terça-feira, 19 de fevereiro de 2013


ANTÓNIO JOAQUIM VISEU:
UMA HISTÓRIA COM 100 ANOS


Quando uma associação ou qualquer outra entidade comemora cem anos da sua fundação, a efeméride é, justamente, motivo de referência. Todavia, quando é um cidadão a atingir essa bonita e provecta idade, tal acontecimento ainda mais justificadamente merece um destaque muito especial.
No Abrigo festejou-se no passado dia 14 de Fevereiro o aniversário do nosso utente Sr. ANTÓNIO JOAQUIM VISEU, que nessa data entrou no privilegiado e restrito número dos centenários, facto que, mesmo não sendo inédito nesta Instituição, legitima uma natural alegria entre todos os dirigentes, colaboradores e colegas.
Fomos falar com o aniversariante que, já viúvo, entrou para o Abrigo em Julho de 2000. Tentámos recolher algumas recordações de quem teria muito para contar. Como nos confessou, a sua memória já não é o que era e em termos de saúde queixa-se, sobretudo, da falta de vista e de um zumbido constante nos ouvidos que o incomoda e ensurdece.

Uma infância de pobreza

Mas vamos ouvi-lo: “Nasci no dia 14 de Fevereiro de 1913 no Monte da Amoreirinha, perto de Santa Sofia, filho de Manuel Viseu e de Jacinta Maria. Éramos extremamente pobres e passámos muita miséria. A nossa infância, a minha, a dos meus três irmãos e a de uma irmã, foi penosa. O meu pai foi sempre trabalhador rural e não ganhava o suficiente para alimentar a família. Nenhum de nós andou à escola. O meu pai, que chegou a frequentar o Seminário, sabia ler e escrever muito bem, mas nunca nos ensinou nada do que sabia. Todo o seu tempo era pouco para arranjar comida o que nem sempre conseguia. Tinhamos falta de tudo, desde a comida às roupas. Ainda muito jovem, fui muitas vezes de monte em monte a pedir que nos dessem um pedaço de pão.”
Desses tempos não guarda gratas recordações: “Comecei muito cedo a guardar gado e, com o decorrer dos anos, fui conhecendo praticamente todos os trabalhos agrícolas. A primeira vez que vim à Vila já teria mais de dez anos e, tanto nessa vez como nas seguintes, deslocava-me a pé e descalço, porque botas era um luxo a que não podíamos aspirar. Vinha normalmente encarregado de fazer uns mandados para a minha mãe, mas o objectivo principal era o de, pelo caminho, visitar algumas pessoas amigas na esperança de que nos dessem qualquer coisita. Chegado à então vila, aproveitava para ver coisas que nem sequer suspeitava existirem, tão longe nós vivíamos do chamado progresso. Mais ou menos por essa altura, talvez com 8 ou 9 anos, uma senhora que possuia uma grande quantidade de perus foi falar com a minha mãe propondo que eu fosse para lá guardá-los. Ganhava as refeições e se havia mais algum pagamento em dinheiro não sei, porque nunca cheguei a ver nenhum. Um dia apareceu um peru morto e culparam-me a mim, ainda que injustamente. Não me bateram, mas despediram-me.”
Como recordação mais antiga, tem uma vaga ideia de ouvir falar da 1ª Grande Guerra (1914/1918), mas era muito novo e viviam muito isolados dos locais onde se poderia falar desse assunto, pelo que não ligou muito a isso.


A vida prosseguiu

Vamos dar um salto no tempo e encontrar o nosso amigo Viseu já a preparar-se para juntar os trapinhos com a sua conversada: “Aos 23 anos casei-me com Augusta Rosalina Coelho, já falecida há 14 anos, e fui morar para o Monte da Azinheira, perto de Patalim e Monte da Crasta, no Alto da Abaneja. Só depois nos deslocámos para Santa Sofia. Vivi sempre por aqueles lados.” E recorda pormenores do casamento: “Quando resolvemos juntar-nos, a Augusta já estava grávida. Então, como a minha patroa – Maria Inácia Soares – não permitia que os seus trabalhadores vivessem amigados, como então se dizia, lá fomos, transportados num churrião, casar a S. Sebastião da Giesteira. Quem presidiu ao acto foi um fulano de nome António Caixeiro, que provavelmente seria um funcionário do Registo Civil. Por essa altura já eu tinha o estatuto de carreiro, trabalhando com uma parelha.”


E continua: “Sem conhecer grandes facilidades na vida, fui feliz no casamento, do qual nasceram dois filhos, mais exactamente um casalinho: primeiro a Jacinta e depois o António Joaquim. O meu filho vive em Setúbal e a minha filha, já viuva, reside em Évora. São muito meus amigos e visitam-me frequentemente. A minha filha, porque mora mais perto, vem ver-me todas as semanas. Tenho quatro netos, um casal de cada um dos filhos, e sete bisnetos. Provavelmente ainda verei trinetos. Assim os bisnetos se despachem e eu for cá estando para ver.


As 100 velas

Como é frequente, nem sempre as pessoas são mais conhecidas pelo seu apelido de baptismo. O Sr. ANTÓNIO JOAQUIM VISEU não fugiu à regra: “É verdade. A partir de certa altura também começaram a chamar-me “Almodôvar”, por causa do meu pai ser tratado por “Tio Almodôvar” devido ao facto da sua família ser natural daquela localidade alentejana.”
No dia em que celebrou os cem anos, rodeado de tanta gente amiga, o Sr. Viseu “saiu-se” ao almoço com estas quadras:
                                               Tenho uma família pequena,
                                               Tenho dois filhos e quatro netos,
                                               Tenho uma nora, sou bisavô
                                               E recebo muitos afectos !
                                              
                                               As minhas primeiras palavras
                                               Vão p’ra esta Instituição,
                                               Agradeço às empregadas
                                               E também à Direcção !

                                               Aos utentes deste Lar
                                               Eu dedico o meu carinho.
                                               Estamos todos aqui à espera
                                               P’ra andar o mesmo caminho !        


Porque ficámos a saber, durante a nossa conversa, que tinha jeito para versos, desafiámos o Sr. Viseu a dizer-nos outros. Apelando à memória, lá nos foi ditando:
 

                                               Sei muito e não sei nada,
                                               Tudo quanto sei nada vale
                                               Sei que vivo até morrer
                                               Sei que não curo o meu mal.

                                               Sei que tenho de trabalhar
                                               Isso já há muito que eu sei
                                               Sei o tempo que já passei
                                               Não sei o que terei de passar.

                                               Sei que tenho voltas a dar
                                               Sei que morro não tarda nada
                                               Sei que a vida é desgraçada

                                               E quem trabalha sei eu
                                               E tudo quanto sei é meu.
                                               Sei muito e não sei nada !

E com estas palavras, que encerram pensamentos muitos íntimos e profundos, despedimo-nos do Sr. António Viseu com um obrigado pela paciência com que nos aturou, com os votos de saúde e os desejos de que possamos voltar a falar e a ouvir novos versos no seu 101º aniversário.