MANUELA DA CONCEIÇÃO MESTRE
Dona de uma sensibilidade e lucidez
notáveis, a nossa entrevistada deste mês ainda hoje sente frustração por não
ter atingido na vida um patamar que estava perfeitamente ao seu alcance. Vamos
conhecer a história da D. Manuela:
“Nasci no dia 8 de Abril de 1937, em Vale de
Açor, freguesia de Alcaria Ruiva, concelho de Mértola e só vim fixar-me em
Montemor quando casei, em 1972. O meu pai tinha uma carrocinha com que ia
comprar ao mercado de Beja todo o tipo de hortaliças, frutas e legumes, que
depois ia vender pelos montes próximos. A vida não era fácil, mas conseguiu
criar sete filhos, dos quais eu sou a mais velha, sem que alguma vez faltasse a
comida na mesa. Muitas vezes, e dada a miséria que na altura grassava pelo
Alentejo, as clientes nem tinham dinheiro para pagar as compras. Então,
entregavam-lhe em pagamento os ovos das suas galinhas ou a própria criação, que
o meu pai ia vender ao mercado de Beja ou, no caso dos ovos, a pastelarias que
sabiam ser produtos de qualidade.”
E quantos dos
irmãos foram à Escola ?
“Apesar de sermos pobres, todos nós
frequentámos a escola e concluímos a 4ª classe. O meu pai fazia questão disso.
Eu entrei para uma escola particular aos 6 anos e quando chegou a altura de me
ir matricular na escola oficial, a professora viu que eu já tinha mais
conhecimentos e colocou-me logo na 3ª classe. E com 9 anos terminei a instrução
primária.”
E ficou por aí
em termos escolares?
“No imediato, sim. Livre da obrigação
escolar, fiquei a tomar conta dos meus irmãos mais novos, mas isso também não
impediu que, ainda com nove anos, fosse mondar. E a partir daí foi sempre a
trabalhar no campo. Até aos 19 anos fiz vários tipos de trabalhos, incluindo
ceifas em empreitadas que o meu pai tomava. Aquilo era trabalhar à bruta, até
cair para o lado.”
Estou mesmo a
adivinhar que nessa altura algo mudou…
“Completados os 19 anos tirei o Curso de
Regente Escolar, em Beja. Passei por vários concelhos: Almodôvar, Odemira e em
Mértola, mais concretamente em Corte Gafo de Baixo, onde a escola possuía uma
pequena habitação para a professora. Primeiramente estive como eventual, com
contratos anuais provisórios e que eram renovados anualmente, se bem que no
final de cada ano o lugar nunca estava certo. Mais tarde passei a efectiva e,
aí, já o lugar estava garantido. Assim se passaram sete anos.”
Algo então
aconteceu de importante na sua vida …
“Por esta altura comecei a namorar o que
viria a ser o meu marido. Os meus pais entretanto tinha ido viver para a
Amadora, onde construíram uma casa e se fixaram definitivamente. E eu fiquei,
com uma irmã, no lugar onde tinha já um emprego fixo. Mas o meu namorado não
queria que eu ficasse lá sem os meus pais e forçou-me a deixar o ensino e a
deslocar-me para o pé deles. Foi uma tremenda asneira, mas diversas
circunstâncias para isso contribuíram. Mas não desisti de me valorizar. Na
Amadora e em Lisboa estive empregada em vários escritórios e tirei o Curso de
Contabilidade.”
Foi sempre
lutando para se valorizar …
“Cerca de cinco anos depois, tive
conhecimento de que abrira um concurso na Câmara Municipal de Lisboa para
dactilógrafa, que era então o primeiro degrau de uma possível carreira.
Concorri, fui admitida e fiquei lá a trabalhar uns 5 ou 6 anos. Mas, mesmo
assim, enquanto aqui estive consegui tirar, em dois anos, o antigo 5º ano dos
liceus. Este passo permitia-me, inclusivamente, candidatar-me a outros
concursos internos.”
Mas, de novo,
algo se passou que não lhe permitiu atingir o que pretendia?
“Infelizmente, é verdade. O meu namorado
mais uma vez me cortou as pernas em termos profissionais, acenando-me com a
promessa de casamento. Pedi a exoneração, tendo dado assim o primeiro passo
para a destruição dos meus sonhos. Primeiro juntámo-nos e depois, em 20 de
Janeiro de 1972, casámo-nos e viemos morar para Montemor. E então, como
primeira medida, o meu marido não me deixou encontrar emprego.”
Ficou,
naturalmente, desiludida …
“Comecei a concluir que tinha sido enganada
desde o princípio. Com a ingenuidade de quem nunca até então tinha tido um
namorado, nem coisa que se assemelhasse, parece que fiquei embasbacada.
Enganei-me redondamente. Para além de me ter impedido de seguir um caminho que
gostaria de ter percorrido, fez de mim, literalmente, uma escrava. O meu marido
tinha um feitio irascível e cedo começou a ser violento, tanto para mim como
para os nossos filhos. Passámos muitas dificuldades porque ele esbanjava tudo o
que ganhava em bebida e mulheres. A violência a que estávamos sujeitos era uma
constante. Nem quero recordar os dias amargos que passei com os meus filhos.
Punha-nos frequentemente na rua, até que um dia saímos mesmo. Ainda hoje passo
o tempo a pensar o que foi e o que poderia ter sido a minha vida.”
Qual era a
actividade profissional do seu marido?
“Era negociante de palhas, carvões, estrumes
e outros materiais. Quando os filhos ainda trabalhavam com o pai, antes deste
os ter posto fora de casa, chegaram a ter quatro camionetas. Mas o José não só
não pagava aos filhos como gastava tudo na boémia. E eu trabalhava como uma
louca, de noite e de dia. Chegámos a ter mais de quinhentos porcos, além de
bezerros e ovelhas. E era apenas eu que tratava dos animais. Na altura em que
as porcas pariam, chegava a ter de ficar com delas durante a noite para que não
molestassem as crias. Isto durante anos. O meu marido nunca me dava uma ajuda e
ainda me batia a mim e aos rapazes. Era um inferno que ainda hoje me martiriza
a memória.”
Quer dizer o
nome do seu marido?
“Com certeza. Chamava-se José Manuel Prates
e faleceu em Março de 2018. Estávamos divorciados desde 2005.
Obrigado, D.
Manuela, por nos ter aberto as portas do seu coração. Esperamos que encontre
aqui no Abrigo a paz que lhe faltou durante parte da sua vida.