quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

OS NOSSOS UTENTES

MÓNICA ETELVINA FIGUEIRAS BARBEIRO

Possuidora de uma excelente memória e de uma fluência assinalável, apesar de ter sido atingida por problemas graves de saúde, a nossa entrevistada deste mês nasceu em S. Pedro da Gafanhoeira (Arraiolos) em 26 de Junho de 1937. Viúva há 46 anos de João Inácio de Mira Salgado, teve três filhos, um dos quais faleceu há 11 anos e cuja perda ainda hoje lamenta e chora.

E vai contando:

“Éramos cinco irmãos (3 rapazes e duas raparigas). Todos nós frequentámos o ensino primário e concluímos a 3ª classe ainda que eu, mais tarde e já viúva, tenha estudado e feito o exame da 4ª classe.”

Aproveita este tema da conversa para contar o que, hoje, não deixa de ser insólito mas que na altura, e dadas as circunstâncias, se tratava de uma situação dita normal:


“O meu avô paterno era uma pessoa sem grandes estudos mas de enorme sabedoria. Desempenhava as funções de regente escolar, nome que se dava às pessoas que não tendo frequentado sequer o Magistério, substituíam nas zonas rurais os professores oficiais. Então, montado no seu cavalo, lá ia de monte em monte ensinar as primeiras letras aos filhos dos lavradores mais abastados. Curiosamente, este mesmo avô tinha 9 filhos (foram pelo menos estes os que conheci) e todos eles eram analfabetos, só vindo a aprender alguma coisa já em adultos.”

Mas como é que isso se explica ?

“Explica-se pelo facto de, sendo tanta gente a sentar-se à mesa todos os dias, havia que pôr toda a família a trabalhar, desde cedo, para garantir o sustento da casa.”

Mas voltando à D. Mónica …

“Quando acabei a escola, comecei quase de imediato, teria uns dez ou onze anos, a apanhar azeitona. E daí, até me casar, trabalhei sempre no campo, ao mesmo tempo que aprendia a fazer todas as tarefas domésticas. E com 15 anos comecei a namorar aquele que viria a ser o meu marido. E tinha eu 22 anos e o João 25, juntámo-nos em Setembro e casámos em Novembro.”

E então houve alteração na sua vida …

Fomos morar para o Sargaço, um monte perto de Arraiolos que pertencia ao meu sogro. Foi aqui que nasceu o meu filho mais velho. Entretanto, como a propriedade era pequena e o retalho não dava para nos governarmos, o meu marido ingressou na Polícia e fomos morar para Beja. Ele tinha já tirado o 2º ano dos liceus, estava especializado em “morse” e era sua intenção entrar nos quadros da Marconi, mas devido a doença não conseguiu esse objectivo. E foi assim que se manteve por Beja, onde atingiu o posto de 2º subchefe, com vários louvores.”

Mas um acontecimento trágico veio perturbar a sua vida:

“O meu marido veio a falecer em 1971, tinham os meus filhos 9, 7 e 5 anos. Vi-me, portanto, com dificuldades. Como eu então só tinha a 3ª classe e os empregos eram poucos, o Chefe da Polícia ainda tentou que eu entrasse como contínua numa escola primária. Porém, como eu não tinha ninguém de família em Beja que pudesse olhar durante o dia pelos meus filhos, eles teriam de entrar para a Casa Pia. E eu não quis.”

E como resolveu a sua vida ?

“Regressei à minha aldeia natal, a fim de não me separar dos meus filhos. E a minha mãe tomava conta deles durante o dia enquanto eu voltava aos meus trabalhos no campo. Foi por esta altura que fui tirar o diploma da 4ª classe, na expectativa de arranjar um emprego melhor. Mas não consegui.”

E tinha como único rendimento o produto do seu trabalho ?

“Exactamente. Nem sequer recebia qualquer pensão de sobrevivência. Porque o meu marido tinha falecido de morte natural, e não em missão ao serviço da polícia, não tinha direito a receber fosse o que fosse. Apenas, salvo erro, a partir de 1975 comecei a receber uma quantia, ainda que modesta.”

E por aí se foi mantendo ?

“Sim, senhor. Também trabalhei nas cooperativas agrícolas, tal como os meus filhos, e depois em Arraiolos a fazer tapetes na fábrica “Califa”. Continuei a viver em S. Pedro, trabalhando e fazendo toda a lida da casa. E foi o que fiz até me reformar. Entretanto, há uns meses, depois de um episódio de doença mais grave, fui viver para casa da minha filha Isaura, que reside nas Fazendas do Cortiço.”

Até que …

“Em Novembro, e porque o meu estado de saúde se agravou com uma trombose venosa, fui aceite no “Centro de Dia” aqui do Abrigo, onde actualmente me encontro. É que já não tinha condições para estar sozinha. Há cerca de dois anos, ainda em S. Pedro, fui vítima de um AVC e fiquei toda a noite caída no chão sem ter quem me acudisse. Tinha consciência do estado em que me encontrava mas nem sequer conseguia chegar ao telefone para pedir auxílio. Só de manhã é que chamei por socorro e fui ouvida”.

E como são os seus dias ?

“São passados como posso. Gosto de ler e até de ver televisão, mas os meus olhos já não são o que eram. Estou há mais de um ano à espera que me chamem para ser operada às cataratas e nem esse dia eu sequer vejo chegar.”

Pode ser que já não demore. Mas a D. Mónica já ficou a saber que, dentro do possível, vai ter acesso a jornais, revistas e livros para se ir entretendo.”


Aproveitamos para endereçar à D. Mónica, a todos os Utentes do Abrigo, aos membros dos Órgãos Sociais, Funcionários(as), Colaboradores(as), Sócios(as), Leitores(as) e respectivas Famílias, um BOM NATAL e um NOVO ANO sobretudo com muita saúde!

terça-feira, 22 de novembro de 2016

OS NOSSOS UTENTES

CUSTÓDIO FRANCISCO CAMISOLA

Foram mais de sessenta, os anos de trabalhos esforçados por que passou o nosso entrevistado deste mês ao longo da sua vida.

Ouçamos a sua história:

“Nasci na freguesia de Nossa Senhora da Tourega, concelho de Évora, no dia 31 de Outubro de 1935. Éramos três irmãos, dois rapazes e uma rapariga, já falecida. O meu pai era carreiro e, ainda eu tinha pouca idade, mudámo-nos para Évora. Por aí estivemos até aos meus seis anos. Por esta altura o meu pai faleceu e, sendo eu o mais velho dos irmãos, fui pouco depois “convocado” para me apresentar ao trabalho. Comecei com sete anos a guardar porcos na Herdade das Cabanas, ganhando vinte cinco tostões por dia (um cêntimo vírgula vinte cinco nos dias de hoje), secos, isto é, sem direito a alimentação. Fui mantendo este estatuto até aos dez anos, altura em que, no mesmo local, já guardava, para além de porcos, também ovelhas, cabras e o que calhava. Passsei a ganhar 1 escudo (dez tostões) por dia, acrescido de 1 litro de azeite e 30 kg. de farinha por mês. E trabalhava do nascer ao pôr do sol.”

E a escola ?

“Nem vê-la. Por conta de outro patrão continuei, isso sim, na escola da vida, então na Herdade das Pereiras, na mesma actividade, ganhando agora os mesmos dez tostões por dia e mais o almoço (antes do nascer do sol), o jantar (a meio da tarde) e a ceia (às sete ou oito horas da tarde). Entretanto, a Herdade das Pereiras mudou de donos, para a família Freixo. Mas eu continuei lá, embora com outros encargos. Deixei de trabalhar com o gado e passei a executar outras tarefas. Aqui, e tinha agora 15/16 anos, já ganhava sessenta escudos por mês (trinta cêntimos actuais) mais 2 litros de azeite e 35 quilos de farinha.”

E foi ficando por estas paragens ?

“Não. De seguida fui para o Freixial, que pegava com o Cromeleque dos Almendres. Tratava dos cavalos, amansava-os e preparava-os para as provas de hipismo. Ganhava 10 escudos por dia (cinco cêntimos de euro) e de comer.

E por aí ficou ?

Não. Com cerca de dezoito anos mudei novamente de emprego. Trabalhava para vários patrões nos mais diversos serviços: limpava árvores, podava, tirava cortiça e, enfim, ia fazendo todo o género de tarefas agrícolas. Nesta altura a jorna situava-se entre os dezassete e os dezoito escudos por dia (oito cêntimos e meio/nove cêntimos) Sem mais nada.

Mas, entretanto, outras coisas se foram passando na sua vida.

“Em 1954 fui pela primeira vez às “sortes”, isto é, à inspecção militar. E digo da primeira vez porque, tendo então ficado “adiado”, tive de lá voltar no ano seguinte. E fiquei “apurado”. Assentei praça em Tomar, mas um mês depois fiquei livre “ao número”. Isto acontecia quando a quantidade de recrutas era superior ao pretendido. Então, faziam um sorteio para mandarem para casa os que tinham a sorte de sair na “rifa”.

Mas certamente que a sua vida não foi só de trabalho. Com certeza que também teve as suas horas livres. Como é que as aproveitava?

“Claro que na minha mocidade tive vários namoricos. E fiz bem a minha obrigação. Se não me falha a memória, foram catorze as moças que eu namorisquei. Até conhecer a décima quinta, com quem acabei por casar. A Maria Luísa tinha catorze anos quando começámos a namorar e dezoito meses depois já estávamos casados. Eu tinha 25 anos. Fomos então morar para a Boa Fé, em cuja Igreja foi oficializada, há 56 anos, a união com a ainda minha esposa Maria Luísa Cunha Pinheiro. Deste enlace nasceu há 54 anos o nosso único filho – Ricardo José Pinheiro Camisola.

Com a vida de casado, muita coisa mudou …

“Nalgumas coisas, sim. Ainda a morar na Boa Fé, continuámos os dois a trabalhar no campo. Porém, a dada altura, consegui emprego na firma Silva Borges, Limitada, aqui em Montemor. Era uma grande empresa, onde praticamente fiz de tudo. Cortei muitos milhares de pinheiros por todo o país. Só no Algarve estive cinco anos. Era muito amigo de toda a família. Ali trabalhei até aos setenta anos, idade com que me reformei.”

Mas continuava a residir na Boa Fé ?

“Não. Em 1977 mudei a minha residência para Montemor. Tinha comprado, nos Foros da Rosenta, um terreno, com pouco mais de um hectare, e ali construí a minha casa.”

Problemas de saúde obrigaram o casal Camisola a recorrer aos serviços do Abrigo, onde estão ambos, no “Centro de Dia”, desde 1 de Setembro passado. Como se deduz do que nos disse anteriormente, nunca frequentou a escola e não sabe ler nem escrever. Todavia, como nos confessou, no trabalho costumavam dizer que ele era um autêntico computador…

No seu dia-a-dia frequentam o ginásio, vão vendo televisão quando o assunto lhes interessa, conversam e o sr. Custódio prometeu ir inscrever-se para começar a frequentar, aqui mesmo no Abrigo, as aulas de alfabetização.       Em frente, Amigo!

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

OS NOSSOS UTENTES

EULÁLIA RITA

Logo no começo da nossa conversa, a D. Eulália fez-nos perceber que a sua vida sempre tinha decorrido com a normalidade possível e que não tinha episódios interessantes para nos contar.

No entanto, prontificou-se a fornecer-nos os elementos principais que caracterizaram a sua história, umas vezes mais felizes, outras nem tanto como, aliás, acontece com toda a gente.

“Nasci há 81 anos no Monte Verdugos de Cima, no concelho de Coruche. Éramos cinco irmãs, resultado da procura de um rapaz que nunca chegou a aparecer. Teria uns cinco anos mudámo-nos para um outro monte perto do local do nascimento, de nome Verdugos de Baixo. Dali fomos para o monte de Pensalinhos, no mesmo concelho.”



Era, então, a altura de ir para a Escola…

“Não foi assim. Nunca frequentei a escola. Das cinco irmãs, apenas as duas mais novas souberam o que isso era. Comecei foi cedo a trabalhar. A minha primeira tarefa foi arrancar sargaços, limpando os terrenos para se poderem cultivar. Depois fui cavar para uma vinha e daí entrei na rotina habitual, ceifando e fazendo os mais diversos trabalhos agrícolas. Por esta altura morava então no monte da Areia, ainda naquele concelho.”

E ainda ficou por aí durante muito tempo ?

“Já com 18 anos, fomos para o monte de Pensais, onde comecei a namorar o que ainda hoje é o meu marido. Como também era usual nesse tempo, conhecemo-nos no trabalho e, como era meu vizinho, o namoro surgiu naturalmente.”

E algum tempo depois aconteceu o casamento …

“Eu já com 22 anos e o Florindo com 30, juntámos os trapinhos e só quando o meu filho foi baptizado é que oficializámos o casamento. Continuámos a residir em “Pensais”, lugarejo onde morava muita família. O meu marido chama-se Florindo Pereira Nunes e tivemos dois filhos: o Fernando que nasceu há 57 anos e a Rosa dois anos depois.”

E continuaram a ter as mesmas ocupações ?

“Claro. O casamento não alterou a vida de trabalho que sempre levámos. Aliás, como já disse, a minha vida decorreu sempre calma e sem grandes motivos que mereçam ser contados”.

Finalmente …

“Morávamos em Benalfange quando nos reformámos. O meu marido já tinha problemas na vista para os quais, segundo os médicos que então consultámos, não havia solução nem sequer através de cirurgia. Com o tempo a doença foi-se agravando até que perdeu a visão. Foi este o motivo por que teve de vir para o Abrigo como residente. Nessa altura fui morar com a minha filha, que reside aqui em Montemor, e para estar perto do meu marido, que necessita de cuidados constantes, também aqui ingressei mas como utente do “Centro de Dia”.

E como vai passando os seus dias ?

“Triste, sobretudo por ver o meu marido naquela situação. De qualquer modo, frequentamos os dois o ginásio e passamos os dias a conversar, quando para isso temos vontade. Eu vejo televisão mas também com pouca frequência. Por outro lado, e porque não sei ler, não posso entreter-me com jornais, revistas ou livros. A funcionária Maria do Céu, com toda a sua boa vontade, vai tentando ensinar-nos as letras mas, por isto ou por aquilo, falto muitas vezes e não tenho aproveitado."

Mas o Abrigo promove outras iniciativas de que os utentes podem usufruir. Não as aproveita ?

“Eu estou cá há pouco tempo e, portanto, este ano deixei passar algumas oportunidades. De qualquer modo, como o meu marido não vê praticamente nada, eu também não tenho vontade de ir, até porque ele necessita de constante assistência.”


Obrigado, D. Eulália, por nos ter dispensado algum do seu tempo.

         

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

OS NOSSOS UTENTES

FILIPE SILVESTRE NETO

Com 91 anos feitos em Maio, o nosso entrevistado goza de boa disposição, que facilmente transmite, e possui uma excelente memória.
               
“Nasci no Monte da Figueira, perto de S. Mateus, numa família de 11 filhos, 3 raparigas e 8 rapazes. Veja, portanto, a balbúrdia que, com tanta gente miúda, havia naquela casa.”

 E residiram sempre no mesmo sítio ?

“Não. Como o meu pai era ganadeiro, nas casas agrícolas de João Manuel Malta, António Lopes de Andrade e de Florêncio Alfacinha, percorremos e estacionámos em vários montes, dentro e fora do concelho de Montemor.”

E a escola ?

“O que é isso? Na altura não havia tempo nem condições para nos darmos a esse luxo. Portanto, logo aos sete anos comecei como ajuda de gado, na companhia do meu pai, na herdade do Picote. E ainda hoje apenas leio e conheço as letras de forma e até sei juntá-las, mas escrever … nem sequer o meu nome.”

E esclarece:

“Com 15 anos comecei a fazer outras tarefas, mas sempre ligado à actividade do campo, onde fiz praticamente todos os trabalhos. Alguns anos mais tarde foi chegada a altura de começar a namorar. Não fui muito namoradeiro porque cedo conheci a rapariga – de seu nome Gertrudes Maria Saúde - que haveria de ser minha mulher durante mais de sessenta anos. Para quê andar a fazer outras perder tempo se eu já sabia que era aquela que eu queria ?”.

Tendo chegado a essa conclusão, o casamento era inevitável …

“Casei com 26 anos. Fomos então morar para os Castelos, que pertence à freguesia de S. Sebastião da Giesteira. Trabalhava ali pelas redondezas, fazendo de tudo o que me ia aparecendo e a minha mulher, igualmente filha de ganadeiro, também trabalhava no campo.”

 E vieram os filhos, como era de esperar:

“Exactamente. O primeiro, o José Filipe, apareceu quatro meses depois do casamento, o que o levava mais tarde, por graça, a dizer aos colegas de trabalho que o poupassem porque ele tinha nascido antes do tempo. Anos depois apareceu o segundo filho, o Francisco, que entretanto já me deram dois netos cada um.”
            
E mantiveram-se sempre ali pelos Castelos ?

“Não, ainda passámos por outros locais. Dali fomos para a Cravosa até chegarmos à Quinta de Dom Francisco, que era onde vivíamos antes de ingressarmos no Abrigo. Mas quero ainda dizer que o meu filho mais velho, que já está reformado, era Sargento da Marinha e vive em Cruz de Pau, mais propriamente nas Paivas. Quanto ao filho mais novo é, desde há alguns anos, vendedor da Nigel e era com ele que eu saía quase todas as semanas. Lembro-me, até, que na última vez que o acompanhei comemos um belo arroz de tamboril em Ponte de Sor. Isto pouco tempo antes de termos vindo para o Abrigo, em Maio de 2012.

Ainda que conhecesse as várias tarefas do mundo rural, diz-nos que tinha particular interesse pela carvoaria, tendo chegado a tirar um curso relacionado com a limpeza de árvores, a fim de poder desenvolver com mais conhecimentos aquela actividade.

“É verdade, sim senhor. Comecei até a encarar de outra forma a vida das plantas. Fiquei a saber, por exemplo, que a cor verde das folhas é devida à função clorofilina e que as plantas libertam oxigénio e absorvem o anidrido carbónico, pelo que são muito úteis para todos nós. A partir de então fiquei a olhar com mais respeito para as árvores.”

Mas o sr. Neto ainda quis falar, se bem que de um modo muito resumido, sobre a forma como se preparava uma carvoaria:

“No local escolhido para o efeito colocam-se primeiro as “repas”, que são as raízes das árvores. Sobre estas vai-se colocando a lenha mais miúda, com o cuidado de deixar as “goteiras”, que são praticamente túneis para o lume poder respirar. A envolver tudo aquilo ainda se coloca palha, que tem sobretudo a função de isolar a lenha da terra com que se cobre o monte. E por uma porta que se deixou aberta atiça-se então o fogo. De qualquer modo, há sempre que manter vigilância para se poder verificar se tudo está normal. Até se retirar o carvão, a combustão dura um mês ou mais, dependendo do tipo de lenha que se utilizou.”

Era, com certeza, um trabalho muito difícil e penoso.

“Nesses tempos era tudo feito à força de braços, desde o “terrar” os fornos até, mais tarde, se irem “desenlevar”, que significava tirar a terra e abrir os fornos, ainda o carvão estava em brasa. Este trabalho era muito custoso de suportar. Hoje, felizmente, já há máquinas para se fazer praticamente tudo isto.”

Tendo perdido a mulher há cerca de dois anos, o sr. Neto ficou mais sozinho. Como passa o tempo?

“Para além das horas em que sentimos mais a solidão, passo os dias na conversa com os meus colegas, assisto às actividades que aqui se vão fazendo, jogo às cartas e vou por vezes aos passeios organizados pela Instituição. E assim vou passando os dias. Até um dia.”

Foi um prazer falar consigo, sr. Neto.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

OS NOSSOS UTENTES

VITÓRIA MARIA LOPES SERRA


É uma das últimas “aquisições” do Centro de Dia.
Diz-se feliz pela opção que tomou e confessa que veio encontrar um ambiente acolhedor e, pelo menos por enquanto, só pode dizer bem de toda a equipa.
Apresentemo-la então:

“Chamo-me Vitória Maria Lopes Serra, completei 83 anos em Fevereiro passado e sou viúva há 9 anos de João Morraceira. Tenho uma filha – Mila – e dois netos – Mário e Daniela.”

Mas comecemos pelo princípio de tudo:

“Nasci em Lavre, onde vivi até aos 14 anos. Andei à escola mas não concluí a 4ª classe do ensino primário. Mas sei ler e quanto a escrever, lá me vou remediando. Aos 14 anos fui para Coruche como criada doméstica de uma filha do cavaleiro Simão da Veiga. Quando tinha 18 anos, um irmão da minha patroa, recém-casado e que viria a ser o pai do também cavaleiro tauromáquico Luís Miguel da Veiga, pediu à irmã que me dispensasse, a fim de ficar ao serviço da sua casa, aqui em Montemor. Porque me sentia bem, vim um pouco contrariada mas, passado pouco tempo, habituei-me e acabei por gostar também na nova família que, aliás, me tratou igualmente de uma maneira impecável. Aqui estive, de forma permanente, durante cinco anos, tendo visto nascer o Luís Miguel e os restantes irmãos.”

Por esta altura, já com 23 anos, certamente era chegado o momento de pensar em casamento.

“Isso mesmo. Eu já conhecia o João, que estava empregado na casa Mouzinho. E foi exactamente com essa idade de 23 anos que nos casámos, pelo que a partir da

í continuei a ir trabalhar a casa do sr. Luís Fernando da Veiga mas apenas dois dias por semana.”

O casamento originou, como é natural, alteração de morada…

“Quando nos casámos fomos residir para uma casa perto do que é hoje o Hospital de S. João de Deus. Ficámos aqui algum tempo e pouco depois fomos morar para a Rua da Estação, onde ainda hoje tenho casa.”

A nova situação alterou também os seus horários de trabalho…

“Sim. Já não podia estar permanentemente ao serviço de qualquer família. Assim, depois de casada, e mesmo após enviuvar, continuei sempre a trabalhar “a dias” em várias casas e tenho a honra de poder dizer que fiquei amiga de todas essas pessoas, porque em todo o lado fui bem tratada.”

Mas para além disso, e dada a sua reconhecida competência para a cozinha e dedo especial para os doces, ainda era frequentemente chamada para outras situações…

“É verdade. Eu nem sei quantos casamentos, baptizados e outras festas eu fiz ao longo da minha vida. Só tenho gratas recordações.”

Sempre muito ligada a Lavre, por laços familiares e sentimentais, a D. Vitória recorda:

“Tenho realmente por Lavre um carinho muito especial, porque passei lá a minha infância, porque deixei muitas amizades e porque tinha ali a minha família. Recordo o meu tio João Domingos Serra, trabalhador agrícola, cuja figura inspirou uma das personagens que José Saramago criou em “Levantado do Chão”. Também a minha madrinha e grande mulher chamada Maria Saraiva, que nos tempos difíceis matou a fome a tanta gente, ficou imortalizada naquele mesmo livro como “Maria Graniza”.

E desfiando o rosário de recordações, evoca então uma das passagens mais dramáticas por que passou:

“Quando tinha pouco mais de dois anos, morávamos então num monte nos arredores de Lavre, a minha mãe abandonou o lar, levando consigo apenas o meu irmão que teria um ano. Quando vi que a minha mãe ia a sair, sem ter, evidentemente, a noção de que se tratava de um abandono, tentei ir atrás dela pela estrada que liga Lavre a Vendas Novas. Fui andando num grande pranto até que, em determinada altura fui vencida pelo cansaço e por ali fiquei à beira da estrada, nas proximidades do Polígono, até ser encontrada por militares que andavam em exercícios e me transportaram para o quartel em Vendas Novas. Como não poderia ficar ali, o comandante levou-me para sua casa, até ser encontrada uma solução. O meu pai, já tendo dado pela minha falta e muito aflito, teve conhecimento de que uma criança tinha sido achada e levada para o quartel. Foi lá imediatamente e dali foi encaminhado para a casa do comandante. Confirmada a paternidade, lá me levou de regresso a casa.
Curiosamente, o meu pai nunca me contou nada disto. Só muitos anos mais tarde é que, por mero acaso, vim a saber de todos estes pormenores por intermédio de uma senhora que à época era nossa vizinha e me revelou o que acabo de relatar.”

Parece, na verdade, um episódio de novela. Mas, se bem que com uma vida bem preenchida, a D. Vitória também passou por maus bocados no que à saúde diz respeito:

“O pior de tudo foi um grave acidente de automóvel que sofri perto de Coruche e me atirou, primeiro para o hospital de Santarém, e depois para o hospital de Évora, num total de oito meses de internamento e vinte intervenções cirúrgicas.”

Mas como mulher de coragem que é, ultrapassou esses problemas e continuou a fazer pela vida. Hoje está no Centro de Dia do Abrigo. Por quê ?

“Vivia praticamente em casa da minha filha, onde estou completamente à vontade e era tratada como sempre fui, até porque tenho um genro que é tão bom como se fosse meu filho. Porém, como a minha filha trabalha como cozinheira e está praticamente todo o dia ausente, e eu não tenho temperamento para andar da casa desta para a casa daquela, passava os dias sozinha. Então, e porque desde há muitos anos que tinha esta intenção, resolvi inscrever-me no “Centro de Dia”. E aqui estou desde Julho. Sinto-me imensamente satisfeita. Para ocupar o meu tempo vou ao ginásio com frequência e ajudo a descascar batatas, a arranjar feijão-verde e noutras tarefas semelhantes. Agora, por exemplo, estou a fazer pegas para tachos e panelas a fim de serem vendidas, para a Feira da Luz, no pavilhão do Abrigo.”

Mais: por sugestão nossa, já foi ter com o maestro André para vir a fazer parte do coral “Cant’Abrigo”. Na próxima segunda-feira, às 10 horas, lá estará para o primeiro ensaio.

Um beijo, D. Vitória.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

OS NOSSOS UTENTES

LUÍS SEGISMUNDO SOVELAS

“Só fui verdadeiramente feliz enquanto vivi ao lado da minha mulher.” Foi com estas palavras que o nosso entrevistado deste mês iniciou a nossa conversa. Mas vamos conhecê-lo melhor:

“Nasci em Fevereiro de 1931 e tenho, portanto, 85 anos. Fui um dos seis filhos que os meus pais trouxeram ao mundo mas apenas quatro viveram ao mesmo tempo. Com 6 anos fomos morar para os Chões, no que é hoje o Largo Gulbenkian. Ali vivi até aos 28 anos, apenas com um pequeno interregno em que morámos na Ruinha”.

Considera que teve uma infância normal ?

“Normal terá sido se considerarmos o que eram esses tempos a vários níveis. Por exemplo: andei na escola primária e conclui a 3ª classe. Ainda frequentei a quarta mas o meu pai retirou-me porque eu tinha um irmão mais velho que era muito estudioso e, com 13 anos, faleceu com uma meningite. Os meus pais associaram a doença ao estudo e, então, retiraram-me da escola.”

Sem escola, cedo começou a trabalhar …

“Pois, com certeza. Logo aos 12 anos comecei como servente de pedreiro e, aos 17, já exercia a actividade como oficial, que continuei até me reformar. Mas enquanto fui solteiro, e especialmente quando era mais novinho, a nossa vida não foi fácil. Havia muita falta de trabalho, os rendimentos resultantes do nosso labor eram poucos e incertos e as dificuldades resultantes dessa situação eram constantes. Tínhamos de recorrer com frequência à boa vontade de alguns comerciantes, que nos iam fiando os produtos alimentares. Foi um tempo desesperante. A minha mãe, coitada, levava o tempo a contar os tostões para ver se chegavam para a comida do dia-a-dia, o que raramente acontecia. E como se não bastasse, a situação ainda se agravava mais porque um meu irmão adoeceu com gravidade e os remédios eram caros. Infelizmente acabou por falecer. Entretanto, éramos nós, os mais novos, que íamos às lojas pedir fiado, o que nos colocava numa situação tremendamente desagradável. Foi um período que me marcou para sempre. Normalmente era às mercearias dos Srs. Henrique Pinto de Sá e Albino Ferreira (Albino da Luz), ali na Rua de Avis, que nós recorríamos. Mas foi a minha tia Constança Sovelas Pereira (que ficou conhecida como a Viúva do Germano) quem mais nos ajudou. Cheguei a estar lá em casa, a comer e a dormir, durante uns meses.”

Mas esse período menos bom foi ultrapassado…

“Sim, mas deixou marcas. Quando tinha 28 anos resolvi mudar de vida e juntei-me com a minha mulher. Isto em Julho de há 57 anos, tendo sido celebrado o casamento em Outubro. Ainda estivemos uns meses numa casa perto da Rua de Avis mas em Janeiro seguinte fomos então residir no Rossio, onde ainda hoje moro. Esta casa pertencia à minha sogra – Cristina Serôdio – que era filha de Generosa Serôdio, que ali mantinha o negócio de taberna, iniciado pelo marido, e que possuía também, num anexo, uma estalagem, que alugava essencialmente a carreiros e a louceiros, para além de uma cocheira onde eram recolhidos os animais. O edifício era de chão de terra e de telha vã e, como eu era pedreiro e a minha sogra entretanto havia terminado o negócio, fui fazendo obras no prédio até chegar ao que é hoje.”

A sua vida, portanto, conheceu uma enorme transformação.

“Sim, e sem dúvida para melhor. Todo aquele drama que tinha vivido, e todas as dificuldades por que passei, deixaram uma marca tão profunda que, quando casei, prometi a mim mesmo que haveria de lutar com todas as minhas forças para nunca mais reviver tais dificuldades. Aliás, a minha vida começou logo a mudar. Primeiro porque, já com trinta anos, conclui o exame da 4ª classe, após o que fui convidado para ir para as Caldas da Rainha trabalhar na construção de uma nova escola. Mas não aceitei porque, entretanto, a minha situação já tinha melhorado, graças à preciosa ajuda da minha mulher – Cecília Maria Serôdio Trindade, minha adorada companheira de sempre e que me deu dois filhos: o António Joaquim, que tem 56 anos, e a Cecília que tem presentemente 49. Vivi 55 anos de um casamento feliz e tranquilo. Foi o melhor período da minha vida. Infelizmente a doença bateu à porta da minha mulher e essa felicidade foi completamente interrompida quando, há dois anos, fiquei sem a sua abençoada companhia. Foi um rude golpe do qual jamais irei recuperar.”

Mas tem de continuar a sua luta para ultrapassar mais esta dificuldade, certamente a mais dolorosa de todas.

“Pois, eu bem tento, mas tem sido muito difícil. Estou aqui no “Centro de Dia” há pouco mais de um mês, mas o regresso a casa, ao final de cada dia, é sempre penosa, sabendo o vazio que me espera.”

O Amigo Luís deu mostras, ao longo da vida, que é um homem de carácter e moralmente forte. Vença mais este desafio.


            

segunda-feira, 27 de junho de 2016

OS NOSSOS UTENTES

PALMIRA DA LUZ PARREIRA

 

Dia 23 de Junho, véspera de S. João.
O nosso amigo André, que estava de partida para o Porto, para mais uma actuação, nas festas da cidade, com os seus colegas dos “Peña Kalimotxo”, sugerira, para nossa entrevistada do mês, uma Senhora que eu próprio já conhecia por termos sido vizinhos, há muitos anos, na rua dos Almocreves.
Nem chegaram, portanto, a ser necessárias as apresentações. E a conversa que se seguiu, dada a excelente memória e discurso fácil da D. Palmira, foi apenas a de recolher os principais acontecimentos da sua história de vida.

“Completei em Janeiro 91 anos de idade. Sou viúva há 17 anos de Manuel Maria (Mira Serrano) e tenho 1 filho – Cláudio – mas estou deveras arrependida de não termos tido mais. Nasci na Rua de D. Vasco. Éramos três irmãos, dos quais um rapaz e outra rapariga já faleceram. Quando tinha três anos fiquei sem a minha mãe e, nessa altura, fui para casa de umas tias.”

E foi aí que continuou o seu crescimento ?

“Não. Quando fiz 5 anos meteram-me no Asilo de Infância Desvalida. Era então directora uma senhora que tratávamos por D. Maria se bem que, na verdade, eram duas das asiladas mais velhas, a Carolina e a Guiomar, que, tendo já idade para saírem, mas não tendo familiares nem alguém que as acolhesse, ficaram no Asilo a desempenhar as funções de monitoras. Estive nesta Instituição, de que era presidente o Padre Cartaxo, até aos 12 anos, idade em que as minhas tias aconselharam o meu pai a retirar-me de lá. E ele assim fez, tendo eu ido viver com o meu pai que, já viúvo, voltara a casar, e com a minha madrasta – Maria da Conceição – residentes na Rua dos Almocreves.”

Foi uma nova fase da sua vida …

“Com certeza. O meu pai tinha uma carroça e uma mula com as quais fazia fretes, transportando lenhas e outros produtos para quem solicitava os seus serviços. Mas, como se compreende, a vida não era fácil em termos económicos. Então, vi-me desde logo envolvida nos trabalhos agrícolas, tais como ceifa, monda ou apanha de azeitona. Também servi em casas particulares de famílias abastadas de Montemor. Curiosamente, foi na casa do sr. Herculano de Oliveira, que tinha uma barbearia na rua 5 de Outubro, que eu servi pela última vez e que acabou por ser o meu padrinho de casamento. E assim iam decorrendo os anos. Em determinada altura, e porque o ser criada de servir (hoje são empregadas domésticas) envolvia ter de dormir em casa dos patrões e nunca ter um horário, resolvi passar a ir trabalhar a dias, com horas de entrada e de saída.”.

E quando é que entra a fase do namoro ?

“Ainda eu estava em casa do sr. Salvador da Costa, era também lá empregado um rapaz chamado Manuel Maria e em determinada altura chegámos à conclusão de que gostávamos um do outro. Mas não foi namorar e casar logo. Tinha eu já 25 anos quando comecei a namorar o que viria a ser o meu marido. Ele tinha então 19 anos, pelo que nem sequer à tropa tinha ido. Depois de cumprido o serviço militar, e sem perspectivas de melhor emprego, fui eu pedir ao sr. Jerónimo Faria e à Esposa que tentassem, junto dos seus conhecimentos, que ele fosse admitido na Polícia, porque ali teria um futuro mais estável. E a verdade é que esse desejo se concretizou mesmo.”

E então foi casar logo …

“Ainda não. Namorámos durante dez anos e tinha eu 35 anos e o noivo 29 quando, enfim, demos o nó. Casados, fomos morar para o Beco de S. Francisco, para casa dos avós dele. Dali fomos para Évora, onde o meu marido estava colocado. Já o meu filho Cláudio tinha nascido havia pouco tempo. Passados quatro anos, o meu marido pediu para ir fazer uma comissão a Angola enquanto polícia. E fomos. Primeiro partiu ele com os colegas e, uma semana depois, fui eu com a criança. Estávamos em 1964 e o meu filho fez os 4 anos no barco. Chegámos no dia de Finados, 2 de Novembro”.

E como decorreu a sua estada em Angola ?

“Estivemos lá dez anos e as recordações não são das melhores. Trabalhei muito e muitas vezes doente. Como na casa onde vivia tinha um quarto disponível, arrendava-o a membros da polícia ou da tropa. Chegaram a estar lá três ao mesmo tempo, utilizando apenas aquele quarto. Mas era na nossa casa que eles, para além de dormirem, também comiam do que eu lhes cozinhava. Mais: tratava-lhes da roupa e, como se não bastasse, ainda arranjava a roupa de mais dezasseis militares ou polícias. Isto, claro, para além de cuidar do meu marido e do meu filho. Foi uma vida de muito trabalho e sacrifício. E só mais um pormenor que atesta bem o quanto foi importante e laboriosa a minha labuta: em Angola, o meu marido nunca recebeu directamente o seu vencimento. Era o seu pai que o levantava aqui no continente e se encarregava de o ir depositar na Caixa Geral de Depósitos. Foi assim que, durante os dez anos que permanecemos em África, vivemos apenas com o dinheiro que eu ganhava lavando roupa e cozinhando para cerca de vinte militares e polícias.”

Na verdade, não teve uma vida descansada.

“Mas, ao mesmo tempo que tudo isso, ainda tive de suportar as doenças que me afligiram, particularmente o paludismo. E, como se não fosse suficiente, também fui lá operada a um peito quando tinha pouco mais de 40 anos. Mesmo assim, nestas condições, continuava a tratar daquela gente toda.”

Entretanto passaram-se dez anos …

“Em 1975 regressámos a Montemor e fomos para a casa da minha sogra, mas o meu marido comprou uma morada na Rua de Avis, onde fizemos obras e onde eu ainda hoje resido. Mas voltando a esse tempo, o meu marido voltou ao serviço em Évora mas de imediato pediu para ser transferido para Montemor. Ainda aqui esteve algum tempo, mas como sofria de gota e já tinha ultrapassado o tempo de serviço, passou à reforma.”

E a vossa vida, enfim, estabilizou.

“Sim. Tivemos finalmente uma vida mais tranquila. O meu filho entretanto concluiu o que é hoje o 12º ano e fez um curso profissional de electricista, o que lhe permitiu ingressar na EDP, onde ainda hoje se encontra. Infelizmente, o curso normal da nossa vida acabou com o falecimento do meu marido.”

E a situação voltou a alterar-se

“Foi um rude golpe, que ainda hoje me afecta diariamente. Passei a morar sozinha, porque o meu filho já constituíra família e tinha o seu próprio lar . Comecei então a ser abrangida pelo “Centro de Dia” do Abrigo, onde primeiramente estive cerca de um ano. Num Domingo dei uma queda na minha própria casa, feri-me na cara e fracturei uma perna. Fui logo nesse dia transportada para o hospital de Évora mas só fui operada na sexta-feira seguinte. Uns quatro dias depois, ainda bastante combalida, passaram-me a alta. Como não podia ficar sozinha, o meu filho colocou-me no Lar da Quinta da Ponte. Entretanto, ele teve conhecimento de que em Estremoz havia uma clínica da Cruz Vermelha onde poderia ser ajudada na recuperação. Estive lá durante quatro meses. Passado esse tempo, o Abrigo aceitou o meu regresso e desde Março do ano passado que aqui estou de novo.”

E como tem evoluído a sua recuperação ?

“Aqui dentro ainda me desloco com o auxílio de um andarilho, mas tenho vindo a recuperar, sobretudo porque frequento todos dos dias o ginásio desta Instituição, o que acho que me tem ajudado bastante.”

Foi um prazer conversar consigo, D. Palmira. Quem diria que depois de a ter conhecido quando eu era uma criança, nos viríamos a encontrar passados tantos anos. Que tenha as melhoras que deseja.



quarta-feira, 25 de maio de 2016

OS NOSSOS UTENTES

ALFREDO JOSÉ RAFAEL PEREIRA DA SILVA


Tem 94 anos e uma excelente memória. Está no Abrigo, como residente, há perto de um ano e enviuvou há três anos de Lourença Custódia Vieira, sua companheira de sempre.

“Nasci no Monte Novo das Fazendas. Éramos oito irmãos, dos quais agora somos só dois, sendo eu o mais velho. Ainda muito novinho viemos morar para a rua do Matadouro e depois para a Rua de Aviz. Como éramos muitos a comer e apenas um a ganhar, fui guardar porcos com apenas sete anos.”

Então e a escola? Mesmo morando cá na vila não foi aprender a ler e a escrever?

“Como já disse, a vida era muito difícil e todos os tostões faziam jeito. Comecei a trabalhar no Monte do Reguinguete, colado à Caravela, e o meu patrão era o sr. José Antas (pai). Porque o local de trabalho ficava longe e não tinha qualquer meio de transporte, nem todas as semanas vinha a casa. Ficava lá a dormir numa tarimba e a comida era fornecida pelo patrão e cozinhado pela manteeira para todos os trabalhadores. Estive nesta situação meia dúzia de anos.”

Então nunca chegou a aprender a ler ?

“Aprendi. Teria eu uns quinze ou dezasseis anos, e portanto já sem idade para entrar para a escola primária oficial, comecei a ir a casa de uma professora reformada, que morava na Rua de Aviz, e, pagando, lá fiz a 3ª classe.”

E o que aconteceu depois de concluídos os estudos ?

“Como não podia deixar de ser, voltei aos trabalhos agrícolas. Entretanto, chegou a altura de ir “às sortes”, isto é, à inspecção militar. Fiquei apurado e mandaram-me assentar praça em Lanceiros 1, em Elvas.”.

E depois de cumpridas as obrigações patrióticas …

“Regressei ao mundo rural. Porém, já por volta dos meus trinta anos, comecei a dar serventia de pedreiro tendo como patrão o empreiteiro sr. Luís Torres, mais conhecido por Luís da Volta. E até me reformar estive sempre mais ou menos ligado a esta arte da construção civil.”

Não conheceu, portanto outras actividades?

“Conheci. Como ainda hoje acontece, havia alturas em que o trabalho escasseava. Então tinha de recorrer a tudo o que ia aparecendo, inclusivamente a vender cântaros de água. Por conta do sr. Adolfo Velhinha, percorria a vila com uma carroça preparada para transportar vários cântaros e ia avisando a freguesia da minha chegada com uma campainha que agitava.”

Recordo-me dessa, ou de outra carroça idêntica, cujo condutor de vez em quando batia com uma varinha nos cântaros para saber, pelo som produzido, os que estavam cheios e os que já se encontravam vazios…

“É verdade. Mas, já agora, quero contar-lhe um episódio que me aconteceu enquanto aguadeiro e que viria a mudar completamente o rumo da minha vida. Um dos meus clientes era o sr. Júlio Guerra Pereira, cuja casa fazia esquina da rua 1º de Maio com a rua dos Almocreves. Era lá empregada doméstica, ou criada, como na altura se dizia, uma rapariga que se chamava Lourença e que um dia, por brincadeira, mas certamente já com o propósito de meter conversa comigo, escondeu-me uma das rolhas de cortiça com que os cântaros eram tapados. Eu não dei por isso e ela ia mangando comigo, mas só para ter pretexto de conversa. Rindo, gostava de me dizer que eu andava à cata da rolha. E o estratagema resultou, porque começámos a namorar e passados poucos meses já estávamos juntos. Só mais tarde casámos oficialmente.”

Digamos que foi praticamente “tiro e queda” …

“É verdade. E foi um passo importante que dei na minha vida. Demo-nos sempre bem durante os mais de sessenta anos em que vivemos juntos. E ainda conhecemos a felicidade de ter dois filhos – o Júlio e a Palmira.”

E, entretanto, foi conhecendo novas residências:

“Quando casámos fomos morar para o Monte do Lameirão, depois para um monte perto da Maia, para a Travessa da Hora das Bacias e, finalmente, para o Bairro Dr. Cunhal. Com o falecimento da minha esposa e com o meu estado de saúde a degradar-se, de tal forma que me obriga a estar confinado a uma cadeira de rodas, era inevitável uma solução. E a entrada para o Abrigo foi a melhor forma de resolver o meu problema.

Obrigado, sr. Alfredo. Foi um gosto conversar com o meu Amigo.