ELISIÁRIO ANTÓNIO (PINTO)
Em Janeiro vai completar 89
primaveras, mas a memória, não sendo já o que era, ainda lhe permite recordar
muitos episódios de uma vida que teria muito para contar.
“Chamo-me apenas e só Elisiário
António. Todos os meus irmãos, e fomos nove, tinham o apelido de Pinto mas eu,
ainda hoje não sei por que carga de água, fui o único assim baptizado.”
E foi abrindo o seu álbum de recordações: “Nasci e sempre vivi no Ferro da Agulha, mesmo depois de, com vinte e
poucos anos, ter casado com a minha companheira de sempre, de nome Custódia
Maria Roque. Devido à idade, e sobretudo à doença da minha mulher, entrámos
para o “Centro de Dia” do Abrigo dos Velhos Trabalhadores em Julho de 2007 e
porque as nossas condições de saúde se foram agravando, ficámos a residir
permanentemente no “Lar” desta mesma
Instituição a partir de Fevereiro de 2010. Foi o melhor passo que demos, e
posso afirmar que fomos aqui felizes. No entanto, quis o destino que a minha
mulher partisse vai para dois anos. Sinto bastante a sua falta, mas tenho de me
conformar porque a vida dá-nos estes desgostos.”
Mas tudo teve um princípio: “Andei
à escola na Associação Operária e conclui a 4ª classe. Aliás, de todos os meus
irmãos, só o Manuel não aprendeu as letras. Logo depois comecei a trabalhar no
campo, como era norma na altura. Uns anos depois, estava eu a trabalhar na
Quinta de Santo António e no lagar do Sr. Daniel Borges (ou Daniel Passinha,
como era conhecido) fui vítima de uma doença que me impossibilitava de fazer
trabalhos pesados. Estando ainda indeciso quanto ao rumo a dar à minha vida, o
Sr. Daniel Borges (também proprietário de um armazém de fazendas) chamou-me e
disse: - Elisiário, vai tratar da papelada nas Finanças porque a partir de
agora vais ser vendedor ambulante.
E assim foi. Mas ainda havia
outras dificuldades a ultrapassar: “Quando me convenci que aquele seria o meu
modo de vida no futuro, reparei que tinha uma carroça, mas não tinha burro nem
dinheiro para o comprar. Fui ter com o meu irmão Luís, para quem eu tempos
antes tinha comprado um animal, e pedi-lhe que mo vendesse. Ele concordou e
ajustámos o preço: 750$00 a pagar em prestações semanais. Já equipado, voltei
ao Sr. Borges que logo ordenou que me fosse fornecido o material com que
haveria de iniciar o negócio. Foi um avio no valor de 5 contos, fiado, porque
eu não tinha um centavo. Fiquei sempre reconhecido a esse Homem, que me
incentivou e depositou em mim tal confiança, que eu sempre tive a máxima
preocupação de merecer pela vida fora.
Comecei então a andar de monte em
monte, com a carrocinha, a vender panos, roupas e outros artigos pertencentes
ao mesmo ramo. Foi esta a minha actividade até me reformar.
Foi, como é bom de ver, uma vida
de sacrifícios: “Saía de casa à terça-feira e só regressava no sábado. Fazia uma volta
muito grande, percorrendo muitos quilómetros. Dormia em cocheiras, em
palheiros, onde calhava. A segunda-feira estava reservada para ir repor a
existência.
Como se não bastasse toda esta
labuta, o nosso amigo Elisiário também teve problemas com a sua “viatura”: Seis
meses depois de iniciar estas andanças, e já com o burro pago, partiu-se-me a
carroça. Fui ter com o mestre Zé da Gaita para me fazer um orçamento. Levava
600$00 pelo conserto mas demorava dois meses o arranjo. Está visto que não
podia ser. Então, dirigi-me ao Mestre Valério de Carvalho, que me levou os
mesmos 600$00 e me emprestou uma carroça durante o tempo do amanho.
Mas se as carroças têm história,
que dizer dos burros? “O meu primeiro burro chamava-se “Jeremias”
e pertenceu-me durante 15 anos. Era muito esperto. Conhecia a freguesia quase
tão bem como eu. Quando nos aproximávamos de um monte, eu começava a imitar a
voz do burro e ele continuava a zurrar, como que anunciando a nossa visita. Por
outro lado, se estávamos perto de um local onde morava freguesa com dívida em
atraso, e não convinha por isso pô-la de sobreaviso, dava-lhe um determinado
toque e ele já não zurrava. Era manso, mas se durante os nossos percursos via
uma “moça” da sua espécie, começava a ficar amalucado. Chegava até a morder, se
calhar de raiva por não lhe poder chegar. Tive de me desfazer dele, vendendo-o
ao Mestre Fortunato Guita e comprando-lhe um cavalo por 12 contos, que se
chamava Neco e que tive de vender anos mais tarde porque lhe apareceu uma
pulmoeira. Comprei então uma mula, a que foi dado o nome de “Cigana”.
Para além de registarmos os
acontecimentos mais recentes da vida do nosso entrevistado, recordámos
juntamente, e aproveitamos para transcrever, algumas passagens das peripécias que
foram contadas, já há mais de vinte anos, ao autor destas linhas, que as
publicou então num jornal local. Daí para cá, muitas voltas deu o mundo e as
vidas de cada um de nós.
“Claro que não há nada como a
nossa casa, mas chega uma altura em que, por diversas circunstâncias, somos
forçados a pedir ajuda. Foi o que eu fiz. Mas em boa hora recorri ao Abrigo.
Sempre fui bem tratado. Penso até que todo o pessoal tem muita paciência para
tratar de tanta gente com feitios tão variados. Aqui, como em todos os lugares
semelhantes, todos temos de perceber que tem de haver regras para serem
cumpridas porque, de contrário, isto seria um pandemónio, com cada um a fazer o
que lhe apetecesse. Vejo que muitas vezes há falta de compreensão.”
Sr. Elisiário: Que os anos se vão
sucedendo com a qualidade de vida que bem merece.