VITÓRIA DE JESUS
Ainda nem nos tínhamos sentado para conversar, já a D.
Vitória nos alertava para o facto de ter uma memória muito fraca e que
certamente poucas recordações iríamos aproveitar. Afinal, e como não é a
primeira vez que acontece, quando começou a desfiar o seu rosário, muitos
factos da sua vida lhe foram surgindo naturalmente, se bem que alguns bastante
desagradáveis.
Viúva
de José Gonçalves há 30 anos, ainda tem os dois filhos que nasceram do
matrimónio: Felícia Vitória e Manuel José Pinto Rebocho.
“Nasci
no Monte do Peso, perto das Brotas, no dia 4 de Agosto de 1921, pelo que tenho
95 anos já feitos. Sou a mais velha de cinco irmãos, dos quais já faleceram
dois. O meu pai era ganadeiro e quando eu tinha sete ou oito anos fomos morar
para a zona do Ciborro, onde ainda frequentei a escola primária, mas sem
aprender qualquer coisa que se visse, porque andei lá muito pouco tempo.”
E andou na escola pouco tempo porquê?
“Como tínhamos muitas dificuldades, o meu
pai cedo me requisitou para o ir ajudar no pastoreio. Comecei assim a ganhar a
vida como ajuda de cabras, sempre ali nas zonas do Rabaçal, Ciborro e S.
Geraldo.”
E continuou trabalhando com o gado ?
“Não. Passados poucos anos, já então
morávamos mesmo no Rabaçal, iniciei o que seria sempre a minha vida. Aprendi e
sabia fazer de tudo: mondar, ceifar, apanhar azeitona, escaldeirar as cepas na
vinha e, enfim, todos os trabalhos do campo que me iam aparecendo.”
E como é normal, surgiu o momento do
namoro…
“Nunca fui namoradeira. Apenas conheci o que
haveria de ser o meu marido e chegou-me bem. Casámos teria eu uns vinte anos. O
José também labutava no campo e foi no trabalho que o conheci. Ele era carreiro
por conta do sr. Gabriel Nunes. Namorávamos nos intervalos do trabalho e nos
bailes que eram frequentes na Freixeira. Quando achámos que estava na altura
certa, juntámo-nos e casámos passada uma semana.”
Foi portanto o momento de dar novo
rumo à vossa vida…
“Já casados, ficámos a residir na Fonte
Santa. O meu marido continuava no mesmo serviço, e para o mesmo patrão, e eu
fazia também aquilo que, afinal, foi e seria sempre a minha vida. Aqui nasceu a
minha filha, que anos depois também casou e foi viver para os Foros de Vale
Figueira, onde ainda hoje mora. Depois de lhe nascerem dois filhos, teve a
infelicidade do seu marido falecer.”
Mas a D. Vitória foi-se mantendo pela
Fonte Santa ?
"Não. Mudámo-nos para uma casa em Montemor, junto
à ponte do caminho-de-ferro. Aqui nasceu o meu Manuel José, que frequentou a
escola e concluiu a 4ª classe. Vivia-se, então, um longo e difícil período.
Enquanto ele estava na escola, e porque comia na cantina, eu ia fazendo o que
me aparecia. Recordo-me de uma altura em que andava a cavar favas na encosta do
castelo. À hora do almoço ia a casa para almoçar, se é que a isso se poderá
chamar almoço. Então, limitava-me a beber um copo de água com um pedaço de pão
seco, regressando logo de seguida para continuar, até ao anoitecer, a cavar
favas. Isto porque se eu comesse ao almoço o pouco que havia em casa, já não
tinha para colocar na mesa ao jantar e então ninguém comia.”
Isso era na verdade angustiante…
“Nem queira saber. Tivemos sempre uma vida
muito difícil, que se agravou por haver muitas crises de trabalho. Veja que o
meu marido, e muitos colegas trabalhadores agrícolas, andaram quase de porta em
porta a solicitar trabalho ou a pedir alguma coisa com que pudessem alimentar
minimamente a família. Eram situações degradantes que só quem passou por elas
pode avaliar e compreender.”
E esta situação manteve-se durante
muito tempo ?
“É verdade. Eu ainda hoje nem quero pensar
no que penámos. Passado algum tempo mudámo-nos para o monte da Sra. da
Conceição. Foi quando o meu marido arranjou trabalho na pedreira de S. Luís e
eu fui com ele para partir pedra, tal como o meu filho que, entretanto, já
terminara a escola. Em S. Luís, e enquanto durou o trabalho na pedreira,
vivíamos numa barraca que nós mesmos tivemos de construir. Isto, claro,
acontecia também com os muitos trabalhadores que lá estavam. Então, íamos
juntando a pedra em montinhos e depois éramos pagos de harmonia com os metros
cúbicos que cada trabalhador tinha conseguido reunir quando uma camioneta vinha
carregar.”
Calculo que seria um trabalho muito
duro.
“Não tenha dúvida. Mas a necessidade a isso
obrigava. Passados alguns anos na pedreira, consegui arranjar trabalho para o
meu filho num talho em Setúbal, onde ainda hoje ele mora e exerce a mesma
profissão. Ficámos então a morar nesta cidade porque o meu marido e eu também
arranjámos trabalho no campo. E quando as coisas pareciam estar a tomar um
melhor rumo, sucede o falecimento do meu marido. Depois de viver sozinha
durante algum tempo, o meu filho quis que eu fosse para casa dele, mas passado
algum tempo tive de recorrer ao Abrigo, onde me encontro há cinco anos.”
Agora, sem saber ler nem escrever,
como ocupa os seus dias aqui no Abrigo?
“Vou conversando e preenchendo os meus dias
com os ensaios e actuações do coral “Cant’Abrigo” e participo também nas
actividades teatrais que aqui se fazem regularmente. Agora mesmo estamos a
trabalhar para esta quadra do Carnaval. Preparamos os fatos para o desfile
carnavalesco e para a “Queima dos Compadres”, cujos protagonistas neste momento
ainda nem sei quem são.”
Mal sabia a D. Vitória, no dia em que
conversámos, o “quente” destino que lhe foi reservado !...