sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

OS NOSSOS UTENTES


LIBERDADE DA CONCEIÇÃO COELHO




         Para além das naturais particularidades, o percurso de vida dos nossos utentes é, de uma maneira geral, comum a todos eles, especialmente aos que nasceram e viveram largos anos no campo. Isto porque, como sabemos, as condições de vida, que então estavam estabelecidas, eram favoráveis às dificuldades que cada um ia vencendo como podia.
            A nossa entrevistada deste mês, nascida nos Baldios, é a mais nova de nove irmãos e, só por aqui, se pode avaliar como seria difícil satisfazer minimamente as carências de uma família cujo pai era trabalhador rural. Ouçamos então o que tem para nos dizer a D. Liberdade:

            “Os meus pais trabalhavam no campo, mas o meu pai também ia fazendo os seus biscates de pedreiro. E era mesmo de pedreiro, porque nesse tempo não se usavam os tijolos. As construções, mais rudimentares, eram apenas constituídas por pedras e lama barrenta amassada, usadas sobretudo, não só para casas de habitação modestas, como para instalações para o gado e para guardar as alfaias.”

            Com uma família tão numerosa, certamente que todos tiveram de começar a trabalhar muito cedo …

            “Pois, com certeza. Para além disso, e também porque vivíamos longe de escolas, nunca soubemos o que isso era. Todos começámos a lutar pela vida muito novos. Primeiro no campo e, depois, alguns deles como pedreiros ou padeiros. Escusado seria dizer que também eu comecei cedo. O primeiro trabalho que me coube em sorte foi desmoitar sargaços. Mal podia com a enxada. E, como era norma na altura, trabalhava-se de sol a sol. Passámos uma vida de miséria e de sacrifícios. E, quando não havia trabalho, tínhamos de recorrer a pão com boletas ou azeitonas. A nossa sorte é que tínhamos um pedaço de terra onde íamos plantando e colhendo hortaliças.”

            Passados esses anos de infância entrou na adolescência…

            “Sim, os anos foram passando e já com dezoito anos comecei a namorar o que ainda hoje é o meu marido. Na minha juventude eram frequentes os bailaricos ali na zona. Recordo-me, até, que nesses tempos o Entrudo era a quadra mais festejada. Para além dos tradicionais fritos, fazíamos arroz doce e matava-se o peru, que tinha sido alimentado com os farelos, da farinha que comprávamos para o pão, e com as couves produzidas na horta. E claro que todos se mascaravam, não com roupas porque as que tínhamos eram as que usávamos no dia-a-dia. Pintávamo-nos com mascarra, fazíamos um boneco de palha para queimar e fazíamos versos uns aos outros, a propósito de tudo e de mais alguma coisa.”

            E chegou na altura de dar novo passo…

            “Exactamente. Com 22 anos juntei-me com o meu marido – Mário António dos Santos - mas, passados dois meses, casámos. Tivemos dois filhos, a Brásia e o Carlos, hoje com 54 e 56 anos respectivamente. Quando casámos fomos morar para Vale de Asna, da família Caiados, num monte que hoje já não existe. Só lá estivemos um ano. Fomos depois para os Baldios, ainda que para casas diferentes. Primeiro para uma que era de um dos meus irmãos, que fora trabalhar para o Casal do Marco e depois, na parte de um terreno que nos ficou do meu pai após a divisão, fizemos uma casita onde nos fixámos até à nossa recente entrada no Abrigo.

            Mas preferiram vir para aqui em vez de estarem na vossa casa?

            “Com grande pena nossa, temos de dizer que os Baldios estão abandonados. Já não há lá residentes. Vivíamos muito sós e sem podermos recorrer a alguém em caso de aflição. A acrescentar a isto, o meu marido é bastante doente. Já foi operado três vezes, à próstata, à bexiga e ao coração. Tudo isto e ainda o facto de estar bastante surdo, que nem a compra de um aparelho resolveu o problema, levou-nos a pedir a admissão como residentes.”

            Ainda não há dois meses que aqui estão. Qual é a vossa opinião?

            “Foi o melhor passo que podíamos ter dado. Sentimo-nos aqui bem. Pela primeira vez não nos preocupamos com o frio que lá faz fora. Aqui dentro não há frio nem calor. Gostamos da comida e não temos razão de queixa de ninguém. Vamos ao ginásio e, pelo menos duas vezes por semana, controlamos a diabetes. E, para terminar, vou dar-lhe outra informação: Eu e o meu marido vamos desfilar no próximo cortejo de Carnaval. Só não posso dizer de que vamos mascarados. Essa vai ser a surpresa.”


            Obrigado, D. Liberdade. Oxalá que possam gozar desse bem-estar ainda durante muitos anos.