LEOPOLDINA
MARIA VIEIRA BENAVENTE
Vamos encerrar mais este
ano de conversas com os nossos utentes, ouvindo uma senhora de 86 anos cuja
memória é prodigiosa. Lembra-se de pormenores que, a serem todos aqui
relatados, daria para duas páginas de jornal. Mas vamos então contar alguns.
A D. Leopoldina nasceu em 1927, e dos seus primeiros anos só recorda privações e dificuldades. Tendo nascido em S. Geraldo, onde viveu até aos dois anos, passou depois para o Monte das Gigantas e, sucessivamente, a família morou em vários montes.
“A vida era de tal forma
difícil que os meus pais, com sete filhos, tinham enormes dificuldades para o
sustento da casa e, então, nem sempre havia dinheiro para pagar as rendas. O
trabalho também não era certo e daí as constantes mudanças, porque não podíamos
contar com a compreensão e bondade dos proprietários. Só quando os mais velhos
começaram a trabalhar é que a nossa vida se alterou ligeiramente.”
Mas as melhorias não permitiram, por exemplo, que a
criança que era então a D. Leopoldina frequentasse a escola.
“Era para mim um
desgosto enorme ver outras crianças irem aprender a ler e eu não poder ir. E
havia vários motivos para que assim acontecesse. As dificuldades económicas e a
distância que tinhamos de vencer eram os principais obstáculos. Para além de
que, nesses tempos, a instrução escolar não era considerada uma prioridade.
Comecei a trabalhar muito cedo, não me recordo exactamente com que idade, mas
lembro-me que aos dez anos já ia apanhar azeitona. Vencia, ou tentava vencer,
os frios, pouco protegida em termos de roupa, com uns sapatos de borracha muito
usados e, como xaile, uma saia velha da minha mãe. Ganhava cinco tostões por
cada cesto que enchia, mas tinha dias em que, por causa do frio que me
engadanhava, nem um cesto conseguia apresentar.”
Aos 14/15 anos já
trabalhava como uma mulher, merecendo e ganhando a jorna correspondente. E foi
nesta altura da nossa conversa que surgiu uma curiosa revelação:
“Se comecei a trabalhar
cedo, também cedo comecei a namorar. Tinha 12 anos quando tive o primeiro
namorado que, é claro, tinha a mesma idade que eu. Chamava-se Manuel João.
Andávamos os dois à monda no Monte das Taipas e, conversa puxa conversa,
começámos a namoriscar. Nessa altura morava eu na Courela do Guita. Um dia
disse-lhe onde era a minha casa e combinámos que ele iria lá falar comigo no
Domingo seguinte. Não disse nada à minha mãe, mas comecei a fazer os
preparativos. Limpei muito bem a rua do monte, inclusivamente andei a varrer a
vereda por onde ele haveria de passar, arranjei-me com o melhorzinho que tinha,
e aguardei. A minha mãe assistia a tudo isto sem me dizer fosse o que fosse. E
eu também nada lhe disse. A nossa casa, apenas de rés-do-chão, tinha uma empena
alta e lá no cimo um postigo. Como não havia janelas, esta era a única hipótese
que tinha de ver e falar com o rapaz. Então, coloquei uma arca junto à parede e
em cima desta uma cadeira, pois só assim o poderia ver. Mas fiz mais: no lado
de fora ainda pus uns tijolos para o namorado se empoleirar e ficar mais
próximo do postigo. Lá falámos o que tinhamos a falar e quando chegou perto do
sol posto o rapaz foi-se embora.”
E não houve problemas
com a sua mãe?
“Ai não, que não houve.
Mal desci do meu poleiro a minha mãe caiu-se comigo, deu-me uma valente tareia
e mandou-me acabar desde logo com o namorico.”
E pronto, o assunto
ficou aí completamente arrumado…
“Nada disso. Começámos
então a escrever-nos numa correspondência que durou cerca de três anos. Como já
disse, eu não tinha andado à escola e, portanto, não sabia ler nem escrever.
Então, era uma filha do sr. Gil ferrador que me escrevia as cartas e
depois me lia as que me eram dirigidas. Mas era uma carga de trabalhos. Mas
tudo ficou por aí, tendo cada um de nós seguido a sua vida.
E depois, perguntei eu ?
“Teria já cerca de
dezoito anos quando comecei a namorar o que viria a ser o meu primeiro marido,
Joaquim Maria Cartaxo. Tinha vinte e quatro anos quando nos juntámos e fomos
morar para o Moinho de Vento. Tempo depois fui trabalhar para casa da D. Nazaré
Mousinho, que tratou de nos casar pelo Registo e pela Igreja. Deste casamento
nasceram dois filhos, um que faleceu quando tinha três anos e outra, felizmente
viva e de boa saúde, casada, que me deu um casal de netos. Morámos ainda na
Quinta Grande e na Torre do Almansor, onde o meu marido morreu, em 1964.”
E começou então uma nova
etapa na sua vida:
“Deixei de trabalhar no
campo, sobretudo porque tinha medo de andar sozinha por esses caminhos.
Consegui uma casinha no Bairro de Na. Sra. da Visitação e trabalhei a dias em
casas de várias famílias. Estive ainda, durante uns anos, empregada na Azinhex,
onde me encontrava quando casei, em 1973, portanto há quarenta anos,
também pelo Registo Civil e pela Igreja, com o meu actual marido, José Joaquim
Grulha, que era igualmente viúvo. O José tinha quatro filhos, três dos quais,
felizmente, ainda são vivos. Todos eles me trataram sempre com muita amizade e
carinho.”
E durante todos estes
anos nunca chegou a aprender a ler ?
“Cheguei, sim senhor.
Quando estava na Azinhex tive como colega uma bela rapariga chamada Rosinda
que, por sinal, hoje é enfermeira aqui no Abrigo. Pois foi exactamente a
Rosinda que me ensinou a conhecer as letras e a juntá-las, o que me permitia,
pelo menos, ler os jornais. Foi muito importante para mim. Hoje, por problemas
de saúde, já nem isso me é possível fazer, mas a minha gratidão mantém-se.
A D. Leopoldina já foi
operada várias vezes, duas delas aos joelhos, e viu-se privada do olho direito,
mas é uma lutadora e vai encarando o futuro com um certo optimismo.
Juntamente com o marido
está no Lar, como residente, desde há quatro anos, mas já anteriormente era
utente , primeiro do “Apoio Domiciliário” e depois do “Centro de Dia”.
Um Bom Natal, na
companhia do José, familiares e colegas do Abrigo.