OS NOSSOS UTENTES
ANTÓNIO
JOAQUIM GERVÁSIO
Dono de uma forte convicção nos seus ideais de justiça
social, e sempre com a liberdade como meta a atingir, António Joaquim Gervásio cedo
compreendeu que, sem luta, tais desígnios nunca seriam alcançados. E sofreu na
carne manter-se coerente com os seus princípios.
Mas vamos ouvir o que tem para nos dizer:
“Nasci no Monte da Regadia, então pertencente à freguesia de S. Mateus,
e depois Na. Sra. da Vila, no dia 25 de Fevereiro do já distante ano de 1927.
Fui o mais velho de oito irmãos (5 rapazes e 3 raparigas). Não era nada fácil a
vida nesse tempo mas o meu pai, que era um excelente operário agrícola, ia
ganhando a vida e, com muito sacrifício, sempre conseguiu que à mesa nunca
faltasse o alimento para a família. Para além das horas em que trabalhava como
assalariado ia, simultaneamente, arrendando pedaços de terra para cultivar
produtos hortícolas, cuja produção servia os interesses familiares e o que
sobrava, sobretudo a fruta, era vendido.”
Mas, sendo o mais velho dos irmãos,
foi também o que começou a trabalhar mais cedo…
“Com sete anos iniciei-me a guardar uma vara de sete ou oito porcos e
ia para o trabalho descalço. Poucos anos depois passei a ser ajuda, na guarda
de outros animais: ovelhas, cabras e ainda porcos. Aos 13 anos o proprietário
para quem eu trabalhava, que vigiava a cavalo os empregados, gostava de bater
nos seus assalariados por dá cá aquela palha. Possuía meia dúzia de cavalos e
um dia, um deles, ao espojar-se no chão pedregoso, ter-se-á ferido. O patrão
veio ter comigo acusando-me de lhe ter feito aquilo com uma pedrada. Claro que
eu nunca faria uma coisa dessas, até porque gostava dos animais. Ameaçou-me que
me daria uma tareia, mas eu, que estava inocente, agarrei numas pedras e
disse-lhe que se ousasse bater-me é que, então sim, lhe mandaria uma pedrada.”
E o assunto ficou por aí, sem mais
conversa?
“Não. O lavrador, que como eu já disse, gostava de “molhar a sopa”,
hesitou e respondeu-me ameaçadoramente: deixa estar, meu filho da p…, que
hás-de pagá-las. Fiquei com medo e fui para casa dos meus pais, a quem contei o
sucedido, dizendo-lhes que para ali já não regressava.”
E, então, como é que o assunto se
resolveu?
“O meu pai, ainda que analfabeto, era muito sensato e possuidor de uma
grande sabedoria. Então, disse-me ele, visto que não queres regressar para
aquele patrão, a solução passa por ires comigo trabalhar na carvoaria. E assim
foi. Fiquei como “coqueiro” (*), que consistia em fazer o lume e ir vigiando as
panelas de barro que cada trabalhador levava de casa, juntando-lhe água se via
que era necessária e chegando-as mais ao lume ou afastando-as, conforme os
casos. Durante esta fase ganhava apenas metade da jorna dos homens.”
E esse sistema continuou ainda por
muito mais tempo?
“Poucos anos mais tarde passei à categoria de adulto, no que ao
trabalho dizia respeito, ganhando estão a jorna normal. Fazia todos os
trabalhos agrícolas e sentia-me um homem completo, ainda que jovem. Foi uma
fase muito importante da minha vida.”
Mas, apesar de tudo, não se sentia
completamente realizado…
“Desde muito novo que comecei a interessar-me pelos problemas sociais e
a tomar conhecimento, directa ou indirectamente, das injustiças que se cometiam
e cujas vítimas eram essencialmente os trabalhadores. Tendo aprendido a ler com
os meus companheiros de trabalho, através da Cartilha João de Deus, e tendo
aprofundado mais tarde os meus conhecimentos, fiquei ainda mais desperto para as
realidades da vida. As notícias que, por vias não oficiais, se iam sabendo
sobre o que se passava na Guerra Civil de Espanha e na 2ª Guerra Mundial,
reforçaram a minha consciência política. Por cá, o desumano horário de sol a
sol imposto no trabalho rural pelos agrários, as jornas de miséria e os longos
períodos de desemprego ainda mais fizeram crescer em mim a vontade de lutar
contra as injustiças que então eram comuns. E foi assim que, em 1945, aderi ao
Partido Comunista Português. Tinha 18 anos.”
E a partir daí muita coisa
aconteceu…
“Em 1952 entrei na clandestinidade. Nesta condição me mantive durante
22 anos, isto é, até à libertadora manhã do 25 de Abril de 1974. Entretanto,
durante aqueles anos estive por três ou quatro vezes fora do país e, numa
delas, visitei os fornos crematórios mandados construir por Hitler. Deu para
fazer uma pálida imagem dos horrores ali infligidos.”
Entretanto, por cá as coisas também
nem sempre lhe correrem bem …
“É verdade. Passei por muitos períodos difíceis, mas gratificantes,
porque me davam a certeza de que a razão haveria de triunfar. Estive preso por
três vezes. Em 1947, na sequência de uma greve de ceifeiros, durante seis
meses; em 1960, por ser funcionário do PCP, fui condenado a 5 anos e meio, com
medidas de segurança. Isto significava que terminado o tempo da pena, a Pide
apreciava o comportamento do preso e se este não tivesse alterado a sua
convicção política, prolongava o prazo por períodos sucessivos de mais 3 anos,
o que equivalia a dizer que nunca se sabia quando iria acabar a prisão.
Aconteceu, porém, que desta vez não cumpri a pena até ao fim, simplesmente
porque eu e mais sete companheiros conseguimos fugir, durante um recreio, da
prisão de Caxias. Curiosamente, a fuga foi concretizada em pleno dia,
aproveitando a distracção dos guardas. De uma garagem retirámos um carro que lá
estava guardado, da marca Chrysler, à prova de bala, que havia pertencido a
Oliveira Salazar por oferta de Hitler; depois, em 1971, voltei a ser preso, agora
em Peniche, mas em Abril de 1974 regressei de vez à liberdade por que tanto
lutara e sofrera. Na prisão sofri muitas torturas, chegando até a perder os
sentidos.
Como é que os presos receberam a
notícia da revolução?
“A certa altura da noite de 24 para 25, o director chamou-nos para nos
informar que estava em curso uma revolução. As primeiras reacções foram de
surpresa, ainda que tivéssemos a convicção de que mais tarde ou mais cedo ela
se iria realizar. No entanto, ficámos de alguma forma na expectativa, sem
sabermos se o golpe era de direita, o que ainda iria agravar mais a situação,
ou se seria de esquerda, o que nos devolveria todas as esperanças. Ficámos
portanto a aguardar o curso dos acontecimentos, até que na manhã do dia 25 de
Abril tivemos a certeza de que iriamos ser libertados. Foi indescritível o que
se seguiu. Uns choravam de alegria, outros cantavam, outros davam vivas à
liberdade, enfim, cada um reagindo à sua maneira.”
E depois?
“Bem, depois, cada um seguiu o seu caminho, sabendo que podíamos,
finalmente, expor as nossas ideias e defender os nossos direitos.”
Nunca registou as suas memórias de
tantos anos de luta antifascista?
“Publiquei três livros: “Lutas de Massas em Abril e Maio de 1962, no
Sul do País”, “Histórias da Clandestinidade” e “A Reforma Agrária é necessária”.
Para além destes três livros,
António Gervásio, que durante a clandestinidade adoptou o pseudónimo de
“Lemos”, escreveu também um extenso artigo sob o título de “A Luta do Proletariado Agrícola
– De Sol a Sol até à Reforma Agrária”
incluído no livro de António Murteira “Uma Revolução na Revolução –
Reforma Agrária no Sul de Portugal”, editado em 2004.
Resta-nos agradecer ao Sr. António Gervásio o tempo que nos
dispensou e desejar-lhe um futuro com saúde na companhia da sua Esposa.
(*)
–Palavra livremente adaptada de coque,
que significa cozinheiro.