SOFIA
ROSA BREJO
Não sendo, felizmente, caso inédito, bem pelo contrário, é
sempre com justificado júbilo e respeito que se assinala o centenário de um(a)
utente desta Instituição.
Não é todos os dias, não obstante a esperança de vida ter
aumentado substancialmente, que se atinge ainda em boa forma os 100 anos de
existência.
Aliás, aqui no Abrigo têm sido vários os casos de
longevidade que nos orgulhamos de registar. Pois bem: no passado mês de
Janeiro, a nossa utente D. Sofia Rosa
Brejo atingiu essa bonita idade. E estivemos agora à conversa com ela.
Possuidora ainda de uma excelente memória, aqui e ali com
justificados lapsos de pormenor, foi-nos contando:
“Nasci no Monte da Bola, nos arredores da Maia. Numa família com doze
filhos, dos quais estiveram nove vivos ao mesmo tempo. Faleceram os três que
eram mais velhos do que eu. Hoje, apesar de ser a mais idosa, sou a única que
consegui resistir.”
A infância, bem, a infância foi
aquela a que estava destinada a maior parte das crianças que viviam no campo…”
“Não, nunca andei à escola. Ainda hoje não sei ler nem escrever.
Naquele tempo, os mais velhos, sobretudo as raparigas, ajudavam na lida da casa
e a tomar conta dos irmãos mais novos, para que os meus pais pudessem governar
a vida. E assim foi acontecendo até perto dos dezasseis anos, idade com que
“enrreguei” a trabalhar no campo, “sargaçando”, isto é, arrancando o sargaço e
juntando-o em montinhos. Mas depois ainda fiz muitas mais tarefas.”
Nessa idade é tempo de namorar…
“Nunca fui muito namoradeira. Antes do meu marido só namorisquei um
rapaz, mas isso foi breve e sem consequências. Depois comecei então a namorar o
que seria o meu marido, mas nessa altura era tudo às escondidas, porque os
nossos pais, nesses tempos, não viam com bons olhos os namoros das filhas. Com
cerca de 25 anos juntei-me então com o pai dos meus filhos, de nome Francisco
Manuel Bravo, situação que durou até à sua morte, há cerca de 20 anos.”
E então para onde foi viver o jovem
casal?
Fomos morar para o Gandum e depois para o Monte Novo, ali nas Fazendas,
que fazia estrema com a propriedade chamada João Pais. No primeiro daqueles
locais tive dois filhos e o rapaz mais novo já na segunda das habitações.
Enquanto os meus filhos foram pequenos não podia trabalhar fora de casa. Devido
a doença, praticamente já não ia trabalhar para o campo, a não ser a apanhar
umas boletas ou outros serviços do género, até porque também tinha problemas na
vista que me impediam de fazer outros trabalhos”
Já antes desta altura da nossa
conversa, a D. Sofia insistia em contar um pormenor da sua vinda para o Lar do
Abrigo, que eu interrompia prometendo-lhe que mais adiante teria a oportunidade
de referir esse facto. Assim, continuou:
“Mais tarde tive de ficar em casa para tratar do meu marido, que esteve
acamado durante algum tempo. Também ele, nos últimos meses, já não podia
trabalhar e, tendo piorado, ainda foi internado no Hospital em Évora mas estava
já em situação desesperante. E em 1999, tinha o meu marido falecido há uns
meses, fui admitida no “Centro de Dia” do Abrigo. Como se compreende, só
durante o dia estava aqui nas instalações. Tive a sorte de, mesmo por baixo do
portão do Abrigo, morar uma amiga minha, que era conhecida entre nós por
Mariana da Gouveia, mãe da também minha grande amiga Gracinda. Moravam ambas no
mesmo prédio: a filha (e a família) no 1º andar e a mãe do rés-do-chão. Foram
ambas excepcionais e facultaram-me um quarto no rés-do-chão onde eu pernoitava
até em cada manhã seguinte regressar ao Abrigo.”
E parece-me que agora, sim. É chegada
a altura de contar o tal episódio que está desejosa de revelar:
“Esta situação manteve-se durante anos. Uma manhã, em Junho de 2010, estava
eu ao portão, vinda da casa da Mariana, onde dormira como habitualmente,
encontrei um senhor, que julgo ainda hoje ser um então dirigente, que, vendo-me
a chorar, perguntou o que tinha acontecido. E eu respondi-lhe que ainda não
tinha acontecido mas estava prestes a acontecer. É que, contei-lhe, a minha
amiga Mariana ia ser internada em Lisboa para ser operada e disse-me que mesmo
na sua ausência eu poderia continuar a dormir lá em casa. Grande coração. Mas
eu não queria abusar e sobretudo tinha um certo receio de ficar sozinha É que a
filha, que também concordava com a mãe, morava no primeiro andar e eu tinha
medo que de noite me acontecesse alguma coisa e, se calhar, só tarde de mais
dariam por isso. Então, esse tal senhor, de quem ainda hoje não sei o nome,
prometeu-me que iria tentar resolver a situação.”
Então como ficou o caso?
“Cumpriu. E no dia seguinte já eu estava de malas aviadas para vir aqui
para o “Lar”, como residente, onde me encontro até hoje. E digo, e afirmo a
toda a gente, que gosto de aqui estar e sou bem tratada por todos e todas. Apesar
de ter tido dois grandes desgostos, a morte por acidente de trabalho com
tractor do meu filho mais velho e a do meu marido, quis o destino que eu fosse
caminhando até ao centenário e, não havendo nada que substitua a nossa casa,
sinto-me feliz aqui. Ainda no mês passado me fizeram uma festa comemorativa dos
meus 100 anos e foi bonita de se ver. Estavam também presentes a minha filha
Felicidade Maria, o meu filho mais novo, Manuel Filipe, assim como os meus
netos e bisnetos. Obrigada a todos.”
Felicidades, Dona Sofia.