quinta-feira, 6 de setembro de 2012

OS NOSSOS UTENTES



Sofia Machado: uma vida com história

Revela-se tarefa impossível pensar, sequer, que vamos conseguir contar, no espaço disponível, a história de vida de uma família que conheceu durante anos a angústia, a aflição e a incerteza do que seria o seu dia seguinte.
 

SOFIA MARIA SANTOS MACHADO é utente deste Abrigo e tem 83 anos. Foi casada durante 58 anos com João Joaquim Machado, também conhecido como “Machadinho”, falecido em Março deste ano. Deste enlace nasceu uma menina, a Maria Margarida, hoje com 56 anos, que também ficou marcada para a vida inteira pela perseguição movida injustamente ao seu pai.



“A minha infância e juventude foram sempre difíceis”, confessa a nossa entrevistada deste mês. “Sendo a mais velha de dez irmãos, cedo tive de assumir as minhas responsabilidades e contribuir para a economia do lar. A certa altura, o meu pai arrendou uma pequena fazenda para ir aproveitando a mão-de-obra dos filhos, ainda crianças, que não tinham idade para trabalhar por conta de outrem. Depois, e de acordo com a idade que tinham, assim era a tarefa que lhes era destinada quando passavam a trabalhar por conta dum patrão. Isso acontecia entre os 10 e os 13 anos. Vivíamos então no Monte das Forneiras e a escola mais próxima situava-se em S. Mateus. Como eram muitas as crianças por aqueles lados e havia apenas uma professora e uma sala, tínhamos de esperar que houvesse vaga para assistirmos às aulas. A minha mãe, que sabia ler e escrever, foi-me ensinando em casa as primeiras letras e os números, de modo que, quando consegui lugar na única sala, a professora, de nome Marieta Marques Martins, pôs-me logo na 2ª classe. Todos os meus irmãos aprenderam a ler, ainda que ali só se leccionasse até à 3ª classe. Muitas vezes abalei de casa com a minha mãe, ainda mal se via, para estarmos cedo à porta da escola a fim de tentar um lugar na sala.”

E a D. Sofia, sem a necessidade de lhe fazermos perguntas, continuou: “Terminada a escola, era eu que estava incumbida de ir tratando dos meus irmãos mais novos, que iam nascendo em média um de dois em dois anos. Com 11 anos iniciei-me nas tarefas agrícolas mais leves, mas logo um ano depois comecei os mais difíceis, os de enxada ou foice na mão, como por exemplo a sachar grão, milho, feijão, ceifar, etc. Com apenas 13 anos já trabalhava para outros patrões, de sol-a-sol, ceifando e fazendo todo o género de serviços rurais, a distâncias de bastantes quilómetros de casa, palmilhando pelos campo fora, até chegar antes do nascer do sol ao trabalho, onde me era exigido fazer o mesmo que uma Mulher. Regressava a casa já noite dentro. Era assim nesses anos…”

Saltando no tempo, adiantou: “Casei em Fevereiro de 1954. Tinha então, já na altura, uma noção perfeita do que me esperava, pois sabia e compartilhava as ideias e convicções do meu marido que, aliás, já em solteiro havia sido preso três vezes por motivos políticos.” E recorda um dos muitos episódios de que a sua vida está recheada: “Quando casámos, fomos morar para o Monte do Machado, também perto de S. Mateus. Em Maio, de 1961, o meu marido deixou de poder ir dormir lá a casa, embora lá fosse comer as refeições, mas sempre com muitas cautelas, porque sabia que a Pide andava a querer apanhá-lo. Numa noite desse mês fui acordada, por volta das 4 horas da manhã, com umas pancadas brutais que davam contra a minha porta. Pensei logo o que era, estava sozinha com a minha filhinha de 5 anos, saltei da cama e perguntei quem era, enquanto mergulhava um vestidinho vermelho num alguidar com água. Aqui devo esclarecer que nós tínhamos combinado um sinal de aviso: se eu me apercebesse de algum perigo, pendurava um vestido da nossa filha num estendal que havia frente à casa e, nesse caso, ele afastar-se-ia de imediato. Responderam que era a autoridade e que abrisse imediatamente a porta. Abri e vi um enorme aparato policial de GNR’s e PIDES, um deles de metralhadora em punho, direita a mim, perguntando pelo meu marido. Disse-lhes que não sabia. Peguei no vestido e fui para sair mas eles desconfiaram e impediram-me. Apesar dos meus protestos dizendo que o vestido fazia falta para a criança vestir, eles tiraram-mo das mãos, dizendo que ele não precisava de nenhum sinal e não me deixaram sair de casa.(*) Fiquei naturalmente em pânico. A sorte é que o João, escondido numa seara próxima aproximava-se de casa sempre muito devagar e com redobrada atenção. Lembro que era de noite e não havia nenhuma luz mas, mesmo assim, ele lá conseguiu vislumbrar uns vultos (havia jipes parados e homens que circulavam à volta do Monte) e fugiu. Os guardas e pides revistaram toda a casa, vasculhando tudo e mais alguma coisa, procurando quaisquer vestígios ou elementos comprometedores. Não encontraram nada. A quantidade de agentes e jipes era tanta, que deu para fazer o mesmo, e ao mesmo tempo, a várias Famílias vizinhas e, inclusivamente, na casa dos meus sogros.. De seguida, metade daquele aparato ficou junto de mim e da casa e o restante dirigiu-se para um monte, chamado Ricolme, onde morava o meu cunhado Manuel, irmão do João, pensando que ele estaria lá escondido. Ainda antes de perguntarem fosse o que fosse ou dizerem quem eram, começaram logo a disparar tiros contra a porta. A minha cunhada chorava, com o filho ao colo, e o meu cunhado pegou na espingarda de caça que tinha, pois pensavam que eram assaltantes. Finalmente lá disseram que era a autoridade e o meu cunhado abriu logo a porta, dizendo que podiam ter informado mais cedo, pois não tinha nada a esconder. Não mataram ninguém porque a porta era resistente e as balas ficaram lá cravadas durante muitos anos. Depois de virarem tudo do avesso lá concluíram que o João não estava. A minha cunhada, quando conseguiu falar, pois apanhou um “susto de morte” e perante aquele aparato e brutalidade, disse: Hiiii! É preciso isto tudo para prender um Homem tão pequeno e que não faz mal a uma formiga?...”

E o relato continua, sem pausas nem dúvidas: “Na sequência destes acontecimentos, o meu marido viu-se forçado a sair desta área e, sob nome fictício, andou por esse Alentejo fora, sempre a pé, no meio de matos e searas, evitando as estradas e veredas para não ser visto por ninguém. Passou fome e sede. Chegou a comer folhas das faveiras num faval, de noite, para matar a fome e para beber água atava os lenços, que tinha com ele, uns aos outros para chegar à água dos poços e depois espremia-os na boca, para vencer a sede. Contou com a solidariedade e coragem de muita gente do Povo de Montemor e doutras terras por onde passou, que do pouco que tinham, algumas vezes dividiram com ele um almoço ou um jantar e lhe deram dormida. Mas muitas noites foram passadas debaixo das árvores ou onde calhava, com frio ou chuva. Assim foi caminhando até chegar à zona de Vila Viçosa, onde ninguém o conhecia. Procurava qualquer trabalho para conseguir o seu sustento. Trabalhou nas pedreiras e no que lhe foi surgindo. Esteve lá perto de um ano, período durante o qual só o vi por três vezes, e sempre em locais diferentes.”

Mas o pior ainda não tinha surgido: “Certamente por denúncia, uma patrulha da GNR acabou por o prender, no dia 13 de Maio de 1962. Levaram-no primeiro para o quartel de Vila Viçosa e logo depois para a sede da Pide em Lisboa. Só em finais de Junho tive conhecimento, por informação particular, que o meu marido estava preso. Fui logo com a minha filha à rua António Maria Cardoso, a fim de saber o que se passava e de o ir visitar. Disseram-me de imediato que ele não tinha visitas mas que passasse para outro gabinete porque queriam conversar comigo. Separam-me da minha filhinha, que tinha então 6 anos, não obstante os meus protestos. Acabámos por ser ambas interrogadas em separado, durante toda a tarde. Nem por uma miúda tiveram o menor respeito. De mim queriam saber, essencialmente, quem é que me tinha dito que o meu marido estava preso, e muitas outras questões, tentando apanhar-me em contradição. O agente da Pide que me interrogava ia dando fortes pancadas numa secretária, que me faziam tremer dos pés à cabeça. Respondi sempre o mesmo, que tinha ido á Vila de Montemor e ouvia nas ruas toda a gente a comentar que o João Machado tinha sido preso. Esta conversa ouvia-se à porta das tabernas, das lojas, das pessoas que andavam na rua, por todo o lado, mas eu nem conhecia as pessoas que o diziam, era tanta gente…
Disse que estava ali para saber se era verdade e, se fosse, para o ver. Confirmaram a sua prisão mas não me deixaram vê-lo. À menina soube depois que lhe perguntaram se ia lá a casa alguém que não conhecesse, que não pertencesse à família, se se juntavam lá pessoas em reunião, etc.. Ela tremia de medo, sem saber de mim, a prever o que se estava a passar com o Pai... e tão pequena… Isto durou toda a tarde, só nos deixando sair após a hora da camioneta que vinha para Montemor. Não consegui ver o meu marido, nem saber nada dele (só que estava lá), nem regressar para Montemor. Assim estava sozinha, numa rua de Lisboa que não conhecia, perto da noite, com a minha filhinha agarrada á minha mão e a pensar o que fazer, ainda com a cabeça atordoada com tudo o que estava a passar. Só desta vez o João esteve preso durante 6 anos, durante os quais foi sujeito às mais diversas e brutais formas de tortura.

Apesar de ter vivido anos de angústia, aflição e desespero, nem um só dia se arrependeu de ter escolhido o seu João Machado para marido: “Nunca. Para além do amor que nos unia, eu estava consciente dos riscos que corríamos. Mas sabia também que a forma de o meu João idealizar a vida era correcta. Afinal, o seu “pecado” era apenas o de querer pão e justiça social para todos os portugueses. Foi simplesmente por defender isto que foi incessantemente perseguido e esteve detido nas masmorras políticas por várias vezes (cinco), num total de cerca de 10 anos, um castigo pior do que se fosse um malfeitor. Nunca roubou nem fez mal a alguém. Somente defendia os seus ideais, que eram a Paz, Liberdade e Justiça Social. Era um homem justo e bom.

Como avisámos no início, era impossível em tão curto espaço darmos conta da dimensão desta família, que viveu durante largos anos em constante sobressalto mas nunca abdicou de lutar para ver concretizados os seus sonhos.

Para terminar, revelamos o que, um dia, a neta da D. Sofia lhe disse: “A avó foi uma pessoa inteligente. Soube escolher para marido um Homem Bom, como toda a Gente que o conhece diz e que dedicou toda a sua vida a uma causa que visava apenas justiça social para todos”.

                                           ………………………………………………

(*) – Nota: Este episódio, em jeito de conto, e com o título de “O Sinal” faz parte de um capítulo do excelente livro “Outros Contos de Vila Nova”, da autoria de João Luís Nabo, cuja leitura nos permitimos recomendar.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O ABRIGO esteve na Feira da Luz


Mantendo uma tradição que já vem de longe, o Abrigo dos Velhos Trabalhadores esteve novamente presente no importante certame que anualmente acontece em Montemor e que dá pelo nome de “Feira da Luz/Expomor”.

 Para além da sua reconhecida importância em termos económicos, a Feira proporciona diversão e conhecimentos culturais a todos os milhares de pessoas que ali acorrem durante seis dias, para além de ser também pretexto para reunir familiares ou amigos que a vida separou geograficamente e que naqueles dias voltam a abraçar-se.

 

O Abrigo mais uma vez esteve representado com um pavilhão, onde havia bastantes motivos para ser visitado. 
 

Realizados pelas habilidosas mãos das nossas utentes, ali puderam ser vistos, apreciados e adquiridos laboriosos trabalhos em tecido e croché, nomeadamente saquinhos, pegas e almofadinhas, simples ou contendo sabonetes ou ervas aromáticas, como, por exemplo, a alfazema. 


Não faltavam também as tradicionais rifas, onde era sempre garantido um valioso e útil prémio.
E o que dizer daqueles biscoitos, com sabor a limão, ou ainda do bolo, a que o coco dava um toque de requinte, que podiam acompanhar um cafezinho que as nossas colaboradoras ou voluntários(as)  também ali serviam com simpatia? Excelente!

Entretanto, podia dar-se uma vista de olhos pelos painéis que mostravam, nas dezenas de fotografias expostas, vários aspectos da nossa realidade, tais como o dia-a-dia dos utentes, as actividades de animação sócio cultural, os passeios, a colónia de férias e, também de enorme importância, algumas fases das obras de remodelação e ampliação das instalações do edifício, que ainda estão a decorrer.


Claro que quem ali se deslocou estava consciente de que ao adquirir alguns dos nossos produtos, estava simultaneamente a contribuir para uma obra cada vez mais necessária e que a todos engrandece. Bem hajam!