terça-feira, 17 de janeiro de 2017

OS NOSSOS UTENTES

ANTÓNIO PEDRO DANIEL DOS SANTOS


Após as Festas de Natal, a conclusão de mais um ano e a realização das Janeiras e do Concerto de Ano Novo, a cargo do Coral “Cant’Abrigo”, sob a direcção do maestro André Banha, chegou o momento de realizarmos mais uma entrevista.

E as primeiras palavras do nosso entrevistado, que se repetiriam ao longo da conversa, foram “não sei nada” e “não percebo nada disto” quando, afinal, até acabou por se mostrar colaborante.

Vamos então ouvi-lo:

Nasci num monte chamado Casa Nova do Passa Figo, ali para os lados do Paião. Sou o mais velho de 6 irmãos (3 rapazes e 3 raparigas) dos quais já faleceu uma das minhas irmãs. E depois de uma infância normal, para o que eram as condições da época, até fui aprender a ler. Não numa escola oficial, mas com uma senhora já de idade, que suponho que não professora, que sob a alpendorada do Monte do Foro, perto da Fidalga, reunia um grupo de rapazes e raparigas para ensinar as primeiras letras. Ficámos a saber ler e escrever mas sem fazermos exame.”

Isso significa que ainda hoje não tem qualquer diploma escolar…

“Mais tarde, já em adulto, fiz o exame da 3ª classe aqui em Montemor. Foi examinador o sr. Prof. Feliciano Oleiro, uma excelente pessoa de quem guardo boas recordações. Recordo-me ainda de uma pergunta que ele me fez e me deixou atrapalhado, e que só depois compreendi o seu alcance. Disse-me então que, à porta de um templo, os fiéis contribuíam com donativos, alguns de elevado valor provenientes dos homens mais ricos. Ao mesmo tempo, um pobre homem apenas deixou uma esmola muito modesta. E perguntou-me então o sr. Professor qual era, na minha opinião, a contribuição mais valiosa. Perante a minha hesitação explicou-me que a deste pobre homem era a mais importante, porque, apesar de humilde, dera tudo o que possuía, ao contrário dos outros que apenas tinham contribuído com uma pequena parcela da sua imensa riqueza. Concordei e nunca mais me esqueci desta lição.”


O nosso Amigo António fará 86 anos no próximo dia 31 de Março. É viúvo de Porfíria Maria Roque, já falecida há perto de dezassete anos. Não tiveram filhos. Mas recuemos um pouco:

“Comecei cedo a trabalhar. O meu avô era pastor e eu ajudava-o nessa lida. E teria pouco mais de 12 anos quando comecei a ceifar e aos 14, na herdade de Vale de Nobre, perto da Torre da Gadanha, comecei a fazer todos os trabalhos agrícolas, que fui continuando até me reformar. Entretanto chegou também a idade dos namoricos. Gostava bastante de ir aos bailes que se realizavam ali nas Fazendas e ainda namorei uma meia dúzia de moças.”

Até que…

“Tinha que se dar. Com 25 anos juntei-me com a minha Porfíria e só mais tarde casámos oficialmente. E fomos sempre os dois trabalhadores agrícolas. Quando casámos fomos morar para o monte do Valverde, junto a S. Mateus. E éramos felizes. Mas o pior estava para acontecer. Um dia, a minha mulher foi operada em Évora a uma hérnia estrangulada. As coisas não correram bem e ainda foi transferida para Lisboa para o hospital S. Francisco Xavier, mas não a conseguiram salvar.”

Foi um duro golpe…

Nem me quero lembrar. Quando enviuvei estive um tempo no Pinhal Novo em casa da minha irmã Maria. Mais tarde foi morar num anexo da casa do meu irmão Florentino que morava, e mora, aqui na Rua Fernando Namora. Já então recebia o apoio domiciliário do Abrigo e só em Junho último passei à condição de “residente”.

Como sabe ler, certamente que ocupa parte do seu tempo na leitura de jornais, revistas ou livros.

“Não, hoje já não tenho paciência nem disposição para ler e, muitas vezes, nem sequer para ver televisão. Já me falaram no coral e no grupo de teatro, mas a gente chega a uma certa idade em que deixa de ter interesse seja pelo que for. Não é por isto nem por aquilo, mas apenas porque já nada me apetece. O ano passado ainda fui passar uma semana à praia e confesso que até gostei. E pode ser que este ano volte a acontecer. Vamos ver como me sinto quando chegar a altura.”

Amigo António. Vamos lutar contra essa falta de interesse. Temos de aproveitar todos os momentos em que podemos ser felizes.