GRANDE POETA É O POVO
O Abrigo dos Velhos Trabalhadores
de Montemor-o-Novo é muito mais do que o edifício que o agasalha e acomoda,
No seu interior encontra-se o
sentimento de cada um dos seus residentes e a sabedoria acumulada que advém da
experiência adquirida na sua longa vida.
Durante muitos anos, a população
residente no Abrigo era maioritariamente de origem rural. Por necessidade
familiar, começava-se a trabalhar no campo desde tenra idade, sendo a escola um
luxo a que poucos tinham acesso. Resultava daí a enorme taxa de analfabetismo
que se iria manter pela vida fora.
Mas falta de instrução não
significava ausência de sensibilidade e sempre se encontrou dentro do Abrigo
quem desse largas à sua imaginação e talento nas mais variadas áreas
artísticas.
Sempre houve, no decorrer da vida
da Instituição, quem revelasse dotes de poeta, de contador de histórias ou de
artesão. Alguns, com tal talento, que nos interrogamos até onde poderiam ter
ido se lhes tivesse sido dada a oportunidade de aprenderem e desenvolverem, em
devido tempo, as suas naturais aptidões nos diversos campos da sua preferência.
Quer com pequenas entrevistas,
quer com fotografias que valham mais que mil palavras, quer com pequenos
apontamentos, vamos tentar dar a conhecer alguns dos utentes que fazem parte
deste universo que, lá fora, é ainda para muitos desconhecido, não obstante os
convites que temos feito no sentido de nos visitarem.
A nossa figura de hoje chama-se BASILISSA
SENHORINHA PERNAS, nasceu em Évora há 78 anos e cresceu com cinco
irmãos mais velhos e um primo. A mãe engravidou dezasseis vezes, mas apenas deu
à luz seis rebentos com vida. Os restantes, por aborto espontâneo ou acidente,
nunca viram a luz do dia.
Já casada com Salvador António
Batista, de quem enviuvou há cinco anos, morou no Escoural durante 18 anos e
antes de ingressar no Abrigo, há 6 anos atrás, ainda viveu com o marido, uma
filha, o genro e uma neta aqui em Montemor, na Rua de Avis.
Nunca andou à escola e não sabe
ler nem escrever. Apenas faz de cor o seu nome, conhece algumas letras mas não
as sabe juntar. No entanto, afirma que faz versos desde sempre e que tem pena
de não ter conseguido salvaguardar esse manancial de poemas que criou e ditou,
mas não sabe onde param.
Excelente conversadora, a D.
Basilissa possui um vocabulário rico, não obstante nunca ter frequentado a
escola nem ter lido livros de qualquer espécie.
Recentemente, por altura do 25 de
Abri, ditou a seguinte mensagem para um pequeno cartão editado pelo Abrigo:
“Que não se quebre a cadeia
Das mãos dadas em cordão
O vinte e cinco de Abril
Está no nosso coração! “
Há tempo ofereceu à neta Guiomar,
por altura do seu aniversário, uma caixinha em prata, em forma de concha, com
esta dedicatória:
“Ofereço-te esta conchinha
P´ra fechares os teus segredos
Juntos a esta aliança
Que outrora andou em meus dedos!
Detesta em absoluto a crítica que
apenas visa a maledicência gratuita.
Sobre o tema escreveu ou, melhor
dizendo, ditou estes versos:
“Quem fala da vida alheia
Não tem em Deus lugar vago,
Porque da semente da língua
Não se perde nem um bago!
Se alguém errou, e soubeste,
Não fales, fica calado,
Porque a má-língua é veneno
E morres envenenado!
A má-língua é uma praga
De todas a mais daninha,
Nem nas pedras da calçada
Se perde uma sementinha!
A língua é a maior arma
Que põe a mente confusa.
É uma seta envenenada
Que se volta a quem a usa!
Com uma memória invejável, D.
Basilissa confessa que sempre gostou muito de teatro. Inclusivamente, na sua
juventude, ainda em Évora, concebeu e ditou, para que ficassem escritas,
ligeiras peças do género revisteiro que, inclusivamente, ela própria e outras
pessoas das suas amizades representaram na Sociedade Joaquim António de Aguiar,
em récitas de beneficência.
E do seu rol de recordações ainda
nos revelou: “Teria eu vinte anos ou
pouco mais, conheci de perto a grande Amália Rodrigues, que era visita de duas
casas onde estive empregada: primeiro em Évora, na família Lopes Fernandes, e
depois em Lisboa, na família Sousa Martins.
E continua: “Eu era muito alegre e estava sempre a cantar. Um dia, lá em Lisboa,
Amália, da sala onde estava com as pessoas amigas, ouviu-me cantar versos da
minha autoria. Ficou surpreendida, mandou-me chamar e disse-me que tinha
gostado do que ouvira e que, se quisesse, poderia fazer carreira no fado.
Porém, a minha mãe não esteve pelos ajustes e opôs-se terminantemente, se bem
que o meu pai e o meu namorado – que mais tarde haveria de ser o meu marido –
não colocassem problemas”.
Quem sabe se não terá passado ao
lado de uma grande carreira artística!...