MANUEL JOÃO CIGARRO
O nosso entrevistado deste mês
começou por surpreender-nos logo no início da conversa que tivemos no dia 23 de
Novembro. Quando lhe perguntámos a idade, a sua resposta veio pronta e completa
: “Ainda que os documentos oficiais
registem uma data posterior, a verdade é que nasci no dia 2 de Julho de 1922,
pelo que tenho 93 anos, 4 meses e 21 dias.”
E a partir daqui foi um desfiar
de recordações, numa manifestação da excelente memória que possui.
“Nasci na Rua de Santo António nº 14. Quando tinha nove anos, por
dificuldades financeiras inclusivamente para se pagar a renda da casa, a minha
mãe, eu e os meus outros três irmãos - José Lourenço, Filipe e Maria Jacinta - começámos
a ir dormir na casa dos Repolhos, família que tinha uma mercearia na Rua
Direita e que nos acolheu. Apenas o meu pai nunca lá dormiu porque a sua
actividade como guardador de gado o obrigava a ficar nos locais onde
trabalhava.”
E mesmo residindo na então vila,
não freque
ntava a Escola ?
“Como era habitual, quando fiz sete anos fui para a Escola, na Rua de
Aviz, mas só lá andei pouco mais de três meses”
Mas abandonou porquê ?
“A minha professora era muita áspera e tinha uma mania que me
desagradava. Eu explico: quando ela fazia uma qualquer pergunta a um aluno, se
este não soubesse a resposta, perguntava a outro. Se este último respondesse
acertadamente, mandava-o dar umas reguadas no primeiro. Um dia perguntou
qualquer coisa a uma miúda que não sabia a resposta e depois interrogou-me a mim.
Como eu respondesse certo, deu-me ordem para que desse meia dúzia de reguadas
na colega. Ora eu recusei-me bater na miúda, o que me valeu apanhar com a régua
na cara. Não gostei, atirei-lhe com um tinteiro acima e fugi.. A minha mãe
quando teve conhecimento ainda tentou levar-me mas eu, mal chegava às
proximidades da escola, fugia a sete pés.”
Então não sabe ler nem escrever ?
“Acabei por aprender alguma coisa e fazer exame já em adulto.”
E, então, como passou a ser a sua
vida?
“Limitei-me a ir fazendo uns recados aqui e além, e a brincar, como era
próprio da idade. Logo de seguida pôs-me a aprender a sapateiro na oficina do
Sr. Vicente Valentim, na esquina para a rua dos Marmelos. Não cheguei a
aprender grande coisa porque entretanto saiu-lhe a sorte grande, ele começou a
vender jogo e praticamente deixou o ofício.”
Acabou aí a hipótese de vir a ser um futuro sapateiro?
“De seguida fui para continuar a aprendizagem na oficina do Sr. Serafim
Caldeira, ali na Rua das Pedras Negras, onde tinha também uma mercearia. Ao fim
e ao cabo pouco aprendi do ofício, porque o patrão punha-me quase
exclusivamente a fazer recados. E quando sobrava leite, que era vendido avulso,
mandava-me percorrer a então vila com um cântaro de zinco e umas medidas,
apregoando e vendendo porta-a-porta o que tinha sobrado.”
E o tempo foi avançando…
A partir de certa altura fomos morar para uma casa, arrendada, perto da
residência do Dr. Angelino Ferreira. Era apenas uma divisão. O meu pai colocou
ao meio um tabique com sacas caiadas. De um lado dormia a minha mãe e a minha
irmã e no outro ficava eu com o meu irmão mais novo, porque o do meio já então
acompanhava o meu pai como ajuda de gado ou noutras tarefas.
Aos catorze anos faleceu-me a minha mãe e pouco depois a minha irmã.
Foram dois rudes golpes.
Comecei então a fazer recados para a casa do Dr. Angelino. Gostava
muito de lá estar e fui sempre bem tratado. Para além dos recados, ia
entretendo os meninos Angelino e António. Não ganhava ordenado. Era-nos
diariamente dado um recipiente com comida que dava para mim e para o meu irmão
mais novo. Pouco tempo depois de nascer a menina Cristina, foi comigo que ela
deu os primeiros passos. Estávamos no quintal, coloquei-a de pé e incentivei-a
a caminhar para mim. O que ela fez. Chamei de imediato a mãe, a D. Cristina,
para ela ver a gracinha. A miúda repetiu a proeza e a mãe ficou tão contente
que me mandou ir à do Sr. Costa, que era da sua família e tinha uma loja na Rua
Nova, para eu escolher um fatinho. Já havia dois meses que eu andava com a
mesma roupa, por não ter outra.
Mas chegou a altura da família Ferreira ir para a praia e eu fiquei sem
emprego.
E então, como foi depois a sua
vida ?
“Por essa altura, já teria os meus quinze anos, fomos forçados, eu e o
meu irmão mais novo, a juntarmo-nos ao meu pai e ficarmos como ajudas de gado,
enquanto o outro meu irmão passou para outros serviços no monte do lavrador. E
até ir para a tropa trabalhei sempre no campo.”
Começou então uma nova fase da
sua vida…
Assentei praça em Mafra e fui depois mobilizado para ir para os Açores,
onde estive mais de nove meses.”
Cumprida essa obrigação, nova
volta na sua vida:
“Em 1947, já com 25 anos, conheci a que haveria de ser, quatro anos
mais tarde, a minha mulher até hoje. Era, e é, cinco anos mais nova do que eu e
chama-se Rosa Maria Caldeira. Tivemos três filhos, felizmente todos vivos, dois
rapazes e uma rapariga – José Maria, Joaquim Manuel e Maria Jacinta – que são
muito nossos amigos.
Depois de casados morámos primeiro no moinho do Bombico, junto à Ponte
de Lisboa. Não estávamos sozinhos porque tivemos sempre a companhia de uma
grande quantidade de ratos, que de noite até se passeavam por cima da cama.
Estivemos lá pouco mais de um ano. Daí passámos para uma casa junto à dos meus
sogros, na Ermida da Sra. da Visitação. Daí a dois ou três anos mudámos para a
Fazenda dos Carpinteiros, ali às abas do Cabeço de Santo André. Sucessivamente,
passámos ainda pela Courela da Estrada, pela Rosenta e, finalmente, para a Rua
dos Almocreves, numa casita que comprámos.”
Como se vê, o nosso Amigo Cigarro
não teve uma vida fácil. Longe disso. Mas o seu maior pesar surgiu-lhe há cerca
de três meses:
“Há uns anos comecei a ter problemas de visão. Primeiro fui operado em
Lisboa à vista direita. Ao princípio comecei a ver melhor mas a partir de certa
altura fui piorando até a perder completamente. Da vista esquerda, e com medo
de que me acontecesse o mesmo, não quis ser operado. Mas há três meses deixei
de ver. O mundo apagou-se completamente para mim. É uma tristeza enorme. Corri
muitos médicos mas todos me diziam que não havia nada a fazer e que foi a
diabetes que me cegou.
E como se tudo isto não fosse já
mais do que suficiente …
“A minha mulher, que também é diabética, tem igualmente muitas
dificuldades para ver. Já foi operada aos dois olhos e, por enquanto, ainda me
vai ajudando no que pode. Mas tem outros problemas de saúde que também nos
preocupam. Depois de uma vida de grandes sacrifícios estamos perante este
quadro.”
Compreendemos o estado de alma do
Sr. Cigarro, que merecia gozar agora de uma vida tranquila e feliz junto da sua
companheira de sempre.