terça-feira, 23 de dezembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

MANOEL  ELISEU

Com o final do ano a poucos dias de distância, entrevistámos um utente do Abrigo que, curiosamente, faz anos exactamente neste mês de Dezembro. Nasceu em 1920 e, portanto, acabou de fazer 94 primaveras, ainda que nem tudo na sua vida tenham sido rosas. Também lhe trouxeram alguns espinhos.
Foi casado durante 68 anos com Leonarda Maria, que veio a falecer em Fevereiro de 2011. Tem dois filhos, um com 71 anos e outro com 69.
Vamos saber alguns pormenores da sua história de vida:
“Nasci no Ciborro, lá fui criado e sempre vivi, com excepção de uns anos que estive emigrado em França e de uns outros em que trabalhei em Alhandra. Com a idade de 7 anos ingressei na primeira classe da instrução primária, vivia então na aldeia. Entrei no dia 7 de Outubro, mas nem cheguei a aquecer o lugar porque entretanto fomos viver para a herdade da Zambujeira, onde o meu pai era rendeiro. Um dia, ele foi à feira de Borba e comprou lá uma vara de cinquenta porcos para engorda. E aqui começaram os meus problemas escolares. Para que o meu pai pudesse tratar de todos os outros assuntos, pôs-me a mim, provisoriamente, a guardar os animais por breves períodos. Mas depressa o provisório passou a definitivo e, passados dois meses, já não havia escola. Para além disso, os meus pais tiveram 13 filhos, ao mesmo tempo estiveram vivos onze, e havia que dar comida àquelas bocas,  e todos os braços eram poucos para trabalhar. Estivemos nesta propriedade durante 33 anos e a família sempre ali trabalhou por conta do meu próprio pai.”

A adolescência já aí estava e, com ela…
“Com cerca de 19 anos começaram os namoricos. O primeiro namoro não resultou, mas logo na segunda tentativa conheci aquela que viria a ser a minha mulher. Mas, mesmo assim, o namoro teve fases que nem sempre foram fáceis, sobretudo enquanto estive na vida militar. Como não sabia ler nem escrever, as cartas que a namorada me enviava eram lidas e respondidas por um camarada de armas.”

Entretanto a tropa acabou e…
Pouco tempo depois de regressar à vida civil decidimos casar. Eu tinha 22 anos e a Leonarda tinha 16. Em Agosto de 1943, quando nasceu o primeiro filho, tinha feito os 17 anos em Maio.”

E trabalhou sempre por conta do seu pai ?
“Não. Em certo momento tornei-me independente e meti-me a seareiro por conta própria, ainda que na mesma propriedade da Zambujeira. Porém, como a renda que pagava era muito cara, isto é, um terço ou um quarto do valor da colheita, vi-me forçado a desistir ao fim de três anos. E a partir daqui fui obrigado a trabalhar no campo, nas mais variadas tarefas, por conta de outros patrões.”

Mas deu outras voltas …
Em 1964 tentei a minha sorte como emigrante, em França. Estive lá sempre sem a minha mulher e só vinha a casa uma vez por ano. Trabalhei duramente, sempre na agricultura, e sacrifiquei-me muito porque a minha ideia era a de amealhar o suficiente para comprar ou mandar construir uma casinha. Quando regressei, em 1968, tinha conseguido alcançar esse objectivo. E o regresso nessa altura foi apenas porque tinha cá os meus pais e os meus sogros e não podia abandoná-los.”

Mas ainda não ficou por aqui…
“Claro que não. Algum tempo depois, um meu irmão que  era encarregado de uma quinta, em Alhandra, convidou-me para ir para lá trabalhar com ele. E fui. De seguida, ainda em Alhandra, estive empregado uns quinze anos em diversas fábricas onde eram produzidos ou manuseados pesticidas e outros produtos com componentes químicas tóxicas, o que me arruinou a saúde e me obrigou a reformar-me por invalidez com 63 anos.”

Depois de ter vindo de França, nunca pensou regressar lá?
“Curiosamente, em 1975 fui chamado pelo meu antigo patrão em França, convidando-me a regressar. Garantia-me emprego não só para mim, como também para a minha mulher e para o meu filho. Estava na altura em Alhandra a trabalhar com o meu irmão e não aceitei.”

E como foi a sua vida depois de reformado?
“Fui sempre mexendo, mas algum tempo depois enviuvei e fiquei a viver com o meu filho mais novo que, com graves problemas de saúde, eu não podia abandonar. Porém, o meu filho mais velho, que é emigrante na Alemanha há mais de quarenta anos, regressou provisoriamente a Portugal e ao Ciborro para orientar o irmão e a casa onde vive. A minha saúde também se ia degradando e eu não queria ser mais  um peso para o meu filho. E assim, não tive outra alternativa senão a de pedir ajuda ao Abrigo, onde me encontro como residente há perto de dois meses.


Chegados ao fim da nossa conversa, aproveitamos a oportunidade para endereçar a todos os Utentes, Funcionários(as), Colaboradores(as), Voluntários(as), Membros dos Corpos Sociais e Leitores desta página, UM NATAL FELIZ e um NOVO ANO sobretudo com MUITA SAÚDE !!!


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A ESTRELA DE NATAL BRILHOU NO ABRIGO

E a tradição vai-se mantendo ano após ano.

No dia 16 de Dezembro, a Festa de Natal aconteceu, com a estrela anunciadora do nascimento de Jesus a brilhar no Abrigo dos Velhos Trabalhadores de Montemor-o-Novo.


Com uma versão absolutamente livre do conhecido conto tradicional, que relata a história de “A Cigarra e a Formiga”, adaptada por José Manuel Brejo, que também dirigiu e encenou a peça, contando com a preciosa colaboração de Céu Mestrinho, a sala encheu-se para ver os artistas. E estes deram o seu melhor, na expectativa de se encontrar entre a assistência algum agente artístico que propusesse um contrato chorudo.
Mas vamos dar conta das personagens e respectivos intérpretes:

Formiga – Leopoldo Gomes
Cigarra – Salvador Boleto
Mãe da Formiga – Otília Brejo
Mãe da Cigarra – Angelina Merendeira
Criado da Cigarra – Joaquim Martinho dos Santos
Outras Formigas – José Manuel Brejo, César Arraiolos e Narcisa Ferreira
Dona de Casa que persegue as formigas – Albina da Visitação
Guarda – Francisco Tira-Picos
Ofertantes:
       Joaquim Martins – 1 farinheira
      José Grulha: 1 pão de quilo
      António Lopes: 1 saco de trigo
      Angélica Ferro: 2 mantas
Estrela – Luísa Aldinhas
Virgem Maria – Rosa Cigarro
S. José – Manuel João Cigarro
Narradoras – Céu Mestrinho, Basilissa Pernas e Rosária Baixo


 Muito aplaudido, todo o elenco artístico agradeceu e deu lugar ao “Coral Cant’Abrigo”, sob a direcção do maestro André Banha, que brindou a assistência com um tema alusivo ao Natal.


Depois foi a distribuição das prendas, o lanche e no final um bailarico, onde alguns pares ainda puderam dar ao pé.

… E O ÊXITO REPETIU-SE

Mal seria que um espectáculo com aquela envergadura se limitasse a uma única sessão. Assim, logo dois dias depois subiu de novo à cena “A Cigarra e a Formiga”, agora no ginásio do Abrigo, cujo espaço permitia receber um maior número de  espectadores.
E foi uma sala esgotada que teve a sua oportunidade de apreciar o trabalho das actrizes e dos actores, onde pontifica o experiente Leopoldo. E para gáudio da assistência, a peça até meteu efeitos especiais.
No final da representação, muito ovacionada, também o “Coral Cant’Abrigo” dirigido por André Banha, contemplou os presentes com duas canções tradicionais e um tema natalício. Voltaram a ouvir-se fartos aplausos.


E assim terminou em beleza a manhã do dia 18 de Dezembro.
Parabéns a todos os intervenientes.
Na plateia, para além de gente da casa, podiam ver-se utentes do Centro Social e Paroquial do Ciborro, da Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Novo, da Casa João Cidade e da Cercimor a quem, conforme informações recolhidas no final, o espectáculo agradou.

O Abrigo agradece a vossa presença e deseja a todos um Feliz Natal e que o Novo Ano nos traga muita saúde.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

ETELVINA MARIA PREGUIÇA

Com 80 anos bem conservados, a nossa entrevistada deste mês, lúcida e com boa memória, faz questão de se apresentar:
 “Nasci em 1934 e, para minha tristeza, enviuvei há cerca de dez anos. Tenho um filho com 55 anos, electricista, que está actualmente a trabalhar na Suiça, por conta da sua entidade patronal que é portuguesa e tem sede em Setúbal.

Mas vamos começar pelo princípio, que é como devem começar todas as histórias, incluindo as de vida:
 “Vim ao mundo no Monte da Anta que, para quem não sabe, fica entre Escoural e S. Brissos. Éramos cinco irmãos (três rapazes e duas raparigas), de que só restam três. Tive uma infância normal para a época e para quem vivia no meio em que fui criada.”

Apesar de tudo, foi-lhe dada a possibilidade de frequentar a Escola:
Com 6 anos entrei para a Primária, em S. Brissos, num edifício adaptado para esse fim. Aqui completei a primeira classe. Entretanto, o meu pai, que era pastor, teve de se deslocar para o Monte de Monfurado e para aqui mudámos a nossa residência. Então, e mesmo que longe do Escoural,  porque íamos a pé para a Escola, acabei por concluir também a segunda e a terceira classes.”

E a 4ª classe da instrução primária, que era, para a época, o fim da linha para quem não tinha possibilidades económicas para entrar num colégio particular ou no liceu?
 “Por motivos que ainda hoje desconheço,  fui a única escolhida, dos meus lados, para ir frequentar a 4ª classe. Ora, como eu não podia ir sozinha, a pé, para uma tão longa distância e com o caminho a fazer-se, em determinados meses do ano, já de noite, fui obrigada a desistir. Nos dois anos anteriores íamos em grupos que se reuniam vindos de montes ali em volta. Depois, uns porque já tinham concluído a escola, outros porque desistiam, acabava por ser só eu a deslocar-me para o Escoural, o que se tornava impossível.”

E então, acabada a escola …
 “Dados os estudos por terminados, devido às circunstâncias que já referi, fiquei em casa a tomar conta de um irmão mais novo, para que a minha mãe pudesse ir trabalhar.”

Mas, com onze anos, surgiu o que era normal:
 “Foi na verdade com essa idade, que comecei a lida agrícola. Calhou ser a apanhar azeitona que me estreei no mundo do trabalho. E já não parei, tendo feito os mais diversos serviços da faina do campo.”

Como é inevitável, por volta dos 16 anos o coração despertou para o amor e começou a namorar com Jacinto Manuel Gião, que em 1958, tinha a noiva 24 anos, haveria de ser o seu marido para toda a vida.
 “Esta nova situação provocou naturalmente mudança de residência. Fomos morar para o Monte das Caeiras, ali para a zona de Monfurado, até finais do ano 2000, altura em que nos mudámos para a Courela da Pintada. Enquanto a saúde lhe permitiu, o meu marido trabalhava na Quinta das Caeiras onde o meu sogro – António Gião – era rendeiro e ao mesmo tempo explorava um estabelecimento misto, no monte com o mesmo nome.”

Os problemas mais graves estavam para vir, como nos conta:
 “Os problemas resultantes da idade, mas sobretudo da doença,  começaram a surgir. O meu marido teve de reformar-se por incapacidade. Com os anos, o seu estado de saúde foi-se agravando e, então, em Fevereiro de 2005, o meu marido, que há 14 anos vivia numa cadeira de rodas, acabou por falecer.”

E a D. Etelvina viu-se sozinha…
 “Sim, infelizmente fique só e não tive outro remédio senão o de pedir a ajuda do Abrigo, onde me encontro a usufruir da vertente “Centro de Dia” desde Janeiro deste ano. Vão buscar-me e levar-me a casa todos dos dias e, até poder, gostava de não deixar a minha casa.”

Mas propusemos à D. Etelvina terminar a nossa conversa de uma forma mais alegre. E ela concordou.
 “Quando era nova, é claro que gostava de me divertir, mas não me era fácil. A não ser pelo Carnaval ou por uma ou outra ocasião, pouco saía. A minha mãe não era dada a festas e, como compreende, eu sozinha não podia ir. O meu irmão mais velho, que era quem me poderia acompanhar, era pastor e, por isso, tinha a sua vida muito complicada, não podendo dispor de si. Por isso, como vê, não tive uma juventude muito festiva.”

Apesar de tudo, ainda se referiu às festas de Carnaval, com as suas brincadeiras tradicionais:
 “Nas Caeiras, onde naquele tempo viviam muitas famílias, uma dúzia ou mais, todas com vários filhos, brincava-se pelo Carnaval e era frequente organizar-se a “Queima da Boneca”, que servia de pretexto para se lerem versos alusivos às pessoas dali, especialmente às raparigas e aos rapazes.”

Primeiro disse que não era capaz, mas depois puxou pela memória e ainda se recordou destas quadras:

Comadre, que vais ser queimada,
A quem deixas o teu véu ?
São pr’á menina Deolinda
Que parece um anjo do céu.

Comadre, que vais ser queimada,
P’ra quem são as tuas meias ?
Ficam para a menina Rosa
Que até não é das mais feias.


Obrigado e felicidades, D. Etelvina.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

JOAQUIM ANTÓNIO PINTO

“Na minha mocidade fui muito namoradeiro”, revela-nos a determinada altura da sua narrativa, com uma certa nostalgia no olhar, o nosso entrevistado deste mês, facto confirmado pela sua actual esposa, que assistia à conversa.
Mas comecemos pelo princípio:

“Nasci há 91 anos, mais precisamente no dia 22 de Setembro de 1923, em Benalfange. Fiquei orfão de mãe tinha ainda poucos meses e algum tempo depois o meu pai voltou a casar, curiosamente com uma irmã da minha falecida mãe, que era portanto minha tia e também minha madrinha. A minha infância repartiu-se entre a casa do meu pai e a da minha avó. Quando faltavam precisamente quinze dias para fazer 7 anos já o trabalho me esperava. Abalei do Monte do Espargal, perto dos Foros de Vale Figueira e fui para uma herdade nos arredores de Montemor, que se chama Terrinha, guardar umas cabritas e tomar conta de duas burrinhas. Ganhava 5 tostões por dia e de comer. Dormia em cima dumas palhas, dentro da manjedoura, e tapava-me com o que já tinha sido uma manta e que me haveria de acompanhar até mais tarde.”

Começou bem cedo a conhecer o lado duro da vida. E continuou a relatar a sua história longa e bem movimentada:
“Tinha nove anos, e porque iria ganhar 10 tostões por dia, e também de comer, fui então guardar cabras na Fazenda da Brunheira, perto da ermida da Sra. da Visitação.”

E a escola ?
“Isso era coisa que só sabia que existia por ouvir dizer…”

Depois deste desabafo, continuou:
“Por volta dos meus doze anos consegui, como ajuda de gado, uma jorna de 3 escudos por dia, secos, portanto sem direito a alimentação, na herdade da Amendoeira. Dormíamos, tanto eu como o pastor, num rego, perto de um regato, com juncos como colchão e tapava-me com a tal manta que me ia resguardando nas minhas andanças.”

Deu por esta altura um “salto na carreira profissional”:
“Com catorze anos fui ´promovido´ a moço da porta, que consistia em ter a responsabilidade de transportar água para o monte e partir e carregar lenha para a cozinha. Estava na Caravela da Robusta. Dois ou três anos depois fui trabalhar para o Monte do Sobral, perto dos Foros do Cortiço, e então já fazia todos os trabalhos agrícolas.”

Como sempre acontece nesta altura das histórias, era chegado o momento dos namoricos. E o amigo Pinto não foi excepção:
“Não fui muito bem sucedido com a minha primeira namorada. Inicialmente não me aceitou o namoro, porque a mãe dizia que ainda estava muito nova, mas deve ter começado a pensar bem e, passado pouco tempo, chegou-se ao pé de mim e disse-me que, afinal, se as outras namoravam, ela também tinha esse direito. Mas este namoro estava destinado a não correr bem. Um ano depois um meu vizinho roubou-ma e começou ele a namorar com a moça. Mas eu vinguei-me. Já andava com ela fisgada e meses depois fui eu que lha roubei a ele. Mas atenção: mesmo durante estas peripécias, continuei vizinho do rapaz e a nossa amizade nunca foi abalada. Curiosamente, esta rapariga acabou por casar mas não foi com nenhum da gente.”

Vamos então entrar num outro capítulo da vida do nosso entrevistado:
“Por esta altura e por estas bandas, costumava dizer-se que quem sabia tocar concertina equivalia a ter um burro carregado de ouro, porque se era muito considerado e, portanto, convidado para tudo o que era festa e funçanada. Então, resolvi comprar esse instrumento. Fui aprendendo sozinho, de ouvido, e a observar com atenção outros tocadores. Quando já sabia tocar umas coisas começaram a surgir os convites para ir tocar aqui e além dentro da nossa zona. Organizavam-se muitos bailaricos e a juventudae, como não tinha outros divertimentos, juntava-se a bailar onde quer que fosse.”

E aqui surgiu então a informação que acima já revelámos:
“Em jovem fui muito namoradeiro. Deixe-me contar-lhe um episódio curioso. Um dia fui a um baile ao Monte das Hortas, que fica ali perto da estrada que liga Arraiolos a S .Pedro da Gafanhoeira. Meti-me a caminho, a pé, já se vê, e quando cheguei, como não conhecia lá ninguém, fui recebido com uma certa desconfiança. Mais tarde, porém, apareceu um rapaz que me conhecia e me foi apresentando. Divulgou que eu tocava bem concertina e, como o tocador que lá estava não era assim grande artista, pediram-me para tocar umas modas. Assim foi e, a partir desse momento, parecia que já estava em casa. Em determinada altura fui dançar com uma rapariga que me perguntou por que motivo estava assim acanhado e eu respondi que tinha receio que, por não me conhecerem, me dessem cabaço. Ela respondeu-me que as raparigas dali não eram cabaceiras e que, quanto a ela, a poderia ir buscar sempre que quisesse. Estava o baile armado. A partir dali comecei a dançar com quem calhava e acabou tudo em beleza.”

Às tantas, quando o baile acabou, foi hora de regressar a casa
“Claro, e a pé, já se vê. No caminho até inventei a seguinte quadra:

   Fui a um baile ao Monte das Hortas
Estavam os ganhões à ceia
Logo por sorte me calhou
Ir bailar com a mais feia.

Não fui muito feliz na quadra, porque não correspondia à verdade. As raparigas com quem dancei não eram feias. Os versos foram feitos ali à pé de chaparro e a palavra feia só aparece porque não encontrei outra melhor para fazer a rima. Mas já que falamos de quadras, aqui vão mais duas da minha autoria:

Hoje tivemos um dia quente
E vamos ter uma noite fria
O melro da minha tia,
Já nem canta nem assobia

Divirtam-se todos bem
Nesta pequena hora
A todos digo adeus
E boa noite que me vou embora.

Foi uma fase bem animada que terminou de uma forma menos feliz:
“Na verdade eu era muito divertido e até casar fui sempre dado a arranjar namoradas. Até que um dia assentei e casei com a que seria a minha primeira mulher e mãe da minha filha, hoje com 64 anos. Morávamos no Monte de Alcanede, na estrada da Valeira, onde era carreiro. Mais tarde, já com 32 anos, acabei por me divorciar.”

E teve então que dar novo rumo à sua vida:
Passados oito anos voltei a casar com a que é a minha actual mulher desde há mais de meio século  – Rosária da Felicidade Catarro Pinto. Fomos morar para a Quinta Seca, perto de S. Geraldo, onde trabalhei mais de 30 anos.

A seguir voltou às origens:
“Precisamente. Regressei a Benalfange, onde me mantive até 1996, data em que fui residir para a minha actual morada, na Pintada. Desde Maio que somos utentes do Abrigo na vertente de “Centro de Dia”.

Antes de terminar, o nosso amigo Pinto quis expressar o quanto o desgosta nunca ter aprendido a ler e a escrever:
“A vida nunca me proporcionou essa possibilidade. Como lhe disse, comecei a trabalhar muito cedo e mesmo depois de adulto nunca estive perto dos meios que me poderiam dar essa hipótese. Deixe-me contar-lhe um episódio que ilustra bem a tristeza que é ser-se analfabeto, sobretudo se se estiver num ambiente estranho: Há uns anos, uma médica que esteve aqui em Montemor, porque tinha dúvidas quanto a uma doença que me atormentava, perguntou-me se eu estaria disposto a ir a uma consulta ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Disse-lhe naturalmente que sim e a doutora passou-me uma carta para eu entregar aos médicos, com a indicação para onde me deveria dirigir. Cheguei ao hospital, cuja dimensão eu nem sequer adivinhava. Entrei por ali dentro e sempre que via alguém de bata branca perguntava onde ficava o local que me estava destinado. Ninguém pareceu incomodar-se em me orientar devidamente. Diziam-me para ir por aquele corredor porque depois estava lá uma placa. Chegado aí, logo me aparecia outro corredor, repetia a mesma pergunta a outra pessoa e a resposta era sempre mais ou menos a mesma. Andei por ali às voltas, desesperado e já sem saber o que fazer. Até que me apareceu uma pessoa mais compreensiva, a quem expliquei a minha situação e me encaminhou correctamente. Ora se eu soubesse ler, tudo se tinha tornado mais fácil e não tinha tido nem metade das dificuldades. Foi uma grande lição que aprendi, infelizmente, tarde de mais.”

Amigo Joaquim Pinto, que vá continuando com essa lucidez e boa disposição, na companhia da sua esposa. E quando comemorar o centenário voltaremos a falar.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

MARIA JOAQUINA COUVEIRO

Se quiséssemos encontrar um exemplo de entrega voluntária aos outros, a nossa entrevistada deste mês poderia servir perfeitamente para tal fim.


Vamos ouvir então, em poucas palavras, a sua história de vida:
“Tenho 80 anos e nasci algures, no campo, num monte cujo nome desconheço porque a minha mãe nunca me disse nem eu tive curiosidade em saber. Tenho apenas, como recordação mais distante, residir no monte do Curral da Légua, ali à esquerda da estrada para Évora. Ainda andei à Escola, teria eu os meus oito anos, na Amoreira da Torre. Mas só fiz a primeira classe.”

Mas porquê? quisemos saber:
“Por essa altura apareceu-me um abcesso no artelho da perna direita. O meu pai levou-me ao médico, que me lancetou mas não fiquei curada. Iam sempre surgindo novas feridas na perna, que se estendiam até quase ao joelho. Porque as dores me impediam de andar, e não tinhamos qualquer meio de transporte, tive de abandonar a escola. Mais tarde, teria eu uns doze anos, o meu pai levou-me ao hospital de Évora, onde o médico nos disse que só uma operação poderia resolver o problema. O meu pai não quis. Dizia ele que com banhos de sol e muito óleo de fígado de bacalhau eu ficaria curada.”

E ficou ?
“Claro que não. Passado um ano, quando já morava no Monte da Relva, e porque não se vissem melhoras algumas, o meu pai resolveu vir a Montemor consultar o Dr. Vicente Silva. Quando viu aquele quadro, o médico disse-lhe que eu tinha de ser imediatamente internada aqui no Hospital de Santo André para ser operada. O meu pai, então, não teve outro remédio se não o de concordar. E passado um mês estava a ser operada pelo Dr. Silva Araújo (pai). Ainda estive internada mais uns cinco meses. Quando saí, quase que tive de reaprender a andar, o que aconteceu já aos catorze anos com a ajuda da minha mãe.”

Com dezasseis anos começou a trabalhar nas duras tarefas agrícolas e a escola foi sonho que há muito estava desfeito.
 “Morávamos então perto das Artozinhas, ali para os lados da Ponte da Laje. Como tinhamos uma família numerosa, porque para além dos meus pais, éramos 6 filhos, 4 rapazes e 2 raparigas, havia que contribuir para o orçamento familiar.”

E por esta altura não surgiu o normal namorico ? Por que se manteve solteira até hoje ?
“Foram as circunstâncias da vida. Realmente, quando tinha os meus dezasseis ou dezassete anos, ainda namorei, mas as coisas não correram bem. Ele namorava com outra rapariga e foi com ela que acabou por casar. E eu nunca mais quis namoros, com receio de vir a passar por idêntico desgosto.”

Entretanto, os anos foram passando e …
“Três dos meus irmãos e a minha irmã foram casando e tempo depois o meu pai faleceu, pelo que fiquei com a minha mãe e o meu irmão Franquelim, que também nunca constituíu família. E à medida que o tempo foi passando, mais necessária eu era em casa, porque a idade da minha mãe e a doença de que padecia  se foi agravando, confinando-a a uma cadeira de rodas até aos 88 anos, idade em que faleceu. Para além disso, também o meu irmão Franquelim, que trabalhava na reparação de estradas, foi forçado a reformar-se aos 59 anos por motivos de doença. Faleceu com 82 anos. Daqui se percebe que, durante muitos anos, deixei de ter vida própria para me dedicar exclusivamente a tomar conta da casa e dos dois enfermos. Mas sentia que era essa a minha obrigação.”

Deve ter passado por muitas dificuldades, inclusivamente financeiras, no decurso dessa vida de sacrifício…
“Passei anos muito difíceis, sem me chegar qualquer espécie de auxílio. Olhe: quando o meu pai morreu, o pouco dinheiro que tínhamos destinou-se a pagar o funeral. Sem outras ajudas, fui forçada a ir ter com a Assistente Social para lhe explicar a nossa situação. Deu-me uma senha para ir fazer um avio na mercearia e uma outra senha para ir ao estabelecimento do sr. Daniel Passinha (Daniel Lopes Borges) comprar uns tecidos para fazer roupa com que fizemos o luto. Foi esta a única ajuda que nos chegou.”

Depois do falecimento da mãe, mas ainda a tomar conta do irmão, a D. Maria Joaquina resolveu inscrever-se no Abrigo dos Velhos Trabalhadores.
“Exactamente. Tinha 62 anos quando a minha candidatura foi aceite e fiquei como utente do “Centro de Dia”, tal como o meu irmão, visto vivermos juntos. Estivemos nesta situação durante quinze anos, e entretanto o meu irmão também faleceu. Finalmente, há três anos passei à condição de residente no Lar, única solução possível para o meu caso.

Enquanto esperávamos pela D. Maria Joaquina para iniciarmos esta nossa conversa, verificámos que ela saía do Posto de Enfermagem do Abrigo. Quisemos saber se estava com algum problema e explicou-nos:
“Há três meses surgiu-me uma outra ferida na mesma perna e sensivelmente em local próximo da anterior. Quero crer que não tem nada a ver com o caso que já relatei e que ficou resolvido há mais de sessenta anos. De qualquer forma, tenho feito pensos dia sim dia não mas a verdade é que a situação não fica resolvida em definitivo. Por este motivo, já foi pedida ao hospital de Évora, através das vias competentes, uma cirurgia para se resolver de vez este problema. Vamos ver quanto tempo terei de esperar.”

Pois bem: fazemos votos para que tudo se resolva como deseja e que, finalmente, possa desfrutar de longos anos em paz e com saúde.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O ABRIGO E A FEIRA DA LUZ



Mais previsível que o bom tempo em Agosto ou a subida próxima dos salários e pensões, é a realização, em Setembro de cada ano, da nossa “Feira da Luz”, velhinha mas sempre renovada.
Assim, de 3 a 8 do próximo mês são muitos e apetecíveis os motivos que irão levar milhares de pessoas ao Parque de Exposições e Feiras.

Para além dos tradicionais divertimentos, imprescindíveis em certames deste tipo, das barraquinhas de comes-e-bebes, e das atracções já anunciadas (Rita Guerra, Richie Campbell, Noite de Fados com Hélder Moutinho, Noite de Folclore, “Os Azeitonas” e Sérgio Godinho, e outros que a seu tempo se conhecerão) a desfilarem sucessivamente em cada dia nos palcos do recinto, teremos também os inúmeros pavilhões que mostram a diversidade de associações, grupos, empresas e produtos regionais que contribuem para o desenvolvimento comercial, industrial, recreativo, cultural, desportivo e social do nosso concelho.



Pois bem: Perante esta realidade, o ABRIGO DOS VELHOS TRABALHADORES não poderia, de forma alguma, alhear-se do evento e, como já vem sendo tradicional, lá estará com um pavilhão, demonstrativo da vitalidade participativa dos seus utentes e colaboradores.
Das mãos habilidosas das nossas e dos nossos utentes, lá teremos expostas magníficas peças de artesanato, concebidas em diversos materiais, que revelam elevado sentido artístico.

E quem visitar o nosso pavilhão terá ainda mais uma oportunidade soberana de adquirir o livro intitulado " Para a História da Assistência em Portugal - Do Asilo de Mendicidade ao Abrigo dos Velhos Trabalhadores de Montemor-o-Novo - 1914/2014", da autoria da historiadora Dra. Teresa Fonseca.
O livro, e segundo a sua autora, aborda a origem da instituição, fundada em 1 de Janeiro de 1914 com o nome de Asilo de Mendicidade, e traça a sua evolução posterior até à transformação na que é hoje a Associação Protectora do Abrigo dos Velhos Trabalhadores.
Pois são estes 100 anos da história local que lhe propomos. O livro tem um custo pouco mais que simbólico e permitir-lhe-à ficar a conhecer pormenores interessantes por que passou esta Instituição ao longo de um século. Não perca.

E o que dizer então das simpáticas rifas? Sem ser necessário efectuar telefonemas, como aqueles com que alguns canais de televisão massacram constantemente os espectadores, poderá ser de imediato contemplado com um prémio útil. E se não tiver a sorte de sair daquela vez, é sempre conveniente tentar de novo porque, pelo menos, resta-lhe a compensação de saber que contribuíu para uma obra de solidariedade social que prestigia a nossa terra.

Mas pode ainda observar, nas paredes do pavilhão, um conjunto de fotografias que mostram vários aspectos da nossa realidade, desde o dia-a-dia dos utentes, às actividades de animação sócio-cultural, aos passeios, à colónia de férias e a outras realizações que merecem uma apreciação atenta.

E se de alguma forma ficou sensibilizado com o que viu, aqui fica uma sugestão: faça-se sócio do Abrigo. É barato e ajuda uma instituição que agora precisa de si e, quem sabe, no futuro lhe poderá ser útil…

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

OS NOSSOS UTENTES

FRANCISCO  BALTAZAR  CHARNECA  TIRA-PICOS


Com 80 anos feitos no passado dia 25 de Junho, o nosso entrevistado deste mês prestou-se de bom agrado a falar para a nossa página e, ainda que parco em palavras, lá nos foi contando os principais momentos da sua história de vida.
 “Sou viúvo, ainda não há um ano, de Maria de Jesus Ganso Ribeiro, com quem estive casado durante mais de meio século. Entrei para o “Centro de Dia” do Abrigo no dia 10 de Outubro de 2013, juntamente com a minha esposa que, infelizmente, pouco viria a beneficiar desta situação, porque faleceu no mês seguinte.”

Mas comecemos então pelo princípio:
 “Nasci no Sabugueiro, concelho de Arraiolos, onde sempre vivi, exceptuando os períodos em que os meus pais tiveram de se deslocar para outras paragens onde conseguiam trabalho.”
A escola foi sempre uma miragem, que nunca passou disso mesmo:
 “Ainda com pouca idade, os meus pais foram morar para os Foros da Branca, perto de Canha, onde não havia escola e, portanto, nunca a frequentei. Em vez disso comecei a guardar gado teria 8 ou 9 anos. A partir daí fui lançado no mundo do trabalho e o saber ler e escrever deixou de ser prioridade.”

Os anos foram passando e…
 “Mais tarde, teria para aí os meus 17 anos, fui trabalhar na lavra do arroz na herdade da Represa, onde o meu pai era o arrozeiro, mas eu fazia também os mais variados trabalhos agrícolas.”

Novo salto na sua vida:
 “Em 1955 fui para a tropa. Assentei praça em Estremoz e tempo depois mandaram-me para a Manutenção Militar, em Évora. Daqui regressei a Estremoz e passado um ano e meio fui desmobilizado e enviaram-me para casa.”

E voltou à vida antiga:
 “Sim, e à herdade da Represa, para a faina do arroz que, de uma maneira geral, me ocupava praticamente de Janeiro até Setembro, com interregnos para acudir à ceifa dos outros cereais. Claro que, livre da tropa e com trabalho mais ou menos garantido, comecei então a pensar em termos de futuro, porque não queria continuar na dependência dos meus pais.”

E agora, sim, surgiu a grande decisão:
 “Já antes de ir para a tropa eu namorava com a rapariga que eu sabia que, logo que estivesse livre da obrigação militar, viria um dia a ser a minha mulher. E assim aconteceu. Casámos ou, mais propriamente, juntámo-nos, e fomos morar para o Sabugueiro. Deste enlace nasceram quatro filhos, mas uma menina morreu passados poucos dias. Neste momento, portanto, tenho dois filhos (um mora em Sabugueiro e outro em Arraiolos) e uma filha que reside aqui em Montemor. São todos casados.”

Apesar do namoro não ter sido contrariado pelos pais, mesmo assim nesses tempos a vida não era fácil para os namorados:
 “Quando nos começámos a namorar, trabalhávamos ambos na Represa. Tinhamos de arranjar a maneira de nos encontrarmos no caminho de regresso a casa, mas com o cuidado de nos separarmos quando já estávamos perto da aldeia, porque era impensável sermos vistos juntos fora de portas. Só me era permitido falar com a minha namorada numa janela mais alta e, mesmo assim, com a mãe a vigiar. Parecido com o que se passa agora, não é ? O que dantes era de menos, agora é de mais.”

Mas, é claro, também iam a divertimentos.
 “Fomos algumas vezes a bailes no Sabugueiro, em S. Pedro da Gafanhoeira ou nalguns montes ali à volta. Isto num tempo em que as namoradas iam sempre acompanhadas, sobretudo pelas mães, para que não pusessem o pé em ramo verde. Já agora, e a propósito destes bailaricos, deixe-me contar-lhe um episódio que nunca mais esqueci. Uma vez, num monte perto de S. Pedro, organizou-se um baile com um tocador de harmónio, como era normal. À entrada da casa havia um poial com potes e cântaros com água. Ora como o pessoal era muito e a casa era pequena os empurrões sucediam-se e, a dado momento, um dos homens que por ali estava não conseguiu evitar e foi contra os cântaros, que se partiram. Foi o princípio de uma enorme zaragata. Envolveu-se tudo à pancada e à pedrada e já ninguém se entendia. Não tive outro remédio que não o fugir para evitar a confusão ou levar com alguma pedra transviada.”

Segundo nos confessa, é bem tratado no Abrigo e não tem razão de queixa seja de quem for:
 “Integrei-me bem no espírito da instituição e já fiz parte de algumas iniciativas que aqui se fazem para tornar mais agradáveis as nossas horas. Fiz teatro, entrei no coral, vou às piscinas municipais e não me escuso a ir dar os meus passeios, dos quais destaco as idas ao Fluviário de Mora e ao Palácio de Vila Viçosa. Como já disse, toda a gente me trata bem, mas sem desprimor para as restantes, gostaria de salientar o papel da D. Céu, que é realmente uma pessoa extraordinária.”

A nossa conversa chegava ao fim, mas ficámos com a certeza de que muito ficou por revelar pelo nosso amigo Tira-Picos. Fica para uma próxima oportunidade.

terça-feira, 24 de junho de 2014

OS NOSSOS UTENTES

ANGELINA ROSA MERENDEIRA

Praticamente recém-chegada ao Abrigo, onde se encontra ainda não há um mês,a nossa convidada tem 80 anos, é viuva há trinta, de António José Inocêncio, e possui dois filhos (um casal).

“Nasci no Hospital Civil de Santo André, aqui em Montemor, na enfermaria de Santa Rita, no dia 18 de Fevereiro de 1934. Os meus pais viviam no Pomar da Gamela, para onde naturalmente eu fui logo que a minha mãe teve alta do parto. Teria perto de seis meses quando nos mudámos para o Monte do Bexico, rodeado pela Gamela, Rio Mourinho, São Luís e Ervideira. Aqui estive até aos meus 20 anos, idade com que me casei.”
            
A escola era, então, um luxo que estava vedado a quem vivia sobretudo no campo e mesmo a mentalidade da época contribuia para esse afastamento, como revela a D. Angelina: 

“Nesses tempos, e por várias razões, não era fácil as crianças irem aprender a ler e a escrever. O meu pai, por exemplo, dizia que as raparigas não precisavam de ir à escola porque, na sua opinião, escola de mais já elas tinham…”
            
E, portanto, o seu destino estava traçado: 

“Com dez anos comecei a apanhar azeitona e até aos quarenta e quatro nunca mais deixei a lida do campo.”
            
Enquanto isso, muitas outras coisas foram acontecendo: 

“Comecei a namorar o que viria a ser o meu marido quando tinha perto de catorze anos. Claro que à revelia sobretudo do meu pai. Namorávamos no trabalho. Mas passado algum tempo zangámo-nos e ainda namorisquei outro rapaz. Mas era do primeiro que eu gostava e, então, aos 17 anos recomeçámos o namoro e foi até casar, o que aconteceu tinha eu vinte anos. Estivemos casados 32 anos.”
           
A sua vida deu, por conseguinte, uma grande volta: 

“Claro está. Montámos a nossa casa no Moinho da Ana e, depois, ainda passámos pelos Baldios, Moinho do Pisão e estivemos também em Abrigada, perto da serra de Montejunto, a trabalhar num aviário. Mas aqui a vida não nos correu como desejávamos e regressámos a Montemor, para o Monte das Forneiras, onde o meu marido faleceu.”
            
Nova e profunda alteração na sua vida.

“Após o falecimento do meu marido vim morar para Montemor, mais propriamente para o nº 12 da Ruinha.” E esclarece: “Enquanto fui casada, nunca dei qualquer passeio, quer por dificuldades económicas, quer porque com dois filhos, cujas idades distavam apenas vinte e dois meses, tal não nos era possível”.
            
Reformou-se ainda relativamente cedo, mas explica porquê: 

“Problemas de saúde impediam-me de continuar a fazer os exigentes trabalhos agrícolas. Depois, graves problemas ao nível dos joelhos, tendo até sido operada a um deles, e o facto de não ter praticamente sensibilidade nas mãos agravaram o meu estado de saúde.”

Mas não querendo desistir da vida, resolveu dar outro passo de que guarda belíssimas recordações: 

“Já reformada, inscrevi-me no MURPI, actualmente ARPI, aqui na nossa cidade. E enquanto as minhas pernas e as mãos permitiram, desenvolvi ali actividades que nunca tinha tido a possibilidade de fazer. Aprendi, pelo menos, a conhecer as letras e a fazer cópias e, pela primeira vez na minha vida, percorri muitos lugares de Portugal e até fomos a Espanha. Fiz teatro, entrei num grupo coral e, veja bem, fui jogadora e ganhei prémios em modalidades como o dominó, sueca, bisca, malha e inclusivamente em concursos de pesca que a Instituição organizava anualmente.”
           
E hoje, como passa o tempo?
            
“Como já disse, estou no Abrigo há poucas semanas, porque entretanto o meu estado de saúde foi-se agravando. Mesmo assim, já faço parte do Grupo Coral “Cant’Abrigo”, cuja estreia teve lugar no dia de Santo António, durante as festas do 47º aniversário, e vou dando os meus passeios, com o auxílio das canadianas, nesta zona envolvente do edifício.”

            
Estamos convencidos de que, mais dia menos dia, vamos ter a D. Angelina a fazer parte do elenco artístico do Abrigo numa das habituais rubricas de teatro aqui levadas à cena.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

O ABRIGO CELEBROU 47 ANOS


O Abrigo dos Velhos Trabalhadores que, com esta denominação, assinalou a passagem do seu 47º aniversário a 13 de Junho, dia de Santo António, nasceu e herdou a sua vocação assistencial a partir do Asilo de Mendicidade, que em Janeiro deste ano fez um século de existência.

Aliás, todo este processo está superiormente descrito no livro da autoria da Dra. Teresa Fonseca que foi dado à estampa por altura da efeméride, conforme foi largamente divulgado. A propósito, e para os interessados em conhecer mais em pormenor toda a história e o dia-a-dia da Instituição, aproveitamos para informar que ainda temos alguns exemplares da obra, que se intitula exactamente “Do Asilo de Mendicidade ao Abrigo dos Velhos Trabalhadores de Montemor-o-Novo – 1914/2014”, que pode ser adquirido nas nossas instalações pela módica quantia de 10 euros.

Posto isto, vamos então tentar relatar o que foi a festa que comemorou o recente aniversário, se bem que os momentos de emoção ali vividos sejam impossíveis de descrever.

Estava previsto, e é assim que acontece normalmente, que a cerimónia protocolar dos discursos de boas-vindas iniciasse os festejos. Mas desta vez furou-se a tradição.

Por razões de estratégia, o programa foi ligeiramente alterado, pelo que logo a abrir houve um excelente momento de teatro protagonizado pelos utentes do Abrigo e que serviu para evocar e homenagear figuras de Montemor que se notabilizaram ao longo dos anos nas mais variadas áreas. E sobre cada um dos homenageados foram relembradas facetas mais ou menos bem conhecidas.

Vamos então aqui lembrar as personagens e os intérpretes:

Manuel Justino Ferreira – Leopoldo Gomes
Curvo Semedo José Manuel Brejo
S. João de Deus Joaquim da Cabrela
Comandante Fragoso Salvador Boleto
Luís Miguel da Veiga Joaquim da Cabrela
Simão Malta José Grulha
Mafalda Veiga Salomé Pedras Alvas
Margarida Guerreiro Sandra Santos
Isabel Joaquina da Cruz Otília Brejo
João Luís Nabo (seu aluno de piano) – Leopoldo Gomes (que depois também dirigiu um Coral ali mesmo constituído de entre os assistentes).
Feliciano Rabaça do Carmo Francisco Tira-Picos
António Justino e Maria FlorentinaJosé Manuel e Rosária Baixo
Francisco Abílio Cara-Linda José Manuel Brejo
Teresa Fonseca e Jorge Fonseca Céu Mestrinho e José Manuel Brejo


As utentes que deveriam interpretar Mafalda Veiga e Margarida Guerreiro (eram elas Albina da Visitação e Angélica Ferro) tiveram de ser substituídas à última hora por motivos de saúde. Aqui fica uma palavra de apreço às substitutas, que desempenharam muito bem os seus papéis e cantaram de tal forma que pareciam mesmo as artistas originais.

Seguiram-se então os discursos da praxe. Com todo o elenco directivo em palco, o Presidente da Direcção, Joaquim Manuel Batalha, deu as boas-vindas aos presentes, seguindo-se António José Danado (Presidente da União das Juntas de Freguesia de Na. Sra. da Vila, do Bispo e Silveiras) e Hortênsia Menino (Presidente da Câmara Municipal) que em breves palavras realçaram o significado da festa e o papel importantíssimo desempenhado pelo Abrigo dos Velhos Trabalhadores ao longo dos anos.


Era chegado, portanto, outro momento importante: o lanche ajantarado. Num espeto rebolava um porco (generosa oferta de um amigo) para ser comido à tira, e noutros assadores o cheiro das sardinhas já ia invadindo todo o espaço, fazendo crescer água na boca. E então, através de atenciosas funcionárias e colaboradoras do Abrigo, aqueles acepipes foram sendo servidos, regados sobretudo com fresquinha e saborosa sangria ou sumos de fruta para os estômagos mais delicados.


E a tarde ia correndo com as conversas a subirem levemente de tom, como aliás sempre acontece nestas circunstâncias.

E foi sentados à mesa que vimos surgir outra surpresa por ser estreia absoluta. Subiu ao palco o “Grupo Coral Cant’Abrigo”, constituído na sua totalidade por utentes de ambos os sexos e excelentemente dirigido pelo escriturário do Abrigo e talentoso músico André Banha. Interpretaram, sob fortes aplausos, diversos temas bem conhecidos de todos os presentes, incluindo um deles (“A cegonha”) conjuntamente com o “Fora d’Horas” que se exibiria a seguir.


E a tarde ia decorrendo sem se dar pelo passar do tempo. E é bom sinal quando isso acontece.

Chegou então a altura do Grupo “Fora d’Horas” mostrar mais uma vez o seu reconhecido valor. Interpretou, com agrado geral, vários números do seu vasto reportório.


Aproximava-se o fim, mas ainda surgiu outra agradável surpresa. O novo conjunto musical, intitulado “Reflexus Band”, iniciou a sua actuação e desde logo mostrou que veio para ficar. Acompanhou o desfile da marcha onde os pares, com os respectivos arquinhos, iam desenvolvendo os seus desenhos artísticos.


E pronto. A partir daqui estava o baile armado. E já se sabe que quando os pares entram na dança quem é que os faz parar? E ainda bem. É sinónimo de que estão a viver e a desfrutar de horas bem agradáveis.

Ficam para o fim os agradecimentos. Os grandes responsáveis pelos momentos teatrais que periodicamente ali são apresentados, para além evidentemente dos utentes que sempre se disponibilizam (e cada vez são mais), são, como se sabe, o animador cultural José Manuel Brejo e a talentosa Maria do Céu Mestrinho, que alia um profissionalismo exemplar enquanto funcionária do Abrigo a uma aptidão natural para as artes cénicas. A secção teatral pretende fazer os seus agradecimentos particulares a quem cedeu roupas ou outros adereços para que a representação resultasse em pleno. O nosso obrigado a; Bombeiros Voluntários, Grupo Teatral Theatron, João Luís Nabo, Luís Miguel da Veiga, Manuel Henrique Macau Ferreira e Quim Guerreiro. A todos, o nosso obrigado.

Também a Direcção quer agradecer, de todo o coração. às pessoas e entidades que, com as suas generosas ofertas, tornaram possível estes momentos de agradável convívio entre todos os utentes, familiares e amigos.

Finalmente, uma palavra de apreço para os Funcionários e Funcionárias, Colaboradores, Voluntários e, enfim, para todos os amigos da Instituição, porque sem o seu esforço, trabalho, voluntarismo e dedicação estes eventos não seriam realizáveis, sobretudo com tal eficiência e brilhantismo. Por último, é de salientar que toda a decoração, incluindo os vasos com manjericos confeccionados em papel, foram obra paciente dos nossos utentes.


Para todos, o nosso BEM HAJAM !