CALINO
FRANCISCO
A
nossa conversa começou, quase obrigatoriamente, com o pedido de satisfação de
uma curiosidade, visto que, já conhecendo o nosso entrevistado há alguns anos,
sempre suspeitámos de que por trás do seu estranho nome haveria uma história
para contar. E não nos enganámos. Colocado perante a questão, o nosso
entrevistado prestou-se a esclarecer-nos:
“O
meu nome nasceu de um erro. Eu nasci no monte dos Cufenos de Cima, pertencente
à então freguesia de Safira. Naquele tempo, se se nascesse em freguesias rurais,
quem procedia aos registos provisórios era o cabo-chefe da zona. Esta figura,
que fazia o papel de presidente de Junta, era muitas vezes pouco mais do que
analfabeto. Nessa altura, em Safira, era o sr Sertório Lagartixa quem desempenhava essas
funções. Então, no seu próprio estabelecimento, que servia de sede da Junta, tomava
conta das ocorrências e fazia um relatório provisório que depois ia levar à
Conservatória do Registo Civil, em Montemor, a fim de oficializar o registo e o
tornar definitivo."
E foi isso que
aconteceu consigo?
“Logo
após o meu nascimento, a minha mãe e outros familiares (uma vez que o meu pai
faleceu ainda eu me encontrava no ventre materno) dirigiram-se ao representante
da Junta, comunicaram o nascimento e informaram que queriam que o meu nome
fosse AQUILINO. Mas o cabo-chefe percebeu mal ou errou por desconhecimento e
incorrectamente escreveu Calino. Mais: a Conservadora nem sequer estranhou ter
sido dado um nome insólito a uma criança e não colocou qualquer objecção ou
tentou esclarecer eventual dúvida. Quando anos mais tarde tive de tirar o
bilhete de identidade é que esta mesma Senhora me disse que havia sido cometido um erro
porque aquele nome não me podia ter sido atribuído. E eu respondi-lhe que tinha
sido ela própria a principal culpada, porque quando o sr. Sertório lhe
apresentou o registo provisório deveria ter dito de imediato que aquele nome
não podia ser dado, esclarecido o assunto e procedido à necessária correcção. E
mesmo nessa altura, quando a Senhora reconheceu o erro, certamente que haveria
modo de emendar o nome. Mas nada fez”
E ao longo da vida
deve ter sentido alguns constrangimentos e embaraços por causa de um nome tão
estranho…
“Claro
que sim. Tive vários episódios desagradáveis e alguns aborrecimentos por causa
do nome. Quando fui para a tropa, o então major Pimenta, aqui de Montemor, quis
alterar-me o nome porque o considerava um absurdo. Mas disse-me que o custo
dessa alteração custava doze escudos e cinquenta centavos e só produzia efeitos
ao nível da tropa, porque para andar com o processo a nível civil ia custar-me
muito mais. E eu desisti do intento e respondi-lhe que ganhando eu apenas vinte
e cinco tostões por mês, o valor da primeira alteração dava-me para ir algumas
vezes a casa ver a minha mãe e pedir-lhe que me tratasse da roupa."
Esclarecido este
“mistério”, vamos saber mais pormenores de uma vida que completou 84 anos em
Março passado:
“Como
já disse, nasci no monte dos Cufenos de Cima. Fui o mais novo de quatro irmãos
(3 rapazes e 1 rapariga) dos quais só eu ainda estou vivo. Como também já
disse, nunca cheguei a conhecer o meu pai, que faleceu antes do meu nascimento.
Sem a ajuda paterna tivemos dificuldades, como é de calcular. E ainda bem
novinho comecei a guardar gado. Por volta dos 13/14 anos deixei o gado e comecei
a labutar no campo, o que fiz sempre até ir para a tropa. Estive a fazer a
recruta aqui no 16, em Évora e depois passei para a Manutenção Militar, na
mesma cidade vizinha. Foram os únicos meses de férias que tive na vida, comendo
bem e trabalhando pouco.”
Mas nunca chegou a
andar à escola?
“Foi
exactamente na tropa que aprendi a ler e a escrever, porque em contas eu já era
um ás, porque um pastor com quem eu trabalhei ensinou-me e bem. Depois dei a
matéria da 3ª classe e fiz no fim uma pequena prova, mas nunca me deram
qualquer diploma.”
Acabada a tropa,
novo rumo…
“Voltei,
naturalmente, aos trabalhos agrícolas. Eu fui criado na zona das serras de
Cabrela. Ali aprendi todas as tarefas. Só nunca tinha tosquiado ovelhas nem
tirado cortiça, mas depois da tropa tornei-me um verdadeiro profissional na
arte de extracção deste valioso produto.”
E então? …
“Mas
com vinte e um anos mudei-me para o Freixo do Meio, junto aos Foros de Vale
Figueira e por ali me mantive. Ficou para trás toda a minha vida nas serras de
Cabrela, deixando lá inclusivamente um namoro, e comecei aqui um novo ciclo.
Agora ouça esta: quando me mudei lançaram-me como que uma maldição (aquelas
coisas que se diziam por dizer) que significava que no novo lugar só iria casar
com uma viúva. Mas eu não quis saber dessa parvoíce e sempre disse que haveria
de namorar e casar com uma rapariga que fosse de primeira apanha. Ainda tive
vários romances mas acabei por namorar e casar, há sessenta e tal anos, com a
minha actual e única mulher - Princepelinda Rosa Ferreira, cujo nome próprio
também será uma raridade.”
E foi lá mesmo
pelos Foros que se foi mantendo.
“Sim,
claro. Estivemos ainda durante algum tempo na Suiça e, regressados, lá
comprámos uma parcela de terreno onde construímos a nossa casa. Entretanto, os
anos foram passando e, sem filhos, sem possibilidade de continuar a trabalhar,
com menos saúde e já em idade avançada, resolvemos vender a casa nos Foros e
arrendar uma outra aqui em Montemor. As contingências da vida levaram-nos a solicitar
o “Apoio Domiciliário” do Abrigo dos Velhos Trabalhadores e, já este mês,
começámos a usufruir, também nesta Instituição, do “Centro de Dia”. E por cá
vamos estando, até que Deus queira.”
Obrigado, amigo,
pela sua disponibilidade.