NORBERTO
JOÃO PICANÇO
O
nosso entrevistado deste mês é o exemplo de que quando se pretende atingir um
objectivo, todos os obstáculos podem ser ultrapassados, mesmo quando as
condições para lá chegar não são as mais favoráveis.
Assim começa a sua história:
“Nasci no Monte de Sancha Cabeça, freguesia
de S. Mateus, vai fazer 85 anos no próximo mês de Julho. O nosso agregado
familiar, para além dos meus pais, incluía cinco filhos. Ainda muito novinho,
mudámo-nos para o Monte da Lage e depois para o Monte do Passarinho, perto da
Venda do Bravo. Quando tinha sete anos transferimo-nos para o Monte da Fusca,
também ali para os mesmos lados.”
E começou então a sua luta
para alcançar o seu primeiro grande objectivo: aprender a ler.
“Não tinha escola perto, mas havia uma
senhora, de nome Gertrudes do Foro, que contra o pagamento de cinco escudos
mensais, juntava um grupo de rapazes e raparigas num barracão sem as mínimas
condições e, utilizando livros antigos cedidos por pais, por outros familiares
ou amigos, ia ensinando as primeiras noções que nos iam permitindo ler,
escrever e fazer contas. Como já disse, o tal barracão era totalmente
desprovido dos meios de conforto mais elementares. A única coisa boa era que
não chovia lá dentro. Apenas possuia, num dos lados, uma parede digna desse
nome, porque o resto eram paredes mal amanhadas que não evitavam frios
cortantes e permitiam que o vento entrasse por um lado e saisse pelo outro.”
Mas não se ficavam por aqui
as carências de tal “escola”
“Não tinhamos qualquer material escolar. É
claro que não havia carteiras. Eram duas ou três mesas velhas, de dimensões e
alturas diferentes, juntas umas às outras. De um lado sentavam-se alunos em
cadeiras também velhas e, do outro lado, apoiada em duas pilhas de tijolos, uma
tábua servia de assento às outras crianças. Nos dias mais frios a senhora fazia
um lume dentro do barracão, sentava-se num mocho e, para outro mocho colocado à
sua frente, ia chamando cada aluno para ler ali a sua lição. Quando estava vento,
o que era frequente, o fumo ia todo para cima do rapaz ou da rapariga porque a
professora tinha escolhido o lado mais abrigado. De vez em quando mandava um
rapaz ir buscar lá fora uma vara de vime, que haveria de servir para castigar e
bater, algumas vezes, no próprio que a tinha trazido. Porque a D. Gertrudes
quando batia não era nada meiga.”
O nosso amigo Norberto
frequentou estas aulas durante dois anos e já lia, escrevia e fazia contas com
grande capacidade. Aliás, diz-nos que para a aritmética teve sempre vocação.
Porém, e como se compreende, estes conhecimentos não eram reconhecidos, porque
a escola onde andara, não era propriamente uma escola e, por isso, não era
oficial. Havia, portanto, que dar outros passos:
“Terminados estes dois anos, a minha família
e a do meu amigo e colega Luís Torres (conhecido como Luís da Volta) tentaram
inscrever-nos na escola de S. Mateus. Mas já tinham terminado as matrículas e
só havia lugar para um de nós. Fiquei eu. Então, e dados os meus conhecimentos,
entrei logo para a segunda classe, e no ano seguinte fiz o exame da 3ª. E
fiquei por aqui, porque naquela escola rural só se davam aulas até àquele
nível. O Luís acabou por ir para uma escola de Montemor, onde concluíu a 4ª
classe.”
Atingido, ainda que
parcialmente, este objectivo, surge uma mudança na sua vida:
“Com 11 anos havia que começar a trabalhar,
não só porque continuar os estudos não era possível como ainda era necessário
ajudar na economia doméstica. Integrado num grupo de mulheres, comecei por ir
arrancar mato, mais propriamente sargaços, ganhando dois escudos e cinquenta
por dia.”
Até cerca dos vinte seis
anos foi fazendo praticamente todos os trabalhos agrícolas. Porém, por esta
altura começou a desenvolver o segundo sonho da sua vida e que não descansou
enquanto não o concretizou.
“Sempre tive o desejo de um dia vir a ser
tractorista. A certa altura, trabalhava eu para o lavrador Joaquim Falcão
Marques, o feitor, que era o João da Pontinha, perguntou-me se eu não gostaria
de ir aprender a trabalhar com o tractor. Claro que lhe disse logo que sim.
Estava a esgalhar uma oliveira e larguei imediatamente o machado. Então,
disse-me, vai ter ao Monte de Cuncos, porque anda lá o António Marcelino a
charruar com o tractor e pede-lhe que te encaminhe. Cheguei, cheio de
entusiasmo, e ele, que já estaria avisado, mandou-me montar no tractor e foi-me
dando as primeiras instruções. Ainda não tinha decorrido uma hora, largou-me em
cima do tractor e foi-se embora. Claro que cinco minutos depois já eu estava
atascado. Chamei-o, aflito, e ele lá regressou e ensinou-me a forma de sair
daquela situação. E foi assim a minha aprendizagem.”
Mas ainda havia que resolver
outro problema:
“Entretanto, eu precisava da 4ª classe para
poder ir tirar a carta. Então, fui ter com o António Mendonça, que me preparou
para ir fazer exame, o que consegui. Já na posse da tão desejada carta de
tractorista, esta começou desde aí a ser a minha principal actividade.”
Realizado o seu segundo
sonho, a sua vida estabilizou, trabalhando naquilo em que sentia realizado.
“Teria talvez uns quarenta anos, ou pouco
mais, e achando que ganhava pouco, pedi ao meu patrão que me aumentasse mais
cinco escudos, isto é, passasse de cinquenta para cinquenta e cinco escudos
diários. Respondeu-me que não estava disposto a isso. Então, tive a informação
de que na Herdade de Cordeiros, de que era proprietário Augusto Tavares da
Silva, residente no Seixal, tinham necessidade de um tractorista. Dirigi-me lá,
apresentei-me, disse ao que ia e foi-me perguntado quanto queria ganhar.
Respondi que sessenta escudos e, para surpresa minha, o sr. Augusto disse-me
que ficaria com o emprego mas a ganhar sessenta e cinco escudos diários.
Depois, em conversa com o feitor, este disse-me que se o patrão gostasse do meu
trabalho, ele próprio tomaria a iniciativa de me aumentar o salário. E assim
foi. Logo no primeiro sábado começou a pagar-me setenta escudos.”
Chegou o momento de dar novo
rumo à sua vida:
“Estive três anos na herdade dos Cordeiros,
findos os quais tentei a sorte como emigrante. Fui para a Alemanha, mas não
gostei da experiência e ao fim de pouco mais de seis meses regressei à minha
casa no Monte da Fusca. Quando teve conhecimento de que eu havia voltado, o
patrão de Cordeiros convidou-me novamente para voltar a desempenhar o mesmo
serviço, mas agora também como operador de uma ceifeira-debulhadora. Aceitei e
aqui estive mais três ou quatro anos.
Mais tarde foi convidado para
exercer as mesmas funções na Cooperativa Bento Gonçalves, por onde me mantive
mais de vinte anos.”
Quando chegou a altura,
reformou-se, tendo continuado a viver no Monte da Fusca, mas agora sozinho, porque
os pais entretanto tinham falecido e os irmãos cada um já tinha ido à sua vida.
Nunca pensou em casar?
“Ao longo dos anos os meus irmãos foram
arranjando a sua casa e eu fui ficando com os meus pais. Entretanto, o tempo
foi passando, deixei passar a altura certa e quando dei por isso já era tarde.
Mas não estou arrependido porque, afinal, tive sempre uma vida livre e à minha
vontade.”
Está no Abrigo há
aproximadamente cinco anos:
“Tive de tomar esta decisão porque a idade
foi avançando e não tinha condições na casa onde morava. Aqui sou bem tratado e
alinho nas viagens que o Abrigo organiza periodicamente para me ir distraindo.
Gosto de ler, sobretudo jornais, mas não posso abusar porque já fui operado à
vista duas vezes e tenho de ter cuidado.”
O Sr, Norberto é, afinal, um
exemplo de que o desejo de realizar determinado sonho é um factor decisivo para
o poder alcançar.