LIBERDADE
DA CONCEIÇÃO COELHO
Para além das naturais particularidades,
o percurso de vida dos nossos utentes é, de uma maneira geral, comum a todos
eles, especialmente aos que nasceram e viveram largos anos no campo. Isto
porque, como sabemos, as condições de vida, que então estavam estabelecidas,
eram favoráveis às dificuldades que cada um ia vencendo como podia.
A
nossa entrevistada deste mês, nascida nos Baldios, é a mais nova de nove irmãos
e, só por aqui, se pode avaliar como seria difícil satisfazer minimamente as
carências de uma família cujo pai era trabalhador rural. Ouçamos então o que
tem para nos dizer a D. Liberdade:
“Os
meus pais trabalhavam no campo, mas o meu pai também ia fazendo os seus
biscates de pedreiro. E era mesmo de pedreiro, porque nesse tempo não se usavam
os tijolos. As construções, mais rudimentares, eram apenas constituídas por
pedras e lama barrenta amassada, usadas sobretudo, não só para casas de
habitação modestas, como para instalações para o gado e para guardar as
alfaias.”
Com uma família
tão numerosa, certamente que todos tiveram de começar a trabalhar muito cedo …
“Pois,
com certeza. Para além disso, e também porque vivíamos longe de escolas, nunca
soubemos o que isso era. Todos começámos a lutar pela vida muito novos.
Primeiro no campo e, depois, alguns deles como pedreiros ou padeiros. Escusado
seria dizer que também eu comecei cedo. O primeiro trabalho que me coube em
sorte foi desmoitar sargaços. Mal podia com a enxada. E, como era norma na
altura, trabalhava-se de sol a sol. Passámos uma vida de miséria e de
sacrifícios. E, quando não havia trabalho, tínhamos de recorrer a pão com boletas
ou azeitonas. A nossa sorte é que tínhamos um pedaço de terra onde íamos plantando
e colhendo hortaliças.”
Passados esses
anos de infância entrou na adolescência…
“Sim,
os anos foram passando e já com dezoito anos comecei a namorar o que ainda hoje
é o meu marido. Na minha juventude eram frequentes os bailaricos ali na zona.
Recordo-me, até, que nesses tempos o Entrudo era a quadra mais festejada. Para
além dos tradicionais fritos, fazíamos arroz doce e matava-se o peru, que tinha
sido alimentado com os farelos, da farinha que comprávamos para o pão, e com as
couves produzidas na horta. E claro que todos se mascaravam, não com roupas
porque as que tínhamos eram as que usávamos no dia-a-dia. Pintávamo-nos com
mascarra, fazíamos um boneco de palha para queimar e fazíamos versos uns aos
outros, a propósito de tudo e de mais alguma coisa.”
E chegou na
altura de dar novo passo…
“Exactamente.
Com 22 anos juntei-me com o meu marido – Mário António dos Santos - mas,
passados dois meses, casámos. Tivemos dois filhos, a Brásia e o Carlos, hoje com 54 e 56 anos respectivamente. Quando casámos fomos morar
para Vale de Asna, da família Caiados, num monte que hoje já não existe. Só lá
estivemos um ano. Fomos depois para os Baldios, ainda que para casas
diferentes. Primeiro para uma que era de um dos meus irmãos, que fora trabalhar
para o Casal do Marco e depois, na parte de um terreno que nos ficou do meu pai
após a divisão, fizemos uma casita onde nos fixámos até à nossa recente entrada
no Abrigo.
Mas preferiram
vir para aqui em vez de estarem na vossa casa?
“Com
grande pena nossa, temos de dizer que os Baldios estão abandonados. Já não há
lá residentes. Vivíamos muito sós e sem podermos recorrer a alguém em caso de
aflição. A acrescentar a isto, o meu marido é bastante doente. Já foi operado
três vezes, à próstata, à bexiga e ao coração. Tudo isto e ainda o facto de
estar bastante surdo, que nem a compra de um aparelho resolveu o problema,
levou-nos a pedir a admissão como residentes.”
Ainda não há
dois meses que aqui estão. Qual é a vossa opinião?
“Foi
o melhor passo que podíamos ter dado. Sentimo-nos aqui bem. Pela primeira vez
não nos preocupamos com o frio que lá faz fora. Aqui dentro não há frio nem
calor. Gostamos da comida e não temos razão de queixa de ninguém. Vamos ao
ginásio e, pelo menos duas vezes por semana, controlamos a diabetes. E, para
terminar, vou dar-lhe outra informação: Eu e o meu marido vamos desfilar no
próximo cortejo de Carnaval. Só não posso dizer de que vamos mascarados. Essa
vai ser a surpresa.”
Obrigado, D.
Liberdade. Oxalá que possam gozar desse bem-estar ainda durante muitos anos.