MARIA
OCTÁVIA PEREIRA
Admirável
lucidez!
No Abrigo desde Junho de 2005, a nossa
entrevistada deste mês tem dois grandes desgostos na vida: perdeu o marido há 7
anos e sofre actualmente de graves problemas de visão que a impedem de ler e de
exercer outras actividades que a ajudariam a suportar melhor os seus dias.
Nasci
em Novembro de 1923, pelo que irei completar 90 anos dentro de alguns meses.
Sou a mais velha de 10 irmãos (5 rapazes e 5 raparigas) dos quais seis ainda
estão vivos. Vim ao mundo numa casa da Travessa da Adega Funda, mas depois vivi
noutros locais.
E explica porquê:
O meu
pai era moleiro e, por isso, andámos por vários sítios do concelho onde podia
desempenhar a sua arte. Recordo-me de vivermos em S. Geraldo, no Moinho do
Porto da Estaca de Baixo (S. Cristóvão), e no Moinho Novo, da família Ananil,
perto do Monte da Borracha aqui no Almansor. O meu pai esteve também mais tarde
a trabalhar nos celeiros da antiga Federação Nacional dos Produtores de Trigo,
lá em baixo junto à Estação do Caminho de Ferro.
Já na zona urbana, mas ainda em solteira,
morou na Frontaria do Rossio, actualmente Largo Banha de Andrade, na Rua de
Avis e finalmente na Ruinha.
A minha
infância e juventude foram iguais a tantas outras. Andei à escola até à
terceira classe. De salientar que o meu pai, sendo analfabeto, não quis, por
isso mesmo, deixar de dar a todos os filhos a oportunidade de aprenderem a ler
e a escrever. De resto, andei à azeitona, na monda e aprendi a costurar. Nesta
arte, trabalhava em casa, à tarefa, e a minha especialidade eram os casacos de
homem.
Vamos então virar a página e entrar noutro
capítulo desta história da sua vida:
Tinha
24 anos quando
comecei a namorar o que viria a ser meu
marido e namorámos durante 17, pelo que já tinha 41 anos quando juntámos os
trapinhos, num dia 27 de Agosto. Residimos primeiro na Rua Condessa de Valenças
e depois na Rua das Ricas. O meu marido, Joaquim Poças de seu nome, era
pedreiro e bastante conhecido, especialmente junto dos pescadores desportivos.
Quase toda a gente o tratava por “Mestre”. Com a doença, que o foi destruindo
aos poucos, e porque o destino não quis que tivéssemos filhos, não tivemos
outra alternativa que não fosse virmos para o Abrigo. Infelizmente só cá esteve
dois meses.
Regressemos a outros tempos mais felizes:
Sempre
gostei de cantar, mas só no ambiente da família. E também na minha juventude
gostava de dançar, mas como morávamos no campo poucas hipóteses tinha de ir a
bailes, tanto mais que os meus irmãos não mostravam interesse em me acompanhar.
Apesar de se queixar de falta de memória,
esse facto é completamente desmentido quando começa a evocar versos da sua
juventude. Aqui oferecemos aos nossos leitores um poema curioso que reflecte
particularidades da alma humana e que, segundo nos diz, fazia parte do seu
livro de leitura da 3ª classe:
Em certa aldeia indigente,
Isto em tempos já passados,
Viviam muito santamente
Dois velhinhos bem casados.
A mulher e o companheiro
Diziam juntos os dois:
Se tu morreres primeiro,
Morrerei logo depois.
E num coro afectuoso,
Ambos diziam ali:
Eu só peço a Deus bondoso
Que me leve antes de ti.
E nisto uma pancada forte
Na porta se fez ouvir.
Quem é? E responde a morte:
Quero entrar, venham abrir.
Diacho, diz o marido,
Como há-de isto agora ser?
Tenho aqui um pé dorido,
Vai lá tu abrir, mulher.
Mas ela logo se queixa:
Valha-me Nosso Senhor,
Este flato não me deixa.
Vai lá tu, fazes favor.
E então a morte enfadada
Investiu pelo postigo
E entrando assim na
pousada
Levou os velhos consigo!
Votos de boa saúde, D. Maria Octávia! Foi um
gosto falar com a Senhora!