VITÓRIA
MARIA LOPES SERRA
É uma das últimas “aquisições” do
Centro de Dia.
Diz-se feliz pela opção que tomou e confessa que veio
encontrar um ambiente acolhedor e, pelo menos por enquanto, só pode dizer bem
de toda a equipa.
Apresentemo-la então:
“Chamo-me Vitória
Maria Lopes Serra, completei 83 anos em Fevereiro passado e sou viúva há 9 anos
de João Morraceira. Tenho uma filha – Mila – e dois netos – Mário e Daniela.”
Mas comecemos pelo princípio de tudo:
“Nasci em Lavre, onde vivi até aos 14 anos.
Andei à escola mas não concluí a 4ª classe do ensino primário. Mas sei ler e
quanto a escrever, lá me vou remediando. Aos 14 anos fui para Coruche como
criada doméstica de uma filha do cavaleiro Simão da Veiga. Quando tinha 18
anos, um irmão da minha patroa, recém-casado e que viria a ser o pai do também
cavaleiro tauromáquico Luís Miguel da Veiga, pediu à irmã que me dispensasse, a
fim de ficar ao serviço da sua casa, aqui em Montemor. Porque me sentia bem,
vim um pouco contrariada mas, passado pouco tempo, habituei-me e acabei por
gostar também na nova família que, aliás, me tratou igualmente de uma maneira
impecável. Aqui estive, de forma permanente, durante cinco anos, tendo visto
nascer o Luís Miguel e os restantes irmãos.”
Por esta altura, já com 23 anos, certamente era chegado o momento de
pensar em casamento.
“Isso mesmo. Eu já conhecia o João, que
estava empregado na casa Mouzinho. E foi exactamente com essa idade de 23 anos
que nos casámos, pelo que a partir da
í continuei a ir trabalhar a casa do sr. Luís Fernando da Veiga mas apenas dois dias por semana.”
O casamento originou, como é natural, alteração de morada…
“Quando nos casámos fomos residir para uma
casa perto do que é hoje o Hospital de S. João de Deus. Ficámos aqui algum
tempo e pouco depois fomos morar para a Rua da Estação, onde ainda hoje tenho
casa.”
A nova situação alterou também os seus horários de trabalho…
“Sim. Já não podia estar permanentemente ao
serviço de qualquer família. Assim, depois de casada, e mesmo após enviuvar,
continuei sempre a trabalhar “a dias” em várias casas e tenho a honra de poder
dizer que fiquei amiga de todas essas pessoas, porque em todo o lado fui bem
tratada.”
Mas para além disso, e dada a sua reconhecida competência para a
cozinha e dedo especial para os doces, ainda era frequentemente chamada para
outras situações…
“É verdade. Eu nem sei quantos casamentos,
baptizados e outras festas eu fiz ao longo da minha vida. Só tenho gratas
recordações.”
Sempre muito ligada a Lavre, por laços familiares e sentimentais, a D.
Vitória recorda:
“Tenho realmente por Lavre um carinho muito
especial, porque passei lá a minha infância, porque deixei muitas amizades e
porque tinha ali a minha família. Recordo o meu tio João Domingos Serra,
trabalhador agrícola, cuja figura inspirou uma das personagens que José
Saramago criou em “Levantado do Chão”. Também a minha madrinha e grande mulher
chamada Maria Saraiva, que nos tempos difíceis matou a fome a tanta gente,
ficou imortalizada naquele mesmo livro como “Maria Graniza”.
E desfiando o rosário de recordações, evoca então uma das passagens
mais dramáticas por que passou:
“Quando tinha pouco mais de dois anos,
morávamos então num monte nos arredores de Lavre, a minha mãe abandonou o lar,
levando consigo apenas o meu irmão que teria um ano. Quando vi que a minha mãe
ia a sair, sem ter, evidentemente, a noção de que se tratava de um abandono,
tentei ir atrás dela pela estrada que liga Lavre a Vendas Novas. Fui andando
num grande pranto até que, em determinada altura fui vencida pelo cansaço e por
ali fiquei à beira da estrada, nas proximidades do Polígono, até ser encontrada
por militares que andavam em exercícios e me transportaram para o quartel em
Vendas Novas. Como não poderia ficar ali, o comandante levou-me para sua casa,
até ser encontrada uma solução. O meu pai, já tendo dado pela minha falta e
muito aflito, teve conhecimento de que uma criança tinha sido achada e levada
para o quartel. Foi lá imediatamente e dali foi encaminhado para a casa do
comandante. Confirmada a paternidade, lá me levou de regresso a casa.
Curiosamente, o meu pai nunca me contou
nada disto. Só muitos anos mais tarde é que, por mero acaso, vim a saber de
todos estes pormenores por intermédio de uma senhora que à época era nossa
vizinha e me revelou o que acabo de relatar.”
Parece, na verdade, um episódio de novela. Mas, se bem que com uma vida
bem preenchida, a D. Vitória também passou por maus bocados no que à saúde diz
respeito:
“O pior de tudo foi um grave acidente de
automóvel que sofri perto de Coruche e me atirou, primeiro para o hospital de
Santarém, e depois para o hospital de Évora, num total de oito meses de
internamento e vinte intervenções cirúrgicas.”
Mas como mulher de coragem que é, ultrapassou esses problemas e
continuou a fazer pela vida. Hoje está no Centro de Dia do Abrigo. Por quê ?
“Vivia praticamente em casa da minha filha,
onde estou completamente à vontade e era tratada como sempre fui, até porque
tenho um genro que é tão bom como se fosse meu filho. Porém, como a minha filha
trabalha como cozinheira e está praticamente todo o dia ausente, e eu não tenho
temperamento para andar da casa desta para a casa daquela, passava os dias
sozinha. Então, e porque desde há muitos anos que tinha esta intenção, resolvi
inscrever-me no “Centro de Dia”. E aqui estou desde Julho. Sinto-me imensamente
satisfeita. Para ocupar o meu tempo vou ao ginásio com frequência e ajudo a
descascar batatas, a arranjar feijão-verde e noutras tarefas semelhantes. Agora,
por exemplo, estou a fazer pegas para tachos e panelas a fim de serem vendidas,
para a Feira da Luz, no pavilhão do Abrigo.”
Mais: por sugestão nossa, já foi ter com o maestro André para vir a
fazer parte do coral “Cant’Abrigo”. Na próxima segunda-feira, às 10 horas, lá
estará para o primeiro ensaio.
Um beijo, D. Vitória.