OS NOSSOS UTENTES
VICENTE MANUEL ROQUE
Depois de terem
revivido, ou simplesmente recordado, os tempos de ceifeiras, azeitoneiras ou
pastores, no Corso Carnavalesco em que representaram mais uma vez condignamente
o Abrigo, a calma voltou a reinar no interior da Instituição. Mas por pouco
tempo, porque dentro de escassos dias, mais precisamente no dia 21 deste mês de
Março, pelas 10 horas, outra manifestação vai manter uma
velhinha tradição popular que, infelizmente, tem vindo a desaparecer salvo
raras excepções. Trata-se da “Queima do Compadre e da Comadre” que no Abrigo
mantém vivo o espírito da quadra graças ao esforço, talento e persistência dos
seus promotores.
Ao
nosso entrevistado deste mês, recente aquisição para a equipa do “Centro de
Dia”, tudo isto ainda constitui novidade. Mas vamos então às apresentações:
“Nasci
no Monte do Valverde, perto de S. Mateus, em Janeiro de 1932, tendo já
completado 87 anos. Sou casado com Umbelina Rosa Cabido Roque. Temos três
filhos – Gabriel, António e Manuel – que são três joias de rapazes. Casados, e
com as suas vidas estabilizadas, continuam a ser um orgulho para os pais.”
E continua a
desenvolver a sua história de vida:
“´Era
o mais novo de três irmãos (dois rapazes e uma rapariga) dos quais só eu ainda
por cá labuto. Do meu pai não tenho qualquer memória, visto ter falecido quando
eu tinha dois anos.”
Perante tal cenário,
não é difícil adivinhar que a família não teria então uma vida fácil…
“Pois
claro que não. E logo uma das primeiras consequências foi o facto de, com 6
anos, começar a guardar porcos por conta do lavrador sr. Marques dos Santos,
que era o proprietário da Courela de S. Mateus. E ao nascer do sol aí ia eu,
descalço e mal vestido, enfrentando os rigores do tempo, para o meu local de
trabalho. Nem sei quanto ganhava, mas de certeza que era uma miséria”
E a escola?
“Isso
era apenas uma miragem. Aliás nem sequer o assunto era abordado. Quando tinha
já uns dez anos, a minha mãe ainda tentou que eu entrasse. Pegada com a igreja
havia uma casita onde uma professora ia dar aulas. Nunca fiquei a saber se as
aulas eram diárias ou não, porque não cheguei a andar lá. Parece que havia um
número limitado de livros destinados aos alunos mais carenciados, que eram
praticamente todos os que moravam por ali, fornecidos não sei se pela Câmara ou
se por outra entidade qualquer. O que sei é que quando a minha mãe decidiu que
eu havia de aprender a ler, já não havia livros disponíveis e, como comprá-los
estava para além do orçamento familiar, acabou por ali a minha instrução e
continuei a trabalhar no campo, aprendendo os segredos de cada tarefa.”
Continuando…
“A minha
mãe faleceu quando eu tinha dezoito anos. Por essa altura já aprendera todosos
trabalhos agrícolas e tinha a noção de que os executava como os mais
entendidos. Ceifei, trabalhei com enfardadeiras, conduzi parelhas a carregar
molhos de trigo para as debulhadoras, podava, fazia enxertos em vinhas e em
árvores de fruto, enfim, para mim, os trabalhos agrícolas não tinham segredos.”
E o tempo foi
correndo…
“Com
vinte e quatro anos casei-me com a Umbelina e ficámos a morar no Reguengo (S.
Mateus). O sr. Gabriel Carvalhinho era o padrinho da minha mulher e foi com
aquele casal que ela foi criada e viveu como se fosse filha. Dada a sua
avançada idade, o sr. Gabriel passou-nos a gestão da sua herdade e passámos a
trabalhar nas suas terras. Pois este nosso grande amigo, quando faleceu, deixou
ficar para a minha mulher uma fatia de terreno onde construímos a nossa casa e
sempre cultivámos e explorámos. Cultivávamos a terra e inclusivamente
construímos umas malhadas onde criávamos as porcas, vendendo depois os leitões.
Foi assim que nos governámos e criámos os três filhos. Durante mais de quarenta
anos fui semanalmente vender as hortaliças e a fruta que ali produzia ao
Mercado Municipal. Mas a idade não perdoa e nos últimos anos deixei de ir
vender ao Mercado e fomo-nos governando com as vendas de frutas, feijão, alhos,
batatas, cebolas e toda a qualidade de hortaliça a pessoas que iam lá ao
Reguengo de propósito.”
Entretanto,
alguma coisa correu mal …
Recentemente
fomos ambos acometidos de doença súbita que, inclusivamente, me levaram ao
internamento no Hospital Distrital de Évora. Eu, felizmente recuperei em grande
parte, mas a minha esposa ficou com sequelas das quais tem tido dificuldade em
libertar-se.”
Aliás, tivemos
de dar por terminada a nossa conversa porque o Amigo Vicente estava preocupado
com o facto da sua Esposa poder estar a sentir a sua falta e a necessitar da
sua presença. Pode ser que um dia possamos vir a falar do que hoje ficou por
dizer. Melhores dias para o casal são os nossos votos.