sexta-feira, 17 de maio de 2019

Os nossos utentes - VALENTIM ANTÓNIO LINGUIÇA


Os nossos utentes

           

 VALENTIM ANTÓNIO LINGUIÇA




            Sofreu na pele as misérias de um tempo que não lhe deixou saudades. E o nosso amigo Valentim alerta: “quem hoje diz mal de como se vive, não sabe avaliar o que foram as dificuldades que os anos trinta e quarenta trouxeram às pessoas de menos recursos”.

            Natural de Foros de Vale Figueira, onde sempre viveu, o nosso entrevistado deste mês nasceu numa família de oito irmãos (quatro rapazes e quatro raparigas) dos quais só a Joaquina já faleceu. E recorda:



            “Andei na escola apenas durante uns meses, porque em casa os proventos eram poucos e tive de abandonar os estudos. Foi uns meses antes do ciclone de 1941. Então a minha avó, conhecendo a realidade, disse aos meus pais que me levava para a casa dela, já que pelo menos ia comendo. Fiquei lá na vinha a guardar as uvas dos ataques dos pássaros, mas era eu que as ia comendo. Passava-se isto no Monte da Misericórdia, junto a S. Gens.”



            Esteve por lá durante muito tempo?



            “Perto de dois anos. Nessa altura o meu pai era guardador de porcos e quis que eu começasse a acompanhá-lo como ajuda. Acho que ganhava qualquer coisa, mas nunca fiquei a saber quanto. Mas, se ganhava, de certeza que era muito pouco. Era na Herdade do Meio, perto do Ciborro. Calçava uns tamancos com solas de pau e por cima com pedaços tirados de outro calçado já gasto. Num dia, recordo-me bem, em que esteve um enorme nevão, não pudemos sair com o gado e demos-lhe umas bolotas que tínhamos apanhado.”



            E enquanto foi menino nunca teve qualquer entretenimento?



            “Como acontecia com alguma frequência, um ano esteve um circo em Foros de Vale de Figueira. Como outro qualquer garoto, é claro que também eu fiquei entusiasmado e pedi à minha mãe para me deixar ir ao espectáculo. E então ela, coitada, lembrava-me que não podia ir porque não tinha nada para calçar e ir descalço era uma vergonha. E acrescentou: a não ser que queiras levar as minhas botas. São velhas mas melhores do que nada. E lá fui eu, todo contente.”



            Mas as boas recordações de infância não são muitas …



            “Um dia. Teria perto de dez anos, o meu pai andava a esgalhar e disse-me para eu ir a casa buscar uma garrafa para ele tentar ir arranjar um pouco de azeite, porque na altura havia racionamento e ainda mais dificuldade em arranjar comida para casa. Mas eu esqueci-me e ele preparava-se para me chegar a roupa ao pelo, mas a intervenção da minha avó evitou a sova que seria certa. Mais tarde eu até compreendi aquelas reacções. Os pais andavam revoltados por terem dificuldade em alimentar a família e tomavam essas atitudes mais agressivas. Repare que para além dos artigos de primeira necessidade estarem racionados, alguns comerciantes vendiam fora das senhas o que os clientes precisavam mas, claro, a preços muito superiores e aos quais a maioria não podia chegar. Foi época de muita fome em muitas casas”



            Mas felizmente que os piores anos foram passando …



            “Cedo comecei a ganhar a vida. Ia de bicicleta para os diversos locais de trabalho e fiz de tudo: carreiro, porqueiro, cabreiro, esgalhei, gadanhei, tirei cortiça e fui tosquiador de ovelhas, encartado. Nunca neguei qualquer trabalho. Aliás, um dia num concurso em Évora ganhei o primeiro prémio como o melhor tosquiador.”



            Já com o futuro mais ou menos definido, outras etapas se seguiram…



            “Com dezoito anos comecei o primeiro namoro, com uma rapariga mais ou menos da mesma idade, que morava num monte um pouco distante. Ia lá falar com ela mas era só de janela alta. E um dia disse-lhe:- Menina, assim de gargalo no ar, a olhar para cima, com dor no pescoço, nunca mais cá venho. Ou pedes ao teu pai para que autorize o namoro dentro de casa ou nada feito. A moça lá conseguiu arranjar autorização e eu entrava, mas sempre com a mãe de olhar em nós. Ao menor barulho que considerasse esquisito, logo se punha à tabela.”



            Mas o namoro lá ia prosseguindo…



            Durou cerca de um ano. Um dia, andava eu a esgalhar na Herdade da Derreada, quando alguém me veio dizer ao ouvido que ela andava a namorar com outro, que era nem mais nem menos do que um antigo namorado. E eu decidi na altura não lhe dizer nada. Para não ficar desarmado, esperei até arranjar outra namorada e então desfiz o anterior. Mas antes de optar definitivamente pela que ainda hoje é minha mulher, tive vários namoricos com moças que viviam por aqueles lados.”



            E, então, assentou.



            “Claro. Com 23 anos dei finalmente o nó com a Maria Custódia da Silva Fomos morar para o Campo do Espargal. Estivemos aqui dois anos após o que nos mudámos para os Foros de Vale Figueira. Mudámos depois para o Monte de Vale Figueira, da Casa Cunhal. Aqui vivemos 23 anos, já com os nossos dois filhos – Francisco e Paulo. Um dia, o Dr. Cunhal, andava eu a semear trigo à mão, porque na altura ainda não havia máquina semeadora, perguntou-me se eu estaria interessado em ser tractorista. Eu disse-lhe que sim e acabou por ser a minha função durante mais de 40 anos.

Quando me reformei voltei para os Foros onde vivi até entrar aqui no Abrigo.



            Muitas felicidades para o casal, são os nossos votos!