segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

OS NOSSOS UTENTES


ELISIÁRIO ANTÓNIO (PINTO)



 Em Janeiro vai completar 89 primaveras, mas a memória, não sendo já o que era, ainda lhe permite recordar muitos episódios de uma vida que teria muito para contar.

Chamo-me apenas e só Elisiário António. Todos os meus irmãos, e fomos nove, tinham o apelido de Pinto mas eu, ainda hoje não sei por que carga de água, fui o único assim baptizado.”



E foi abrindo o seu álbum de recordações: “Nasci e sempre vivi no Ferro da Agulha, mesmo depois de, com vinte e poucos anos, ter casado com a minha companheira de sempre, de nome Custódia Maria Roque. Devido à idade, e sobretudo à doença da minha mulher, entrámos para o “Centro de Dia” do Abrigo dos Velhos Trabalhadores em Julho de 2007 e porque as nossas condições de saúde se foram agravando, ficámos a residir permanentemente  no “Lar” desta mesma Instituição a partir de Fevereiro de 2010. Foi o melhor passo que demos, e posso afirmar que fomos aqui felizes. No entanto, quis o destino que a minha mulher partisse vai para dois anos. Sinto bastante a sua falta, mas tenho de me conformar porque a vida dá-nos estes desgostos.”


Mas tudo teve um princípio: “Andei à escola na Associação Operária e conclui a 4ª classe. Aliás, de todos os meus irmãos, só o Manuel não aprendeu as letras. Logo depois comecei a trabalhar no campo, como era norma na altura. Uns anos depois, estava eu a trabalhar na Quinta de Santo António e no lagar do Sr. Daniel Borges (ou Daniel Passinha, como era conhecido) fui vítima de uma doença que me impossibilitava de fazer trabalhos pesados. Estando ainda indeciso quanto ao rumo a dar à minha vida, o Sr. Daniel Borges (também proprietário de um armazém de fazendas) chamou-me e disse: - Elisiário, vai tratar da papelada nas Finanças porque a partir de agora vais ser vendedor ambulante. 


E assim foi. Mas ainda havia outras dificuldades a ultrapassar: “Quando me convenci que aquele seria o meu modo de vida no futuro, reparei que tinha uma carroça, mas não tinha burro nem dinheiro para o comprar. Fui ter com o meu irmão Luís, para quem eu tempos antes tinha comprado um animal, e pedi-lhe que mo vendesse. Ele concordou e ajustámos o preço: 750$00 a pagar em prestações semanais. Já equipado, voltei ao Sr. Borges que logo ordenou que me fosse fornecido o material com que haveria de iniciar o negócio. Foi um avio no valor de 5 contos, fiado, porque eu não tinha um centavo. Fiquei sempre reconhecido a esse Homem, que me incentivou e depositou em mim tal confiança, que eu sempre tive a máxima preocupação de merecer pela vida fora.

Comecei então a andar de monte em monte, com a carrocinha, a vender panos, roupas e outros artigos pertencentes ao mesmo ramo. Foi esta a minha actividade até me reformar.

Foi, como é bom de ver, uma vida de sacrifícios: “Saía de casa à terça-feira e só regressava no sábado. Fazia uma volta muito grande, percorrendo muitos quilómetros. Dormia em cocheiras, em palheiros, onde calhava. A segunda-feira estava reservada para ir repor a existência.


Como se não bastasse toda esta labuta, o nosso amigo Elisiário também teve problemas com a sua “viatura”: Seis meses depois de iniciar estas andanças, e já com o burro pago, partiu-se-me a carroça. Fui ter com o mestre Zé da Gaita para me fazer um orçamento. Levava 600$00 pelo conserto mas demorava dois meses o arranjo. Está visto que não podia ser. Então, dirigi-me ao Mestre Valério de Carvalho, que me levou os mesmos 600$00 e me emprestou uma carroça durante o tempo do amanho.


Mas se as carroças têm história, que dizer dos burros? “O meu primeiro burro chamava-se “Jeremias” e pertenceu-me durante 15 anos. Era muito esperto. Conhecia a freguesia quase tão bem como eu. Quando nos aproximávamos de um monte, eu começava a imitar a voz do burro e ele continuava a zurrar, como que anunciando a nossa visita. Por outro lado, se estávamos perto de um local onde morava freguesa com dívida em atraso, e não convinha por isso pô-la de sobreaviso, dava-lhe um determinado toque e ele já não zurrava. Era manso, mas se durante os nossos percursos via uma “moça” da sua espécie, começava a ficar amalucado. Chegava até a morder, se calhar de raiva por não lhe poder chegar. Tive de me desfazer dele, vendendo-o ao Mestre Fortunato Guita e comprando-lhe um cavalo por 12 contos, que se chamava Neco e que tive de vender anos mais tarde porque lhe apareceu uma pulmoeira. Comprei então uma mula, a que foi dado o nome de  “Cigana”.


Para além de registarmos os acontecimentos mais recentes da vida do nosso entrevistado, recordámos juntamente, e aproveitamos para transcrever, algumas passagens das peripécias que foram contadas, já há mais de vinte anos, ao autor destas linhas, que as publicou então num jornal local. Daí para cá, muitas voltas deu o mundo e as vidas de cada um de nós.


“Claro que não há nada como a nossa casa, mas chega uma altura em que, por diversas circunstâncias, somos forçados a pedir ajuda. Foi o que eu fiz. Mas em boa hora recorri ao Abrigo. Sempre fui bem tratado. Penso até que todo o pessoal tem muita paciência para tratar de tanta gente com feitios tão variados. Aqui, como em todos os lugares semelhantes, todos temos de perceber que tem de haver regras para serem cumpridas porque, de contrário, isto seria um pandemónio, com cada um a fazer o que lhe apetecesse. Vejo que muitas vezes há falta de compreensão.”


Sr. Elisiário: Que os anos se vão sucedendo com a qualidade de vida que bem merece.


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

OS NOSSOS UTENTES


JOAQUINA ADELAIDE

Chamo-me Joaquina Adelaide, mas lá para os meus lados sempre fui conhecida como “Joaquina Sacristoa”, alcunha que me vem do facto do meu pai ter sido sacristão.Foram estas as primeiras palavras proferidas para início da nossa conversa deste mês.


E continuou a desfiar o seu rosário de recordações: Nasci há 87 anos em S. Romão, que à data era freguesia mas que mais tarde acabou por ser anexada a S. Cristóvão. Cedo comecei a trabalhar no campo, porque havia que contribuir para o orçamento familiar. Nunca fui à escola, não só porque ficava longe mas também porque, por esses anos, não era reconhecida tal utilidade nos meios rurais. E hoje tenho pena, porque apenas sei desenhar o meu nome e poucas letras conheço.

Aos 26 anos, a sua vida deu uma volta: Conheci pouco antes o que haveria de ser meu marido e casei-me com essa idade.. Chamava-se Joaquim Inácio aquele que partilhou comigo os meus anos mais felizes. Tinha uma barbearia e uma oficina de bicicletas na Torre da Gadanha e foi aí que vivemos até ao seu falecimento, há perto de 20 anos.

A D. Joaquina nunca parou: Durante aqueles anos na Torre, trabalhei muito a ajudar na matança de porcos, migando carnes e fazendo enchidos, para serem vendidos no estabelecimento de João António Mira Gião, que infelizmente faleceu há poucos meses. Ao serão, ou quando ali não havia serviço, era costureira de calças de homem.

E foi recordando: Com o falecimento do meu marido, o meu mundo desmoronou-se. Nunca tivemos filhos e já não tinha familiares próximos, a não ser três sobrinhas. Fiquei praticamente sozinha e a minha vida alterou-se completamente. Vim para Montemor, para uma casa na Travessa do Espírito Santo e, presentemente, resido na Travessa da Cruz da Conceição.

Mas nunca deixou de labutar: Já viúva, continuei a trabalhar. Durante uns anos ia ao Monte das Colheireiras ajudar uma senhora, chamada Ana Glória, na lida da matança dos porcos, nos enchidos e, ainda, na queijaria.

Mas não ficou por aqui: Anualmente, ia um mês para o Algarve, mais propriamente para Cabanas de Tavira, acompanhar e tratar de uma senhora viúva, cega e praticamente sem ouvir, que ali tinha uma moradia e ia passar as suas férias. No resto do ano estava num lar em Alhos Vedros. Apenas lá fui dois anos porque, entretanto, a senhora faleceu.

Até que …: Com os anos a passarem e tendo fracturado um braço, o que me impedia de fazer certos trabalhos, pedi auxílio ao Abrigo, onde estou no “Centro de Dia” há cerca de três anos. Tenho sido muito bem tratada mas, como deve compreender, não há nada que chegue à nossa casinha. E nem quero pensar no dia em que as coisas da minha casa, reunidas ao longo dos anos com tanto trabalho e carinho, serão desmanteladas e possivelmente muitas delas atiradas para o lixo. É doloroso.

Aqui no Abrigo, a D. Joaquina ocupa os seus tempos de ócio a ver televisão, a conversar e a participar nas viagens e nas actividades sócio-culturais que periodicamente têm lugar.
Nunca tive, e continuo a não ter, feitio para estar desocupada e, então, ofereci-me como voluntária para pôr diariamente a mesa de todos os utentes nas principais refeições servidas no Abrigo. É a maneira de ocupar o tempo e de continuar a sentir-me útil.

Que possa continuar por muitos anos!

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

OS NOSSOS UTENTES



 JOAQUIM MARTINHO DOS SANTOS

O nosso entrevistado deste mês é sobretudo conhecido como “Joaquim da Cabrela”, alcunha que lhe vem, como é habitual nestes casos, do facto de ter nascido, há 80 anos, num local com este nome. E foi no Monte da Cabrela que viveu até aos 27 anos, altura em que se casou com Florentina da Visitação Catarro.

Labutou no campo até aos 30 anos, após o que enveredou pela actividade de pedreiro. Aprendeu depressa a profissão e passados dois ou três anos tentou a sua sorte em Lisboa, visto não achar justo já estar a exercer as funções de oficial mas a ganhar como servente.

“Na capital comecei ao serviço do empreiteiro Jaime Bibe, mas durante os treze anos em que trabalhei por aqueles lados conheci outros patrões. Por causa da escola do meu filho, estava lá sozinho. Aluguei um quarto com cozinha e vinha a casa, de motorizada, quase todos os fins-de-semana. Só durante as férias escolares é que tinha mais tempo a família junto de mim.”

O nosso amigo Joaquim recorda ainda que depois esteve em Setúbal durante cerca de três anos, após o que se mudou para a Moita do Ribatejo. “Estive aqui a trabalhar na Novobra, ao serviço da qual percorri quase todo o país, juntamente com os engenheiros da firma, a marcar obras. Durante este tempo fiz dois cursos de especialização, numa escola técnica da Moita”.

Regressou a Montemor por volta de 1976, convidado para fazer parte de uma cooperativa de construção civil. “Tudo parecia ir correr às mil maravilhas. Tínhamos trabalho, fizemos bairros em S. Cristóvão e Foros de Vale de Figueira e várias moradias em Montemor. Ao fim de três anos, as coisas começaram a correr mal, por circunstâncias que agora já não quero sequer recordar, e fomos forçados a desistir. Comecei por ter muitas esperanças neste projecto, mas acabou por ser o passo mais mal dado da minha vida.”

Joaquim Martinho dos Santos ingressou depois nos quadros da Câmara, como responsável pelos trabalhos da sua especialidade. Aqui permaneceu durante 24 anos, até se reformar. 

“Entretanto, a minha mulher, que há vários anos se tinha lesionado seriamente na coluna, devido à queda de uma oliveira, quando procedia à apanha de azeitona, viu o seu estado de saúde a agravar-se progressivamente e fomos forçados a recorrer ao Abrigo. Primeiro no “Centro de Dia” mas, devido ao facto de, pouco depois, ela ter fracturado uma perna, a nossa situação piorou e acabámos por aqui ficar como residentes. Infelizmente, a doença foi mais forte e a minha companheira de toda a vida acabou por falecer em Março de 2011.”

Conhecido de várias gerações de pescadores desportivos, o Sr. Joaquim Martinho dos Santos era figura incontornável em todos os concursos de pesca à linha nas barragens e albufeiras da região, e não só. “Desde miúdo que tenho a paixão pela pesca. Dei os meus primeiros passos com apetrechos rudimentares e, mais tarde, fui-me munindo com material já mais adequado à alta competição. Claro que a idade já não me permite desfrutar tão frequentemente do meu passatempo favorito, mas ainda o ano passado fui a um concurso promovido pelos Serviços Sociais da Câmara.”

Como nos revelou, o facto de já não poder exercer, com a assiduidade que gostaria, aquela actividade lúdica que, ainda assim, exige esforço físico, isso não significa que desperdice os seus tempos livres: “Troquei as canas de pesca pelas ferramentas. Ultimamente tenho-me dedicado a construir, em madeira, miniaturas tão diversas como os vários utensílios de cozinha, instrumentos de trabalho agrícola e outras peças que acodem à minha imaginação. Neste momento estou a arquitectar um barco, que até à sua conclusão ainda tem muitas voltas a dar”

Sabemos que muitos destes trabalhos têm sido expostos em diversos eventos e mostras artesanais, sempre com a admiração de quem sabe apreciar esta arte na sua forma mais pura.

Aqui deixamos algumas fotos ilustrativas dos seus trabalhos.


 





quinta-feira, 6 de setembro de 2012

OS NOSSOS UTENTES



Sofia Machado: uma vida com história

Revela-se tarefa impossível pensar, sequer, que vamos conseguir contar, no espaço disponível, a história de vida de uma família que conheceu durante anos a angústia, a aflição e a incerteza do que seria o seu dia seguinte.
 

SOFIA MARIA SANTOS MACHADO é utente deste Abrigo e tem 83 anos. Foi casada durante 58 anos com João Joaquim Machado, também conhecido como “Machadinho”, falecido em Março deste ano. Deste enlace nasceu uma menina, a Maria Margarida, hoje com 56 anos, que também ficou marcada para a vida inteira pela perseguição movida injustamente ao seu pai.



“A minha infância e juventude foram sempre difíceis”, confessa a nossa entrevistada deste mês. “Sendo a mais velha de dez irmãos, cedo tive de assumir as minhas responsabilidades e contribuir para a economia do lar. A certa altura, o meu pai arrendou uma pequena fazenda para ir aproveitando a mão-de-obra dos filhos, ainda crianças, que não tinham idade para trabalhar por conta de outrem. Depois, e de acordo com a idade que tinham, assim era a tarefa que lhes era destinada quando passavam a trabalhar por conta dum patrão. Isso acontecia entre os 10 e os 13 anos. Vivíamos então no Monte das Forneiras e a escola mais próxima situava-se em S. Mateus. Como eram muitas as crianças por aqueles lados e havia apenas uma professora e uma sala, tínhamos de esperar que houvesse vaga para assistirmos às aulas. A minha mãe, que sabia ler e escrever, foi-me ensinando em casa as primeiras letras e os números, de modo que, quando consegui lugar na única sala, a professora, de nome Marieta Marques Martins, pôs-me logo na 2ª classe. Todos os meus irmãos aprenderam a ler, ainda que ali só se leccionasse até à 3ª classe. Muitas vezes abalei de casa com a minha mãe, ainda mal se via, para estarmos cedo à porta da escola a fim de tentar um lugar na sala.”

E a D. Sofia, sem a necessidade de lhe fazermos perguntas, continuou: “Terminada a escola, era eu que estava incumbida de ir tratando dos meus irmãos mais novos, que iam nascendo em média um de dois em dois anos. Com 11 anos iniciei-me nas tarefas agrícolas mais leves, mas logo um ano depois comecei os mais difíceis, os de enxada ou foice na mão, como por exemplo a sachar grão, milho, feijão, ceifar, etc. Com apenas 13 anos já trabalhava para outros patrões, de sol-a-sol, ceifando e fazendo todo o género de serviços rurais, a distâncias de bastantes quilómetros de casa, palmilhando pelos campo fora, até chegar antes do nascer do sol ao trabalho, onde me era exigido fazer o mesmo que uma Mulher. Regressava a casa já noite dentro. Era assim nesses anos…”

Saltando no tempo, adiantou: “Casei em Fevereiro de 1954. Tinha então, já na altura, uma noção perfeita do que me esperava, pois sabia e compartilhava as ideias e convicções do meu marido que, aliás, já em solteiro havia sido preso três vezes por motivos políticos.” E recorda um dos muitos episódios de que a sua vida está recheada: “Quando casámos, fomos morar para o Monte do Machado, também perto de S. Mateus. Em Maio, de 1961, o meu marido deixou de poder ir dormir lá a casa, embora lá fosse comer as refeições, mas sempre com muitas cautelas, porque sabia que a Pide andava a querer apanhá-lo. Numa noite desse mês fui acordada, por volta das 4 horas da manhã, com umas pancadas brutais que davam contra a minha porta. Pensei logo o que era, estava sozinha com a minha filhinha de 5 anos, saltei da cama e perguntei quem era, enquanto mergulhava um vestidinho vermelho num alguidar com água. Aqui devo esclarecer que nós tínhamos combinado um sinal de aviso: se eu me apercebesse de algum perigo, pendurava um vestido da nossa filha num estendal que havia frente à casa e, nesse caso, ele afastar-se-ia de imediato. Responderam que era a autoridade e que abrisse imediatamente a porta. Abri e vi um enorme aparato policial de GNR’s e PIDES, um deles de metralhadora em punho, direita a mim, perguntando pelo meu marido. Disse-lhes que não sabia. Peguei no vestido e fui para sair mas eles desconfiaram e impediram-me. Apesar dos meus protestos dizendo que o vestido fazia falta para a criança vestir, eles tiraram-mo das mãos, dizendo que ele não precisava de nenhum sinal e não me deixaram sair de casa.(*) Fiquei naturalmente em pânico. A sorte é que o João, escondido numa seara próxima aproximava-se de casa sempre muito devagar e com redobrada atenção. Lembro que era de noite e não havia nenhuma luz mas, mesmo assim, ele lá conseguiu vislumbrar uns vultos (havia jipes parados e homens que circulavam à volta do Monte) e fugiu. Os guardas e pides revistaram toda a casa, vasculhando tudo e mais alguma coisa, procurando quaisquer vestígios ou elementos comprometedores. Não encontraram nada. A quantidade de agentes e jipes era tanta, que deu para fazer o mesmo, e ao mesmo tempo, a várias Famílias vizinhas e, inclusivamente, na casa dos meus sogros.. De seguida, metade daquele aparato ficou junto de mim e da casa e o restante dirigiu-se para um monte, chamado Ricolme, onde morava o meu cunhado Manuel, irmão do João, pensando que ele estaria lá escondido. Ainda antes de perguntarem fosse o que fosse ou dizerem quem eram, começaram logo a disparar tiros contra a porta. A minha cunhada chorava, com o filho ao colo, e o meu cunhado pegou na espingarda de caça que tinha, pois pensavam que eram assaltantes. Finalmente lá disseram que era a autoridade e o meu cunhado abriu logo a porta, dizendo que podiam ter informado mais cedo, pois não tinha nada a esconder. Não mataram ninguém porque a porta era resistente e as balas ficaram lá cravadas durante muitos anos. Depois de virarem tudo do avesso lá concluíram que o João não estava. A minha cunhada, quando conseguiu falar, pois apanhou um “susto de morte” e perante aquele aparato e brutalidade, disse: Hiiii! É preciso isto tudo para prender um Homem tão pequeno e que não faz mal a uma formiga?...”

E o relato continua, sem pausas nem dúvidas: “Na sequência destes acontecimentos, o meu marido viu-se forçado a sair desta área e, sob nome fictício, andou por esse Alentejo fora, sempre a pé, no meio de matos e searas, evitando as estradas e veredas para não ser visto por ninguém. Passou fome e sede. Chegou a comer folhas das faveiras num faval, de noite, para matar a fome e para beber água atava os lenços, que tinha com ele, uns aos outros para chegar à água dos poços e depois espremia-os na boca, para vencer a sede. Contou com a solidariedade e coragem de muita gente do Povo de Montemor e doutras terras por onde passou, que do pouco que tinham, algumas vezes dividiram com ele um almoço ou um jantar e lhe deram dormida. Mas muitas noites foram passadas debaixo das árvores ou onde calhava, com frio ou chuva. Assim foi caminhando até chegar à zona de Vila Viçosa, onde ninguém o conhecia. Procurava qualquer trabalho para conseguir o seu sustento. Trabalhou nas pedreiras e no que lhe foi surgindo. Esteve lá perto de um ano, período durante o qual só o vi por três vezes, e sempre em locais diferentes.”

Mas o pior ainda não tinha surgido: “Certamente por denúncia, uma patrulha da GNR acabou por o prender, no dia 13 de Maio de 1962. Levaram-no primeiro para o quartel de Vila Viçosa e logo depois para a sede da Pide em Lisboa. Só em finais de Junho tive conhecimento, por informação particular, que o meu marido estava preso. Fui logo com a minha filha à rua António Maria Cardoso, a fim de saber o que se passava e de o ir visitar. Disseram-me de imediato que ele não tinha visitas mas que passasse para outro gabinete porque queriam conversar comigo. Separam-me da minha filhinha, que tinha então 6 anos, não obstante os meus protestos. Acabámos por ser ambas interrogadas em separado, durante toda a tarde. Nem por uma miúda tiveram o menor respeito. De mim queriam saber, essencialmente, quem é que me tinha dito que o meu marido estava preso, e muitas outras questões, tentando apanhar-me em contradição. O agente da Pide que me interrogava ia dando fortes pancadas numa secretária, que me faziam tremer dos pés à cabeça. Respondi sempre o mesmo, que tinha ido á Vila de Montemor e ouvia nas ruas toda a gente a comentar que o João Machado tinha sido preso. Esta conversa ouvia-se à porta das tabernas, das lojas, das pessoas que andavam na rua, por todo o lado, mas eu nem conhecia as pessoas que o diziam, era tanta gente…
Disse que estava ali para saber se era verdade e, se fosse, para o ver. Confirmaram a sua prisão mas não me deixaram vê-lo. À menina soube depois que lhe perguntaram se ia lá a casa alguém que não conhecesse, que não pertencesse à família, se se juntavam lá pessoas em reunião, etc.. Ela tremia de medo, sem saber de mim, a prever o que se estava a passar com o Pai... e tão pequena… Isto durou toda a tarde, só nos deixando sair após a hora da camioneta que vinha para Montemor. Não consegui ver o meu marido, nem saber nada dele (só que estava lá), nem regressar para Montemor. Assim estava sozinha, numa rua de Lisboa que não conhecia, perto da noite, com a minha filhinha agarrada á minha mão e a pensar o que fazer, ainda com a cabeça atordoada com tudo o que estava a passar. Só desta vez o João esteve preso durante 6 anos, durante os quais foi sujeito às mais diversas e brutais formas de tortura.

Apesar de ter vivido anos de angústia, aflição e desespero, nem um só dia se arrependeu de ter escolhido o seu João Machado para marido: “Nunca. Para além do amor que nos unia, eu estava consciente dos riscos que corríamos. Mas sabia também que a forma de o meu João idealizar a vida era correcta. Afinal, o seu “pecado” era apenas o de querer pão e justiça social para todos os portugueses. Foi simplesmente por defender isto que foi incessantemente perseguido e esteve detido nas masmorras políticas por várias vezes (cinco), num total de cerca de 10 anos, um castigo pior do que se fosse um malfeitor. Nunca roubou nem fez mal a alguém. Somente defendia os seus ideais, que eram a Paz, Liberdade e Justiça Social. Era um homem justo e bom.

Como avisámos no início, era impossível em tão curto espaço darmos conta da dimensão desta família, que viveu durante largos anos em constante sobressalto mas nunca abdicou de lutar para ver concretizados os seus sonhos.

Para terminar, revelamos o que, um dia, a neta da D. Sofia lhe disse: “A avó foi uma pessoa inteligente. Soube escolher para marido um Homem Bom, como toda a Gente que o conhece diz e que dedicou toda a sua vida a uma causa que visava apenas justiça social para todos”.

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(*) – Nota: Este episódio, em jeito de conto, e com o título de “O Sinal” faz parte de um capítulo do excelente livro “Outros Contos de Vila Nova”, da autoria de João Luís Nabo, cuja leitura nos permitimos recomendar.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O ABRIGO esteve na Feira da Luz


Mantendo uma tradição que já vem de longe, o Abrigo dos Velhos Trabalhadores esteve novamente presente no importante certame que anualmente acontece em Montemor e que dá pelo nome de “Feira da Luz/Expomor”.

 Para além da sua reconhecida importância em termos económicos, a Feira proporciona diversão e conhecimentos culturais a todos os milhares de pessoas que ali acorrem durante seis dias, para além de ser também pretexto para reunir familiares ou amigos que a vida separou geograficamente e que naqueles dias voltam a abraçar-se.

 

O Abrigo mais uma vez esteve representado com um pavilhão, onde havia bastantes motivos para ser visitado. 
 

Realizados pelas habilidosas mãos das nossas utentes, ali puderam ser vistos, apreciados e adquiridos laboriosos trabalhos em tecido e croché, nomeadamente saquinhos, pegas e almofadinhas, simples ou contendo sabonetes ou ervas aromáticas, como, por exemplo, a alfazema. 


Não faltavam também as tradicionais rifas, onde era sempre garantido um valioso e útil prémio.
E o que dizer daqueles biscoitos, com sabor a limão, ou ainda do bolo, a que o coco dava um toque de requinte, que podiam acompanhar um cafezinho que as nossas colaboradoras ou voluntários(as)  também ali serviam com simpatia? Excelente!

Entretanto, podia dar-se uma vista de olhos pelos painéis que mostravam, nas dezenas de fotografias expostas, vários aspectos da nossa realidade, tais como o dia-a-dia dos utentes, as actividades de animação sócio cultural, os passeios, a colónia de férias e, também de enorme importância, algumas fases das obras de remodelação e ampliação das instalações do edifício, que ainda estão a decorrer.


Claro que quem ali se deslocou estava consciente de que ao adquirir alguns dos nossos produtos, estava simultaneamente a contribuir para uma obra cada vez mais necessária e que a todos engrandece. Bem hajam!