recolher os principais
acontecimentos da sua história de vida.
“Completei em Janeiro 91 anos de
idade. Sou viúva há 17 anos de Manuel Maria (Mira Serrano) e tenho 1 filho –
Cláudio – mas estou deveras arrependida de não termos tido mais. Nasci na Rua
de D. Vasco. Éramos três irmãos, dos quais um rapaz e outra rapariga já
faleceram. Quando tinha três anos fiquei sem a minha mãe e, nessa altura, fui
para casa de umas tias.”
E foi aí que continuou o seu
crescimento ?
“Não. Quando fiz 5 anos
meteram-me no Asilo de Infância Desvalida. Era então directora uma senhora que
tratávamos por D. Maria se bem que, na verdade, eram duas das asiladas mais
velhas, a Carolina e a Guiomar, que, tendo já idade para saírem, mas não tendo
familiares nem alguém que as acolhesse, ficaram no Asilo a desempenhar as
funções de monitoras. Estive nesta Instituição, de que era presidente o Padre
Cartaxo, até aos 12 anos, idade em que as minhas tias aconselharam o meu pai a
retirar-me de lá. E ele assim fez, tendo eu ido viver com o meu pai que, já
viúvo, voltara a casar, e com a minha madrasta – Maria da Conceição –
residentes na Rua dos Almocreves.”
Foi uma nova fase da sua vida …
“Com certeza. O meu pai tinha uma
carroça e uma mula com as quais fazia fretes, transportando lenhas e outros
produtos para quem solicitava os seus serviços. Mas, como se compreende, a vida
não era fácil em termos económicos. Então, vi-me desde logo envolvida nos
trabalhos agrícolas, tais como ceifa, monda ou apanha de azeitona. Também servi
em casas particulares de famílias abastadas de Montemor. Curiosamente, foi na
casa do sr. Herculano de Oliveira, que tinha uma barbearia na rua 5 de Outubro,
que eu servi pela última vez e que acabou por ser o meu padrinho de casamento.
E assim iam decorrendo os anos. Em determinada altura, e porque o ser criada de
servir (hoje são empregadas domésticas) envolvia ter de dormir em casa dos
patrões e nunca ter um horário, resolvi passar a ir trabalhar a dias, com horas
de entrada e de saída.”.
E quando é que entra a fase do
namoro ?
“Ainda eu estava em casa do sr.
Salvador da Costa, era também lá empregado um rapaz chamado Manuel Maria e em
determinada altura chegámos à conclusão de que gostávamos um do outro. Mas não
foi namorar e casar logo. Tinha eu já 25 anos quando comecei a namorar o que
viria a ser o meu marido. Ele tinha então 19 anos, pelo que nem sequer à tropa
tinha ido. Depois de cumprido o serviço militar, e sem perspectivas de melhor
emprego, fui eu pedir ao sr. Jerónimo Faria e à Esposa que tentassem, junto dos
seus conhecimentos, que ele fosse admitido na Polícia, porque ali teria um
futuro mais estável. E a verdade é que esse desejo se concretizou mesmo.”
E então foi casar logo …
“Ainda não. Namorámos durante dez
anos e tinha eu 35 anos e o noivo 29 quando, enfim, demos o nó. Casados, fomos
morar para o Beco de S. Francisco, para casa dos avós dele. Dali fomos para
Évora, onde o meu marido estava colocado. Já o meu filho Cláudio tinha nascido
havia pouco tempo. Passados quatro anos, o meu marido pediu para ir fazer uma
comissão a Angola enquanto polícia. E fomos. Primeiro partiu ele com os colegas
e, uma semana depois, fui eu com a criança. Estávamos em 1964 e o meu filho fez
os 4 anos no barco. Chegámos no dia de Finados, 2 de Novembro”.
E como decorreu a sua estada em
Angola ?
“Estivemos lá dez anos e as
recordações não são das melhores. Trabalhei muito e muitas vezes doente. Como
na casa onde vivia tinha um quarto disponível, arrendava-o a membros da polícia
ou da tropa. Chegaram a estar lá três ao mesmo tempo, utilizando apenas aquele
quarto. Mas era na nossa casa que eles, para além de dormirem, também comiam do
que eu lhes cozinhava. Mais: tratava-lhes da roupa e, como se não bastasse,
ainda arranjava a roupa de mais dezasseis militares ou polícias. Isto, claro,
para além de cuidar do meu marido e do meu filho. Foi uma vida de muito
trabalho e sacrifício. E só mais um pormenor que atesta bem o quanto foi
importante e laboriosa a minha labuta: em Angola, o meu marido nunca recebeu
directamente o seu vencimento. Era o seu pai que o levantava aqui no continente
e se encarregava de o ir depositar na Caixa Geral de Depósitos. Foi assim que,
durante os dez anos que permanecemos em África, vivemos apenas com o dinheiro
que eu ganhava lavando roupa e cozinhando para cerca de vinte militares e
polícias.”
Na verdade, não teve uma vida
descansada.
“Mas, ao mesmo tempo que tudo
isso, ainda tive de suportar as doenças que me afligiram, particularmente o
paludismo. E, como se não fosse suficiente, também fui lá operada a um peito
quando tinha pouco mais de 40 anos. Mesmo assim, nestas condições, continuava a
tratar daquela gente toda.”
Entretanto passaram-se dez anos …
“Em 1975 regressámos a Montemor e
fomos para a casa da minha sogra, mas o meu marido comprou uma morada na Rua de
Avis, onde fizemos obras e onde eu ainda hoje resido. Mas voltando a esse
tempo, o meu marido voltou ao serviço em Évora mas de imediato pediu para ser
transferido para Montemor. Ainda aqui esteve algum tempo, mas como sofria de
gota e já tinha ultrapassado o tempo de serviço, passou à reforma.”
E a vossa vida, enfim,
estabilizou.
“Sim. Tivemos finalmente uma vida
mais tranquila. O meu filho entretanto concluiu o que é hoje o 12º ano e fez um
curso profissional de electricista, o que lhe permitiu ingressar na EDP, onde
ainda hoje se encontra. Infelizmente, o curso normal da nossa vida acabou com o
falecimento do meu marido.”
E a situação voltou a alterar-se
“Foi um rude golpe, que ainda
hoje me afecta diariamente. Passei a morar sozinha, porque o meu filho já
constituíra família e tinha o seu próprio lar . Comecei então a ser abrangida
pelo “Centro de Dia” do Abrigo, onde primeiramente estive cerca de um ano. Num
Domingo dei uma queda na minha própria casa, feri-me na cara e fracturei uma
perna. Fui logo nesse dia transportada para o hospital de Évora mas só fui
operada na sexta-feira seguinte. Uns quatro dias depois, ainda bastante
combalida, passaram-me a alta. Como não podia ficar sozinha, o meu filho
colocou-me no Lar da Quinta da Ponte. Entretanto, ele teve conhecimento de que
em Estremoz havia uma clínica da Cruz Vermelha onde poderia ser ajudada na
recuperação. Estive lá durante quatro meses. Passado esse tempo, o Abrigo
aceitou o meu regresso e desde Março do ano passado que aqui estou de novo.”
E como tem evoluído a sua
recuperação ?
“Aqui dentro ainda me desloco com
o auxílio de um andarilho, mas tenho vindo a recuperar, sobretudo porque
frequento todos dos dias o ginásio desta Instituição, o que acho que me tem
ajudado bastante.”
Foi um prazer conversar consigo,
D. Palmira. Quem diria que depois de a ter conhecido quando eu era uma criança,
nos viríamos a encontrar passados tantos anos. Que tenha as melhoras que
deseja.