Sofia Machado: uma vida com história
Revela-se tarefa
impossível pensar, sequer, que vamos conseguir contar, no espaço disponível, a
história de vida de uma família que conheceu durante anos a angústia, a aflição
e a incerteza do que seria o seu dia seguinte.
SOFIA MARIA
SANTOS MACHADO é utente deste Abrigo e tem 83 anos. Foi casada durante 58 anos
com João Joaquim Machado, também conhecido como “Machadinho”, falecido em Março
deste ano. Deste enlace nasceu uma menina, a Maria Margarida, hoje com 56 anos,
que também ficou marcada para a vida inteira pela perseguição movida
injustamente ao seu pai.
“A
minha infância e juventude foram sempre difíceis”, confessa a nossa entrevistada deste mês. “Sendo a mais velha de dez
irmãos, cedo tive de assumir as minhas responsabilidades e contribuir para a
economia do lar. A certa altura, o meu pai arrendou uma pequena fazenda para ir
aproveitando a mão-de-obra dos filhos, ainda crianças, que não tinham idade
para trabalhar por conta de outrem. Depois, e de acordo com a idade que tinham,
assim era a tarefa que lhes era destinada quando passavam a trabalhar por conta
dum patrão. Isso acontecia entre os 10 e os 13 anos. Vivíamos então no Monte
das Forneiras e a escola mais próxima situava-se em S. Mateus. Como
eram muitas as crianças por aqueles lados e havia apenas uma professora e uma
sala, tínhamos de esperar que houvesse vaga para assistirmos às aulas. A minha
mãe, que sabia ler e escrever, foi-me ensinando em casa as primeiras letras e
os números, de modo que, quando consegui lugar na única sala, a professora, de
nome Marieta Marques Martins, pôs-me logo na 2ª classe. Todos os meus irmãos
aprenderam a ler, ainda que ali só se leccionasse até à 3ª classe. Muitas vezes
abalei de casa com a minha mãe, ainda mal se via, para estarmos cedo à porta da
escola a fim de tentar um lugar na sala.”
E a D. Sofia,
sem a necessidade de lhe fazermos perguntas, continuou: “Terminada a escola, era eu que
estava incumbida de ir tratando dos meus irmãos mais novos, que iam nascendo em
média um de dois em dois anos. Com 11 anos iniciei-me nas tarefas agrícolas
mais leves, mas logo um ano depois comecei os mais difíceis, os de enxada ou
foice na mão, como por exemplo a sachar grão, milho, feijão, ceifar, etc. Com
apenas 13 anos já trabalhava para outros patrões, de sol-a-sol, ceifando e
fazendo todo o género de serviços rurais, a distâncias de bastantes quilómetros
de casa, palmilhando pelos campo fora, até chegar antes do nascer do sol ao
trabalho, onde me era exigido fazer o mesmo que uma Mulher. Regressava a casa
já noite dentro. Era assim nesses anos…”
Saltando no
tempo, adiantou: “Casei em Fevereiro de 1954. Tinha então, já na altura, uma noção
perfeita do que me esperava, pois sabia e compartilhava as ideias e convicções do
meu marido que, aliás, já em solteiro havia sido preso três vezes por motivos
políticos.” E recorda um dos muitos episódios de que a sua vida está
recheada: “Quando casámos, fomos morar para o Monte do Machado, também perto de
S. Mateus. Em Maio, de 1961, o meu marido deixou de poder ir dormir lá a casa,
embora lá fosse comer as refeições, mas sempre com muitas cautelas, porque
sabia que a Pide andava a querer apanhá-lo. Numa noite desse mês fui acordada,
por volta das 4 horas da manhã, com umas pancadas brutais que davam contra a
minha porta. Pensei logo o que era, estava sozinha com a minha filhinha de 5
anos, saltei da cama e perguntei quem era, enquanto mergulhava um vestidinho vermelho
num alguidar com água. Aqui devo esclarecer que nós tínhamos combinado um sinal
de aviso: se eu me apercebesse de algum perigo, pendurava um vestido da nossa
filha num estendal que havia frente à casa e, nesse caso, ele afastar-se-ia de
imediato. Responderam que era a autoridade e que abrisse imediatamente a porta.
Abri e vi um enorme aparato policial de GNR’s e PIDES, um deles de metralhadora
em punho, direita a mim, perguntando pelo meu marido. Disse-lhes que não sabia.
Peguei no vestido e fui para sair mas eles desconfiaram e impediram-me. Apesar
dos meus protestos dizendo que o vestido fazia falta para a criança vestir,
eles tiraram-mo das mãos, dizendo que ele não precisava de nenhum sinal e não
me deixaram sair de casa.(*) Fiquei naturalmente em pânico. A sorte é que o
João, escondido numa seara próxima aproximava-se de casa sempre muito devagar e
com redobrada atenção. Lembro que era de noite e não havia nenhuma luz mas,
mesmo assim, ele lá conseguiu vislumbrar uns vultos (havia jipes parados e
homens que circulavam à volta do Monte) e fugiu. Os guardas e pides revistaram
toda a casa, vasculhando tudo e mais alguma coisa, procurando quaisquer
vestígios ou elementos comprometedores. Não encontraram nada. A quantidade de agentes e jipes era tanta,
que deu para fazer o mesmo, e ao mesmo tempo, a várias Famílias vizinhas e,
inclusivamente, na casa dos meus sogros.. De seguida, metade daquele aparato ficou
junto de mim e da casa e o restante dirigiu-se para um monte, chamado Ricolme,
onde morava o meu cunhado Manuel, irmão do João, pensando que ele estaria lá
escondido. Ainda antes de perguntarem fosse o que fosse ou dizerem quem eram,
começaram logo a disparar tiros contra a porta. A minha cunhada chorava, com o
filho ao colo, e o meu cunhado pegou na espingarda de caça que tinha, pois
pensavam que eram assaltantes. Finalmente lá disseram que era a autoridade e o
meu cunhado abriu logo a porta, dizendo que podiam ter informado mais cedo,
pois não tinha nada a esconder. Não mataram ninguém porque a porta era
resistente e as balas ficaram lá cravadas durante muitos anos. Depois de
virarem tudo do avesso lá concluíram que o João não estava. A minha cunhada,
quando conseguiu falar, pois apanhou um “susto de morte” e perante aquele
aparato e brutalidade, disse: Hiiii! É preciso isto tudo para prender um Homem
tão pequeno e que não faz mal a uma formiga?...”
E o relato
continua, sem pausas nem dúvidas: “Na sequência destes acontecimentos, o meu
marido viu-se forçado a sair desta área e, sob nome fictício, andou por esse
Alentejo fora, sempre a pé, no meio de matos e searas, evitando as estradas e
veredas para não ser visto por ninguém. Passou fome e sede. Chegou a comer
folhas das faveiras num faval, de noite, para matar a fome e para beber água
atava os lenços, que tinha com ele, uns aos outros para chegar à água dos poços
e depois espremia-os na boca, para vencer a sede. Contou com a solidariedade e
coragem de muita gente do Povo de Montemor e doutras terras por onde passou,
que do pouco que tinham, algumas vezes dividiram com ele um almoço ou um jantar
e lhe deram dormida. Mas muitas noites foram passadas debaixo das árvores ou onde
calhava, com frio ou chuva. Assim foi caminhando até chegar à zona de Vila
Viçosa, onde ninguém o conhecia. Procurava qualquer trabalho para conseguir o
seu sustento. Trabalhou nas pedreiras e no que lhe foi surgindo. Esteve lá
perto de um ano, período durante o qual só o vi por três vezes, e sempre em
locais diferentes.”
Mas o pior ainda
não tinha surgido: “Certamente por denúncia, uma patrulha da GNR acabou por o prender, no
dia 13 de Maio de 1962. Levaram-no primeiro para o quartel de Vila Viçosa e
logo depois para a sede da Pide em Lisboa. Só em finais de Junho tive conhecimento,
por informação particular, que o meu marido estava preso. Fui logo com a minha
filha à rua António Maria Cardoso, a fim de saber o que se passava e de o ir
visitar. Disseram-me de imediato que ele não tinha visitas mas que passasse
para outro gabinete porque queriam conversar comigo. Separam-me da minha
filhinha, que tinha então 6 anos, não obstante os meus protestos. Acabámos por
ser ambas interrogadas em separado, durante toda a tarde. Nem por uma miúda
tiveram o menor respeito. De mim queriam saber, essencialmente, quem é que me
tinha dito que o meu marido estava preso, e muitas outras questões, tentando
apanhar-me em
contradição. O agente da Pide que me interrogava ia dando
fortes pancadas numa secretária, que me faziam tremer dos pés à cabeça.
Respondi sempre o mesmo, que tinha ido á Vila de Montemor e ouvia nas ruas toda
a gente a comentar que o João Machado tinha sido preso. Esta conversa ouvia-se
à porta das tabernas, das lojas, das pessoas que andavam na rua, por todo o
lado, mas eu nem conhecia as pessoas que o diziam, era tanta gente…
Disse que estava ali para saber se era verdade
e, se fosse, para o ver. Confirmaram a sua prisão mas não me deixaram vê-lo. À
menina soube depois que lhe perguntaram se ia lá a casa alguém que não
conhecesse, que não pertencesse à família, se se juntavam lá pessoas em
reunião, etc.. Ela tremia de medo, sem saber de mim, a prever o que se estava a
passar com o Pai... e tão pequena… Isto durou toda a tarde, só nos deixando
sair após a hora da camioneta que vinha para Montemor. Não consegui ver o meu
marido, nem saber nada dele (só que estava lá), nem regressar para Montemor.
Assim estava sozinha, numa rua de Lisboa que não conhecia, perto da noite, com
a minha filhinha agarrada á minha mão e a pensar o que fazer, ainda com a
cabeça atordoada com tudo o que estava a passar. Só desta vez o João esteve
preso durante 6 anos, durante os quais foi sujeito às mais diversas e brutais
formas de tortura.
Apesar de ter
vivido anos de angústia, aflição e desespero, nem um só dia se arrependeu de
ter escolhido o seu João Machado para marido: “Nunca. Para além do amor que nos
unia, eu estava consciente dos riscos que corríamos. Mas sabia também que a
forma de o meu João idealizar a vida era correcta. Afinal, o seu “pecado” era
apenas o de querer pão e justiça social para todos os portugueses. Foi
simplesmente por defender isto que foi incessantemente perseguido e esteve
detido nas masmorras políticas por várias vezes (cinco), num total de cerca de
10 anos, um castigo pior do que se fosse um malfeitor. Nunca roubou nem fez mal
a alguém. Somente defendia os seus ideais, que eram a Paz, Liberdade e Justiça
Social. Era um homem justo e bom.
Como avisámos no
início, era impossível em tão curto espaço darmos conta da dimensão desta
família, que viveu durante largos anos em constante sobressalto mas nunca
abdicou de lutar para ver concretizados os seus sonhos.
Para terminar,
revelamos o que, um dia, a neta da D. Sofia lhe disse: “A avó foi uma pessoa inteligente. Soube escolher para marido um Homem
Bom, como toda a Gente que o conhece diz e que dedicou toda a sua vida a uma
causa que visava apenas justiça social para todos”.
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Nota: Este episódio, em jeito de
conto, e com o título de “O Sinal” faz parte de um capítulo do excelente livro
“Outros Contos de Vila Nova”, da autoria de João Luís Nabo, cuja leitura nos
permitimos recomendar.