Os nossos
utentes
VALENTIM ANTÓNIO LINGUIÇA
Sofreu
na pele as misérias de um tempo que não lhe deixou saudades. E o nosso amigo
Valentim alerta: “quem hoje diz mal de como se vive, não sabe avaliar o que foram as
dificuldades que os anos trinta e quarenta trouxeram às pessoas de menos
recursos”.
Natural
de Foros de Vale Figueira, onde sempre viveu, o nosso entrevistado deste mês
nasceu numa família de oito irmãos (quatro rapazes e quatro raparigas) dos
quais só a Joaquina já faleceu. E recorda:
“Andei
na escola apenas durante uns meses, porque em casa os proventos eram poucos e
tive de abandonar os estudos. Foi uns meses antes do ciclone de 1941. Então a
minha avó, conhecendo a realidade, disse aos meus pais que me levava para a
casa dela, já que pelo menos ia comendo. Fiquei lá na vinha a guardar as uvas
dos ataques dos pássaros, mas era eu que as ia comendo. Passava-se isto no
Monte da Misericórdia, junto a S. Gens.”
Esteve por lá
durante muito tempo?
“Perto
de dois anos. Nessa altura o meu pai era guardador de porcos e quis que eu
começasse a acompanhá-lo como ajuda. Acho que ganhava qualquer coisa, mas nunca
fiquei a saber quanto. Mas, se ganhava, de certeza que era muito pouco. Era na
Herdade do Meio, perto do Ciborro. Calçava uns tamancos com solas de pau e por
cima com pedaços tirados de outro calçado já gasto. Num dia, recordo-me bem, em
que esteve um enorme nevão, não pudemos sair com o gado e demos-lhe umas
bolotas que tínhamos apanhado.”
E enquanto foi
menino nunca teve qualquer entretenimento?
“Como
acontecia com alguma frequência, um ano esteve um circo em Foros de Vale de
Figueira. Como outro qualquer garoto, é claro que também eu fiquei entusiasmado
e pedi à minha mãe para me deixar ir ao espectáculo. E então ela, coitada, lembrava-me
que não podia ir porque não tinha nada para calçar e ir descalço era uma
vergonha. E acrescentou: a não ser que queiras levar as minhas botas. São
velhas mas melhores do que nada. E lá fui eu, todo contente.”
Mas as boas
recordações de infância não são muitas …
“Um
dia. Teria perto de dez anos, o meu pai andava a esgalhar e disse-me para eu ir
a casa buscar uma garrafa para ele tentar ir arranjar um pouco de azeite,
porque na altura havia racionamento e ainda mais dificuldade em arranjar comida
para casa. Mas eu esqueci-me e ele preparava-se para me chegar a roupa ao pelo,
mas a intervenção da minha avó evitou a sova que seria certa. Mais tarde eu até
compreendi aquelas reacções. Os pais andavam revoltados por terem dificuldade
em alimentar a família e tomavam essas atitudes mais agressivas. Repare que
para além dos artigos de primeira necessidade estarem racionados, alguns
comerciantes vendiam fora das senhas o que os clientes precisavam mas, claro, a
preços muito superiores e aos quais a maioria não podia chegar. Foi época de
muita fome em muitas casas”
Mas felizmente
que os piores anos foram passando …
“Cedo
comecei a ganhar a vida. Ia de bicicleta para os diversos locais de trabalho e
fiz de tudo: carreiro, porqueiro, cabreiro, esgalhei, gadanhei, tirei cortiça e
fui tosquiador de ovelhas, encartado. Nunca neguei qualquer trabalho. Aliás, um
dia num concurso em Évora ganhei o primeiro prémio como o melhor tosquiador.”
Já com o futuro
mais ou menos definido, outras etapas se seguiram…
“Com
dezoito anos comecei o primeiro namoro, com uma rapariga mais ou menos da mesma
idade, que morava num monte um pouco distante. Ia lá falar com ela mas era só
de janela alta. E um dia disse-lhe:- Menina, assim de gargalo no ar, a olhar
para cima, com dor no pescoço, nunca mais cá venho. Ou pedes ao teu pai para
que autorize o namoro dentro de casa ou nada feito. A moça lá conseguiu
arranjar autorização e eu entrava, mas sempre com a mãe de olhar em nós. Ao
menor barulho que considerasse esquisito, logo se punha à tabela.”
Mas o namoro lá
ia prosseguindo…
“Durou
cerca de um ano. Um dia, andava eu a esgalhar na Herdade da Derreada, quando
alguém me veio dizer ao ouvido que ela andava a namorar com outro, que era nem
mais nem menos do que um antigo namorado. E eu decidi na altura não lhe dizer
nada. Para não ficar desarmado, esperei até arranjar outra namorada e então
desfiz o anterior. Mas antes de optar definitivamente pela que ainda hoje é
minha mulher, tive vários namoricos com moças que viviam por aqueles lados.”
E, então,
assentou.
“Claro.
Com 23 anos dei finalmente o nó com a Maria Custódia da Silva Fomos morar para
o Campo do Espargal. Estivemos aqui dois anos após o que nos mudámos para os
Foros de Vale Figueira. Mudámos depois para o Monte de Vale Figueira, da Casa
Cunhal. Aqui vivemos 23 anos, já com os nossos dois filhos – Francisco e Paulo.
Um dia, o Dr. Cunhal, andava eu a semear trigo à mão, porque na altura ainda
não havia máquina semeadora, perguntou-me se eu estaria interessado em ser
tractorista. Eu disse-lhe que sim e acabou por ser a minha função durante mais
de 40 anos.
Quando me reformei voltei para os Foros
onde vivi até entrar aqui no Abrigo.
Muitas
felicidades para o casal, são os nossos votos!