sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

OS NOSSOS UTENTES

CAPITOLINA MARIA  (PITEIRA)


Vamos encerrar as entrevistas deste ano com uma Senhora cuja família é bem conhecida de todos nós.

Nasceu em S. Cristóvão há 93 anos, mais propriamente no dia 9 de Outubro de 1922. É a mais velha de três irmãos (2 rapazes e ela própria) e começou bem cedo a conhecer as agruras da vida: 

“O meu pai era carvoeiro e vinha numa carrocinha com um burro trazer o carvão a Montemor. Dentro do que a minha idade permitia, lá o ia ajudando em diversas tarefas, reunindo lenha ou toros com que se alimentavam os fornos da carvoaria. É claro que quanto a escola nem pensar nisso. E foi assim que decorreu a  minha vida até aos 11 anos, idade que tinha quando a minha mãe faleceu. Os meus irmãos tinham, então, 9 e 6 anos.”

Se a vida não tinha sido fácil, percebe-se que a partir daí tudo se agravou:

“Este triste acontecimento foi um rude golpe para todos nós. Como já disse, tinha onze anos e foi precisamente com esta idade que vim trabalhar para casa do Sr. Francisco Simões Carneiro, que era 2º comandante dos Bombeiros e morava na Rua 5 de Outubro, ou Rua Nova, como era mais conhecida. Desde criança que sentia um certo entusiasmo com a cozinha. E foi nesta casa que aprendi e fui desenvolvendo os meus conhecimentos nesta arte. Com catorze anos fui servir para casa da D. Celeste Falcão, mãe de Guilhermina Marques. A senhora morava ali na esquina da Ruinha com a Rua do Calvário, junto ao Jardim Público. Recordo que depois da senhora falecer, esta casa foi abandonada e esteve em ruínas durante muito tempo, só conhecendo a sua reabilitação há relativamente poucos anos.”

E por quanto tempo por lá se manteve?

“Estive ali até aos 21 anos, idade com que me casei, depois de ter namorado cerca de 3 meses.”

Estranhámos e perguntámos se apenas com três meses de namoro ficou logo com a certeza de que iria dar o passo certo. E a resposta veio pronta:

“Aquele que viria a ser o meu marido – Joaquim Francisco Piteira - trabalhava como carpinteiro de carros (carroças) na oficina do Sr. Serra, conhecido por “Segeiro”. Então, dada a proximidade entre o seu local de trabalho e a casa onde eu servia, o conhecimento aconteceu naturalmente. O meu pai entretanto já tinha falecido há quatro anos atrás, eu vi-me sozinha e decidi que era altura de encaminhar a minha vida. Nunca tinha namorado e ninguém tinha qualquer coisa a apontar-me. E logo que conheci aquele rapaz fiquei com a certeza de que era a pessoa certa e, felizmente, não me enganei. A minha sogra morava na Ruinha e, como depois vim a saber, estava sempre a perguntar ao filho quando é que ele me levava. Então, um dia aconteceu. Fugimos, mas não foi para muito longe porque ao lado da minha sogra havia uma outra casa e foi lá que nos instalámos. Pouco tempo depois regularizámos oficialmente a nossa união, numa cerimónia celebrada na Igreja do Calvário pelo Padre Cerca. Foi naquela casa que nasceu o nosso primeiro filho.”




A prova mais evidente de que a D. Capitolina acertou na escolha do seu marido e de que estiveram sempre muito ligados afectuosamente, está no facto de terem tido 7 filhos (5 raparigas e dois rapazes) felizmente ainda todos vivos…”

“É verdade. Graças a Deus. E a sucessão está garantida, porque tenho 16 netos, os bisnetos já são 11 e com um outro a caminho.”

Mas vamos lá a retomar o seu percurso de vida.

“Como já disse, naquela casa da Ruinha nasceu o meu primeiro filho. Entretanto, as carroças começaram a desaparecer, sendo aos poucos substituídas por carros, carrinhas e camionetas. E a oficina do sr. Serra começou a sentir essa mudança, traduzida em menos trabalho. Daí que, em determinada altura, o meu marido foi convidado a ingressar na firma José Joaquim Cornacho & Filhos, onde acabou por ficar durante mais de quarenta anos. E ali, desde reparações de maquinaria agrícola, serviços de carpinteiro, forjador e ferramenteiro fez praticamente de tudo. Quando entrou para a firma fomos morar para o chamado “Monte dos Cornachos” e posteriormente para uma casa junto à oficina.”

Foi um bom período da sua vida…

“Exactamente. Sobretudo até o meu marido falecer, tinha eu 66 anos. Nessa altura fui morar para o Bairro de N. Sra. da Visitação, onde residi mais de 20 anos.”

Está no Abrigo, na vertente “Centro de Dia”. E à noite ?

“À noite e durante os fins de semana vou, alternadamente, para casa de cada uma das minhas filhas.”

Já nos disse que nunca andou à escola enquanto criança. E depois de adulta ?

“Há uns anos, já então era viúva, andei ali no Convento de S. Domingos, mas por motivos de doença tive de desistir. Ainda aprendi uns rudimentos, mas com o passar do tempo fui-me esquecendo.

E aqui no Abrigo desenvolve alguma actividade ?

“Aproveito os passeios que o Abrigo organiza, e já fui a vários lados, nomeadamente a Fátima e Vila Viçosa. Também aqui em Montemor, e para além das minhas voltas pelo espaço exterior, participo igualmente nas visitas que fazemos regularmente a vários locais.”

Mas a D. Capitolina sabe que existe aqui um grupo de teatro e um grupo coral. Nunca esteve tentada a experimentar ?

“Olhe, ainda ontem (dia 15 de Dezembro) assisti à Festa de Natal, feita pelos utentes do Abrigo, e gostei de ver. Aliás, devo confessar que já pensei ir para o grupo coral, mas depois acabo por desistir da ideia.”

Porque ficámos convencidos de que a concretização deste desejo é só uma questão de tempo e de um empurrãozinho, fomos com a D. Capitolina junto do maestro André Banha dar-lhe conhecimento de que estava ali uma possível futura coralista. Ficou logo combinado que iria comparecer na segunda-feira seguinte para o seu primeiro ensaio.

Para terminar, a nossa entrevistada ainda quis acrescentar o seguinte:

“Olhando para o que foi a minha vida, reconheço que, a par das contrariedades e desgostos que sempre acontecem, sobretudo quando desaparecem os entes queridos, tive uma vida feliz. Fui bafejada pela sorte com o marido que escolhi e com os filhos e filhas que tenho e que ainda hoje são os meus melhores amigos.”


Resta-nos desejar à D. Capitolina, a todos os Utentes, Funcionários, Colaboradores, membros dos Órgãos Sociais, e respectivas Famílias, um BOM NATAL e um NOVO ANO sobretudo com muita saúde!


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

HOUVE FESTA DE NATAL NO ABRIGO




“Fechemos os olhos. Assim será mais fácil para todos viajarmos 30 anos para trás e chegarmos ao ano de 1985. Exactamente. Mil novecentos e oitenta e cinco. Imaginem-se todos então com menos 30 anos….”

Foram estas as primeiras palavras que deram o mote ao que se seguiria: a evocação do Montemor daquele tempo, com os seus conhecidos estabelecimentos comerciais e de restauração, com as figuras carismáticas da época e as actividades lúdicas e desportivas que animavam a então ainda vila de Montemor.

E recordando a azáfama que, tal como hoje, se fazia sentir por alturas do Natal, foram desfilando perante a assistência, que enchia completamente o salão, os componentes do grupo cénico do Abrigo, que desempenharam com talento e desenvoltura os papéis que lhes foram distribuídos.

A par de diversas cenas com que os vários actores e actrizes iam evocando o quotidiano da vila, esteve o Leopoldo Gomes a interpretar um locutor que, sozinho, na noite de Natal, estaria de serviço aos microfones da velhinha Rádio Almansor.

E eram então muitos os ouvintes, com a telefonia junto a si, que escutavam o programa dessa noite especial, ligando a pedir temas que dedicavam a familiares ou amigos. E foi assim que escutámos “Gotinha de Água”, “Apita o comboio”, “Pera Verde”, “Romã”, “Danúbio Azul” (que uns quantos pares logo aproveitaram para valsar), “Ceifeira” e várias canções alusivas ao Natal, que o Grupo Coral Cant’Abrigo, composto, como se sabe, por utentes desta Instituição, tão bem interpretou justificando por isso a recolha de fartos aplausos.


José Manuel Brejo e Maria do Céu Mestrinho conduziram o espectáculo como bem sabem, enquanto o maestro André Banha dirigiu os seus coralistas.

Para além dos nomes já citados, interpretaram os textos os(as) seguintes utentes: Albina, Angelina, Salvador, Basilissa, Joaquim da Cabrela, António Lopes, Narcisa, Mariana, Deonilde e as suas “crianças” Maria Elisa e Vina.

No final foram distribuídas as habituais prendas e servido um farto lanche.

Até para o ano e um BOM NATAL para todos!

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

OS NOSSOS UTENTES

 MANUEL JOÃO CIGARRO

O nosso entrevistado deste mês começou por surpreender-nos logo no início da conversa que tivemos no dia 23 de Novembro. Quando lhe perguntámos a idade, a sua resposta veio pronta e completa : “Ainda que os documentos oficiais registem uma data posterior, a verdade é que nasci no dia 2 de Julho de 1922, pelo que tenho 93 anos, 4 meses e 21 dias.”


E a partir daqui foi um desfiar de recordações, numa manifestação da excelente memória que possui.

“Nasci na Rua de Santo António nº 14. Quando tinha nove anos, por dificuldades financeiras inclusivamente para se pagar a renda da casa, a minha mãe, eu e os meus outros três irmãos - José Lourenço, Filipe e Maria Jacinta - começámos a ir dormir na casa dos Repolhos, família que tinha uma mercearia na Rua Direita e que nos acolheu. Apenas o meu pai nunca lá dormiu porque a sua actividade como guardador de gado o obrigava a ficar nos locais onde trabalhava.”

E mesmo residindo na então vila, não freque

ntava a Escola ?

“Como era habitual, quando fiz sete anos fui para a Escola, na Rua de Aviz, mas só lá andei pouco mais de três meses”

Mas abandonou porquê ?

“A minha professora era muita áspera e tinha uma mania que me desagradava. Eu explico: quando ela fazia uma qualquer pergunta a um aluno, se este não soubesse a resposta, perguntava a outro. Se este último respondesse acertadamente, mandava-o dar umas reguadas no primeiro. Um dia perguntou qualquer coisa a uma miúda que não sabia a resposta e depois interrogou-me a mim. Como eu respondesse certo, deu-me ordem para que desse meia dúzia de reguadas na colega. Ora eu recusei-me bater na miúda, o que me valeu apanhar com a régua na cara. Não gostei, atirei-lhe com um tinteiro acima e fugi.. A minha mãe quando teve conhecimento ainda tentou levar-me mas eu, mal chegava às proximidades da escola, fugia a sete pés.”

Então não sabe ler nem escrever ?

“Acabei por aprender alguma coisa e fazer exame já em adulto.”

E, então, como passou a ser a sua vida?

“Limitei-me a ir fazendo uns recados aqui e além, e a brincar, como era próprio da idade. Logo de seguida pôs-me a aprender a sapateiro na oficina do Sr. Vicente Valentim, na esquina para a rua dos Marmelos. Não cheguei a aprender grande coisa porque entretanto saiu-lhe a sorte grande, ele começou a vender jogo e praticamente deixou o ofício.”

Acabou aí a  hipótese de vir a ser um futuro sapateiro?

“De seguida fui para continuar a aprendizagem na oficina do Sr. Serafim Caldeira, ali na Rua das Pedras Negras, onde tinha também uma mercearia. Ao fim e ao cabo pouco aprendi do ofício, porque o patrão punha-me quase exclusivamente a fazer recados. E quando sobrava leite, que era vendido avulso, mandava-me percorrer a então vila com um cântaro de zinco e umas medidas, apregoando e vendendo porta-a-porta o que tinha sobrado.”

E o tempo foi avançando…

A partir de certa altura fomos morar para uma casa, arrendada, perto da residência do Dr. Angelino Ferreira. Era apenas uma divisão. O meu pai colocou ao meio um tabique com sacas caiadas. De um lado dormia a minha mãe e a minha irmã e no outro ficava eu com o meu irmão mais novo, porque o do meio já então acompanhava o meu pai como ajuda de gado ou noutras tarefas.
Aos catorze anos faleceu-me a minha mãe e pouco depois a minha irmã. Foram dois rudes golpes.
Comecei então a fazer recados para a casa do Dr. Angelino. Gostava muito de lá estar e fui sempre bem tratado. Para além dos recados, ia entretendo os meninos Angelino e António. Não ganhava ordenado. Era-nos diariamente dado um recipiente com comida que dava para mim e para o meu irmão mais novo. Pouco tempo depois de nascer a menina Cristina, foi comigo que ela deu os primeiros passos. Estávamos no quintal, coloquei-a de pé e incentivei-a a caminhar para mim. O que ela fez. Chamei de imediato a mãe, a D. Cristina, para ela ver a gracinha. A miúda repetiu a proeza e a mãe ficou tão contente que me mandou ir à do Sr. Costa, que era da sua família e tinha uma loja na Rua Nova, para eu escolher um fatinho. Já havia dois meses que eu andava com a mesma roupa, por não ter outra.
Mas chegou a altura da família Ferreira ir para a praia e eu fiquei sem emprego.

E então, como foi depois a sua vida ?

“Por essa altura, já teria os meus quinze anos, fomos forçados, eu e o meu irmão mais novo, a juntarmo-nos ao meu pai e ficarmos como ajudas de gado, enquanto o outro meu irmão passou para outros serviços no monte do lavrador. E até ir para a tropa trabalhei sempre no campo.”

Começou então uma nova fase da sua vida…

Assentei praça em Mafra e fui depois mobilizado para ir para os Açores, onde estive mais de nove meses.”

Cumprida essa obrigação, nova volta na sua vida:

“Em 1947, já com 25 anos, conheci a que haveria de ser, quatro anos mais tarde, a minha mulher até hoje. Era, e é, cinco anos mais nova do que eu e chama-se Rosa Maria Caldeira. Tivemos três filhos, felizmente todos vivos, dois rapazes e uma rapariga – José Maria, Joaquim Manuel e Maria Jacinta – que são muito nossos amigos.
Depois de casados morámos primeiro no moinho do Bombico, junto à Ponte de Lisboa. Não estávamos sozinhos porque tivemos sempre a companhia de uma grande quantidade de ratos, que de noite até se passeavam por cima da cama. Estivemos lá pouco mais de um ano. Daí passámos para uma casa junto à dos meus sogros, na Ermida da Sra. da Visitação. Daí a dois ou três anos mudámos para a Fazenda dos Carpinteiros, ali às abas do Cabeço de Santo André. Sucessivamente, passámos ainda pela Courela da Estrada, pela Rosenta e, finalmente, para a Rua dos Almocreves, numa casita que comprámos.”

Como se vê, o nosso Amigo Cigarro não teve uma vida fácil. Longe disso. Mas o seu maior pesar surgiu-lhe há cerca de três meses:

“Há uns anos comecei a ter problemas de visão. Primeiro fui operado em Lisboa à vista direita. Ao princípio comecei a ver melhor mas a partir de certa altura fui piorando até a perder completamente. Da vista esquerda, e com medo de que me acontecesse o mesmo, não quis ser operado. Mas há três meses deixei de ver. O mundo apagou-se completamente para mim. É uma tristeza enorme. Corri muitos médicos mas todos me diziam que não havia nada a fazer e que foi a diabetes que me cegou.

E como se tudo isto não fosse já mais do que suficiente …

“A minha mulher, que também é diabética, tem igualmente muitas dificuldades para ver. Já foi operada aos dois olhos e, por enquanto, ainda me vai ajudando no que pode. Mas tem outros problemas de saúde que também nos preocupam. Depois de uma vida de grandes sacrifícios estamos perante este quadro.”

Compreendemos o estado de alma do Sr. Cigarro, que merecia gozar agora de uma vida tranquila e feliz junto da sua companheira de sempre.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

OS NOSSOS UTENTES

ISABEL MARIA CUSTÓDIA

A história da nossa entrevistada deste mês podia condensar-se praticamente em três palavras: trabalho, trabalho, trabalho.

Nascida há 91 anos no Monte do Olheiro, foi registada em S. Cristóvão e baptizada na Igreja de S. Romão.

“Deve estranhar que eu tenha três nomes próprios, mas isso resulta de um equívoco de quem me registou. Naquele tempo não havia tanto cuidado, nem as pessoas encarregadas dos assentamentos, pelo menos algumas delas, se preocupavam com pormenores. Foi a minha mãe – Custódia de Jesus Carvalhinho - quem se encarregou de me ir registar. Eu não sei exactamente como as coisas se passaram, mas a verdade é que, e segundo o que julgo saber, quando lhe perguntaram o nome, o funcionário confundiu-se e colocou como meu apelido o primeiro nome da minha mãe. Coisas que se faziam antigamente.”

E depois do Monte do Olheiro ?

“Teria cerca de três anos quando nos mudámos para a herdade de “João Pais”. Por essa altura já éramos 10 irmãos, dos doze filhos que a minha mãe teve. Eu fui a penúltima a nascer. Daí passámos para o Moinho do Borrazeiro, ali para os lados da Rata, onde estive até aos catorze anos.”

Mas entretanto já tinha frequentado a escola…

“Qual escola, qual quê. Nem pensar nisso. Primeiro porque, quando morava em “João Pais”, a escola ficava longe; depois, porque a necessidade era muita em família tão numerosa e obrigava a que todos começassem a trabalhar desde tenra idade.”

E que tipo de trabalhos fazia então com essa idade ?

“Comecei por ajudar nas tarefas domésticas e depois nos trabalhos agrícolas. Fiz os meus onze anos a vindimar numa herdade na zona do Cortiço. Não havia transportes e, portanto, deslocávamo-nos a pé.

E a partir daí …

“Nunca mais parei. Ceifar trigo e cevada, sachar milho, mondar, sargaçar, desmoitar com enxada, apanhar azeitona, eu sei lá. Fiz todos os trabalhos do campo. E só deixei esta labuta quando tinha 75 anos.  Exactamente no dia em que completei esta idade, andava a apanhar tomate ao pé da Barragem dos Luzes, ganhando um tanto por cada caixa. Normalmente conseguia reunir diariamente à volta das oitenta caixas, mas naquele dia, como fazia 75 anos, quando atingi este número parei, como se fosse uma prenda simbólica que dava a mim mesma.”

Voltemos, entretanto, uns anos atrás:

“Pelos meus dezassete anos, morava eu no Reguengo e andava a apanhar azeitona na Quinta do Sobralinho, conheci aquele que haveria de ser, e felizmente ainda é, o meu marido, Lourenço António Chucha, actualmente com 98 anos. Primeiro fomos morar para a casa dos meus sogros, no Monte do Mal Enforcadinho. Poucos meses depois fixámos residência no Monte de Sancha Cabeça, onde tive os meus quatro filhos, dos quais três (2 raparigas e 1 rapaz) ainda são vivos, graças a Deus. São três jóias de pessoas, melhores para nós não podiam ser.”


A D. Isabel fez questão de nos salientar ainda outros pormenores da sua vida:

“Quando morávamos em Sancha Cabeça, chegámos a ir trabalhar, a pé, para o Monte da Alagoa, que ficava bastante distante. Nessa altura já tinha dois filhos e íamos todos para o local de trabalho. O meu marido levava o mais velho às cavalitas e a menina, que era a mais pequena, ia ao meu colo. Quando chegávamos, o miúdo andava por ali e a miúda era colocada num caixote, onde o meu marido colocou quatro rodas e um cordel, para a deslocarmos conforme íamos avançando no trabalho.”

E sem saudade daqueles tempos de sacrifício, ainda recordou:

“Veja a que horas, e naquelas condições, tínhamos de sair de casa para estarmos a iniciar o trabalho quando o sol nascia. Apenas na apanha da azeitona enregávamos com uma hora de sol. Abalávamos de casa ainda de noite e quando regressávamos já era noite cerrada. E ainda tinha de ir lavar a roupa e arranjar as nossas coisas. A nossa vida foi uma luta constante.”

Finalmente…

“Depois de Sancha Cabeça fomos finalmente para a Fazenda da Ribeira, junto ao Porto das Lãs. Os anos foram passando, as maleitas foram surgindo e chegou a altura de pedirmos auxílio ao Abrigo dos Velhos Trabalhadores. Primeiro beneficiámos do “Apoio Domiciliário” e, desde há 5 meses, tanto eu como o meu marido estamos aqui como residentes. E sentimo-nos bem. Somos bem tratados e não temos razões para nos queixarmos de quem quer que seja. Nós também fazemos por não criar problemas seja com quem for.”

E como vai preenchendo os dias ?

“Enquanto as minhas mãos me deixarem, vou-me entretendo a fazer trabalhos em renda, que foi uma coisa que sempre gostei de fazer: saquinhos para telemóveis, para moedas, para lenços e até um lagarto para colocar o sabonete ou outro artigo qualquer.”

Muito bem, D. Isabel. Vá dando largas à sua imaginação, ao mesmo tempo que nos brinda com os seus trabalhos. Boa saúde para si e para o seu marido.


         

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

OS NOSSOS UTENTES


ISIDORO MANUEL VITORINO

Numa amena manhã deste princípio de Outono, estivemos à conversa com o nosso utente Isidoro Manuel Vitorino, conhecido também por Isidoro “Panelas”, alcunha que herdou do seu avô, que por sua vez a adquiriu nas brincadeiras de crianças.


“Nasci no dia 9 de Maio de 1922 no Monte do Outeiro, perto de S. Mateus”, começou por nos revelar. E continuou:´

“Andei à escola em S. Mateus e fiz o exame da 2ª classe, com a classificação de 12 valores, mas por aí ficou a minha instrução escolar, porque cedo comecei a trabalhar como ajuda de moiral dos porcos. E nunca mais parei. Poucos anos depois comecei a executar os vários serviços agrícolas e, como era ainda muito jovem, ganhava a mesma jorna das mulheres. Só mais tarde, quando já tinha corpo de homem, comecei a ganhar como tal.”

E só por volta dos vinte anos a sua vida conheceu novos desenvolvimentos…

“Sim, sensivelmente com essa idade iniciei o namoro com a moça que haveria de ser a minha mulher. Chamava-se Eva Maria dos Santos, tinha dezassete anos e morava na Quinta Ruiva, também para os lados de S. Mateus. Foi um namoro normal e, passados dois anos, num certo Domingo, mais concretamente a 23 de Abril de 1944,  fui lá falar com ela e decidimos juntar de imediato os trapinhos, como se costuma dizer. E se bem o pensámos, melhor o fizemos. E lá fomos, a pé, a caminho da vila, eu armado com noventa escudos no bolso. Chegados a Montemor, dirigimo-nos para a Pensão Isaac, que se situava no Largo da Câmara. Pagámos cinquenta escudos pela noite de núpcias e fiquei com quarenta escudos na carteira. Na manhã seguinte, segunda-feira, deixei ficar a Eva na pensão e dirigi-me a casa dos meus pais a contar-lhes a situação e a pedir que nos deixassem lá ficar até resolvermos a nossa vida. O meu pai disse-me que sim e informou-me que iríamos dormir no quarto que era da minha irmã. Regressei então à vila e voltei com a Eva já para a casa paterna. Com os quarenta escudos sobrantes fui comprar dez pães, que era a quantidade que consumíamos durante uma semana. Os pães custaram trinta e três escudos e com os sete restantes comprei um pente para a minha mulher, como se fora um presente de casamento.”

Quanto a lua-de-mel, nem pensar nisso, porque era luxo que nem sequer lhes passava pela cabeça:

“Nessa terça-feira, logo pela manhã, fui realmente passar a lua-de-mel a sachar milho no Monte do Picote. E na quarta-feira foi a vez da minha mulher começar a fazer o mesmo trabalho e no mesmo local.”

E como se desembaraçaram durante esses dias, uma vez que o mealheiro já tinha sido gasto e o salário só seria pago no final dessa semana?

“Está mesmo a ver-se que durante essa primeira semana foram os meus pais a dar-nos de comer, tendo eu apenas contribuído com os tais dez pães”

E depois ?

“Já com o nosso próprio orçamento, ainda vivemos na casa paterna cerca de dois anos, após os quais arrendámos uma casa no Monte da Figueira, igualmente para os lados de S. Mateus. Desta união nasceu um filho – Teodósio Manuel Vitorino - que continua a ser o meu grande apoio. Entretanto a nossa situação foi legalizada, no Registo Civil e na Igreja, curiosamente no mesmo dia em que baptizámos o nosso filho.”

Mas a sua vida ainda conheceu outros desenvolvimentos, especialmente a nível laboral. Como nos vai explicar:

“Anos mais tarde, e quando já residíamos para os lados dos Foros da Adua, houve um largo período de acentuada crise de trabalho, pelo que decidi ir tentar a minha sorte como emigrante. Não fui a salto, porque tirei passaporte e todos os documentos necessários, mas a verdade é que me desloquei para França sem quaisquer garantias ou perspectivas de emprego. Fui à sorte e quando cheguei dormi duas ou três noites na casa de um meu irmão. De manhã saía à procura de emprego e, numa dessas voltas, logo ao segundo ou terceiro dia, calhou passar por uma quinta. Estava ao portão a espreitar quando vi um indivíduo, que depois vim a saber tratar-se do próprio dono, que se abeirou e me convidou a entrar. Claro está que eu não sabia uma única palavra de francês, pelo que nos entendemos por gestos. E foi nesta linguagem universal que me apercebi que ele estava a oferecer-me emprego. Apresentei-lhe os meus papéis e mostrei-lhe os calos das mãos, para ele perceber que eu estava habituado a trabalhar. E contratou-me logo. Levou-me à sua casa, no interior da quinta, apresentou-me à esposa e, mostrando-me no relógio e com os gestos adequados, fiquei a saber as horas do início do trabalho, do almoço e da saída. Forneceu-me instalações lá na quinta e passado um ano a minha mulher foi lá ter comigo. Eu nem queria acreditar na sorte grande que me tinha saído.”

E esteve lá muito tempo ?

“Trabalhei naquela quinta, como jardineiro a tratar de flores, uma vez que a principal actividade do meu patrão era a floricultura, durante seis anos e posso dizer que foi uma outra família que ali encontrei.”

E no regresso, o que aconteceu?

“Quando voltei para Portugal e para Montemor, tive durante quatro anos uma frutaria no Largo Gulbenkian, comprada ao sr. Frango, marido da conhecida vendedora Capitolina. Acabada esta actividade, voltei aos afazeres agrícolas. Antes de me reformar ainda fui servente de pedreiro, nomeadamente para o empreiteiro sr. Jaime Bibe, na obra da Cercimor.”

A idade, mas sobretudo a doença, levaram o casal a procurar refúgio no Abrigo dos Velhos Trabalhadores, tendo dado entrada em Julho de 1998. A esposa, infelizmente, já faleceu há sete anos. O sr. Isidoro, ainda que confinado a uma cadeira de rodas (que faz questão de ser ele próprio a conduzir porque, segundo afirma, só ele lhe conhecer as manhas), diz estar muito contente com o ambiente e a forma como é tratado por todos. Confessa estar atento a tudo o que o rodeia e, ainda que a memória lhe falhe aqui ou ali, sobretudo quando tem que recordar datas ou nomes, é um homem lúcido e interessado. Obrigado pelos minutos que nos dispensou.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

OS NOSSOS UTENTES

MIRALDINA DE JESUS CANTANHEDE PARRULAS

Agosto, mês de férias mas também propício a conversas amenas recordando fases de um passado iniciado em anos já longínquos.

A nossa entrevistada de hoje lembra o que foram alguns momentos marcantes dos seus 79 anos de vida (fará 80 primaveras em Outubro próximo), sessenta e um dos quais ao lado do seu marido – Salvador José Parrulas.


“É verdade, tinha eu exactamente 18 anos quando me casei com o meu amor de sempre. Ele era mais velho do que eu, tinha então 28 anos. Desta união nasceu um filho – Custódio Salvador Cantanhede Parrulas, actualmente com 59 anos e a residir na Quinta do Conde.”

Mas vamos começar pelo princípio, como aliás devem iniciar-se todas as histórias:
“Nasci no Monte da Maia, S. Mateus. Os meus pais tiveram muitos filhos, mais concretamente doze, dos quais apenas oito estiveram vivos ao mesmo tempo. Porque a família era grande e os proveitos do meu pai, como trabalhador rural, eram manifestamente pequenos, a minha avó materna levou-me para a sua casa, ali bem perto de onde moravam os meus pais. Teria eu cerca de 9 anos, manifestei a intenção de regressar à casa paterna, que por essa altura já se situava na Courela das Tornas, ali para os lados de Safira. Quando tornei efectiva essa vontade, dizia-me a minha avó, muito chorosa: ‘queres regressar para ir ajudar os teus irmãos a passarem fome ?’  Mas eu não quis saber e fui mesmo.”

Concretizado esse desejo, o que foi então fazer para casa?

“Sendo eu a mais velha dos irmãos, fiquei desde logo com a incumbência de tomar conta deles para que a minha mãe pudesse ir trabalhar.”

E durante quanto tempo durou essa situação?

“Ainda que contra a vontade do meu pai, por essa altura era obrigatório irmos à escola, pelo que tive de ir, e todos os dias me deslocava, acompanhada de outras crianças da mesma zona de Safira, para S. Gens, que era onde recebíamos as aulas. Íamos a pé, regra geral por veredas, e normalmente demorávamos mais de hora e meia no percurso. De Inverno, quando chegávamos à escola íamos todos molhados. No primeiro ano, com a D. Anica, fiz a primeira classe da instrução primária. No segundo ano consegui fazer a 2ª e a 3ª classes com a D. Leonor. Contra a vontade desta professora, por ali ficaram os meus estudos, porque a escolaridade apenas era obrigatória até à terceira classe e, entretanto, os meus pais precisavam de mim em casa. Já teria perto de quarenta anos, depois do 25 de Abril, quando fiz o exame da 4ª classe na Escola Primária S. João de Deus.”

Mas voltemos à infância…
“Com doze anos comecei a labutar no campo e o meu primeiro trabalho foi ceifar. A partir daí foi só continuar a fazer os trabalhos agrícolas, até à idade de 55 anos, altura em que tive de parar por motivos de doença.”

E quando é que conheceu o que haveria de ser o seu marido?
“Eu tinha 15 anos quando iniciámos o namoro e ele era dez anos mais velho. O Salvador era meu vizinho e o meu pai olhava com bons olhos o namoro, porque achava que ele era bom rapaz e trabalhador.”
Quer dizer, portanto, que nesse aspecto tudo caminhava bem …
“Não foi bem assim. Mais tarde, o meu pai veio a saber que o Salvador era muito namoradeiro e que, ao mesmo tempo, namorava outras raparigas. Não gostou dessa atitude e chamou-me a atenção que sendo ele assim, se calhar era porque não gostava muito de mim.”

A assistir agora à nossa conversa estava o marido, que pediu licença para interromper para confessar o seguinte: “É verdade que eu ia namorando outras ao mesmo tempo, mas desta é que eu realmente gostava e, portanto, foi com a Miraldina que casei.” 

Esclarecido este importante pormenor a conversa prosseguiu com a D. Miraldina: 
“Casámos em 1953 e fomos morar para o Monte do Marco, também perto da Maia. O meu marido era pedreiro e eu continuei a trabalhar no campo. Em 1969 mudámo-nos para o Bairro de S. Pedro, aqui em Montemor, onde residimos durante quarenta e cinco anos. Porém, no ano passado o meu marido foi vítima de um AVC e ficou incapacitado, pelo que deu entrada no Abrigo, em Outubro, onde se encontra como residente.

Foi um enorme revés na vossa vida.
“Realmente foi. E, como se isso não bastasse, também eu fui operada à coluna e fiquei impedida de fazer alguns trabalhos que me exigiam mais esforço. Fui morar para uma casa que o meu filho possui aqui na cidade e fiquei, desde então, a receber ajuda também do Abrigo na Valência de “Centro de Dia”. No meio de termos passado pelos azares da doença, foi uma sorte termos conseguido estes apoios, porque somos muito bem tratados.”

Apesar de saber ler e escrever, a D. Miraldina não gosta muito de leituras, ficando-se pelos títulos dos jornais. Também ainda não foi conquistada para fazer parte do grupo coral ou do grupo cénico. Pode ser que um dia ainda se decida. Vai ver que gosta.


sexta-feira, 24 de julho de 2015

OS NOSSOS UTENTES

JOSÉ SIMÕES DOS SANTOS

A história do nosso entrevistado deste mês, mais do que uma pequena conversa, dava um longo filme, tais foram as peripécias, aventuras e desventuras que conheceu ao longo da vida.


Mas vamos dar-lhe a palavra:

“Nasci há 86 anos no Ciborro, mas era muito novo quando a família foi morar para Coruche. Quando tinha 12 ou 13 anos, já com a 4ª classe, faleceu o meu pai, que na altura contava apenas trinta e poucos anos. Apesar de se tratar de um casal jovem, a minha mãe viu-se viúva e com seis filhos, dos quais eu era o mais velho.”

Foi, portanto, uma enorme e inesperada tragédia que alterou completamente a vida familiar.

“Como se compreende, foram tempos difíceis. Tivemos no entanto a felicidade de ser acolhidos, aqui em Montemor, na casa do meu tio José Bento, cuja esposa era irmã da minha mãe. O meu tio, como se deve recordar, era o chefe da central eléctrica, tendo falecido anos depois, electrocutado, no seu posto de trabalho. Pois foi na sua casa que morámos algum tempo. Como eu era o mais velho dos irmãos, empreguei-me na oficina Magina. Teria já dezasseis ou dezassete anos, já morávamos na Ruinha, fui para empregado de mesa no Bar Alentejano, onde tinha como patrão o sr. Manuel Dias Moita, que mais tarde haveria de ser meu cunhado. Neste estabelecimento fui colega de António Leonardo Correia, mais conhecido por Espanhol, que depois esteve no Café Almansor e alguns anos mais tarde emigrou para os Estados Unidos, onde penso que ainda se encontra. Aqui no Bar Alentejano aconteceu-me uma coisa curiosa: como o movimento do café não justificava dois empregados, dispus-me a ceder o lugar ao António e fui à procura de outra vida.”

E foi o que na realidade aconteceu …

Com os meus dezassete ou dezoito anos comecei a negociar em lenhas, carvões e no que me ia aparecendo. Ao mesmo tempo trabalhava na estação de serviço do sr. Laurentino dos Reis, de onde me ficaram umas luzes sobre a forma de lidar com alguns dos problemas que surgiam nos automóveis. Quando chegou a altura, lá fui à inspecção militar e está claro que fiquei imediatamente apurado, já que tinha um corpo bem desenvolvido.

Portanto foi para a tropa, como não podia deixar de ser …

“Claro que acabei por ir, mas não sem antes ter havido um pequeno incidente, como vou contar. Quando saíram os editais, vi que tinha de me apresentar em determinado dia no quartel de Artilharia Um, em Évora. Porém, como a vontade de ir não era muita, “esqueci-me” de ir apanhar o comboio. Dias depois, e porque me foram chamando à razão de que aquilo não era para brincadeiras, resolvi ir apresentar-me. Disse que tinha estado doente e a coisa não teve consequências de maior. Depois, e como soubessem que eu já ia percebendo alguma coisa de carros, mandaram-me tirar a carta e quando passei a pronto fiquei como segundo motorista do carro do comandante, Major Marino.

E a vida militar decorreu sem mais quaisquer problemas. Certo?

“Não foi bem assim. O pior ainda estava para vir: O nosso comandante gostava bastante de futebol e um dia, ele e mais um capitão, quiseram vir ver um jogo a Montemor, salvo erro entre duas equipas de militares. Como eu não gostava de bola, fui deixá-los junto ao estádio e, como sabia quando é que o jogo acabava, fui ter com o meu amigo Rui “maneta”, que sabia ir encontrar na Laranjinha. Eu tinha o tempo bem contado, mas eles se calhar não gostaram do jogo ou do resultado e decidiram sair mais cedo. Tramaram-me. Pegaram no carro e foram-se embora para Évora. Quando cheguei ao local onde tinha deixado o Ford com capota de lona e não o vi, fiquei aflito. Entretanto o jogo acabou e um sargento viu-me, contou-me o que tinha acontecido, e aconselhou-me que o melhor era eu ir com ele porque, de contrário, estava metido numa camisa de onze varas.
E o amigo José assim fez…

“Claro que fui, pois, mas receando o que me poderia acontecer. Não evitei o castigo, ainda assim bem leve: estive impedido de sair do quartel durante quinze dias. Do mal, o menos.”

Por fim, lá chegou a hora da desmobilização…

“Quando me livrei da tropa comprei um camião de 10 toneladas e comecei a fazer transportes, ao mesmo tempo que ia fazendo os meus negócios. Porque eu pensei: anteriormente, quando comprava e depois vendia as lenhas, os carvões ou outros produtos, havia que recorrer aos serviços de um camionista. Se fosse eu a fazer os transportes, era mais esse dinheiro que ganhava. E foi assim o resto da minha vida. Cheguei a ter 3 camiões ao mesmo tempo. Já, então, vivia no Escoural. Lá conheci a minha mulher – Constança Rosa Baptista – que me deu um filho e uma filha e com quem estou casado há perto de sessenta anos.”

Os anos foram passando, foi vencendo os problemas que sempre surgem, até que chega o dia em que se tem de parar.

“Fui sempre marcado em cima pelas brigadas de trânsito. Até parece que adivinhavam por onde eu iria passar. Por isto ou por aquilo arranjavam sempre maneira de me multar. Umas vezes com razão mas outras sem ela. Mas enfim… lá fui andando até que há uns anos, perto de S. Mateus, o camião entrou em derrapagem devido a uma quantidade de areia que estava na estrada e o veículo foi embater violentamente num sobreiro. O meu ajudante infelizmente faleceu e eu voei da cabine e fiquei sentado na estrada. Quem primeiro chegou ao pé de mim foi o nosso conhecido Simão Comenda. Isto aconteceu há perto de vinte anos, mas eu nunca mais fiquei o mesmo. Estive várias vezes hospitalizado e a situação foi-se agravando. Problemas na coluna, na bacia e nas pernas foram-me impedindo cada vez mais de ter uma vida normal, até ao dia em que me vi preso a uma cadeira de rodas, que é actualmente o meu único meio de locomoção.

O Sr. José Simões dos Santos está como residente no Abrigo desde Fevereiro deste ano, enquanto que a sua Esposa continua a viver no Escoural, na casa onde o casal morava. Felicidades para ambos, com os nossos melhores votos de significativas melhoras.

         

segunda-feira, 29 de junho de 2015

OS NOSSOS UTENTES


PALMIRA  ROSA

Quando uma qualquer instituição celebra o centenário da sua fundação, esse facto é justamente assinalado dada a sua raridade. Porém, quando é uma pessoa a chegar a tão respeitável idade, ainda existem mais motivos a justificar uma referência a quem atingiu essa meta que só poucos conseguem alcançar.

Mas a nossa entrevistada deste mês, PALMIRA ROSA ou PALMIRA ROSA SIMÕES, fez mais: No dia 28 deste mês de Junho de 2015 celebrou exatamente 101 anos de vida, plena, não obstante ter conhecido uma existência de sacrifícios, renúncias, abnegação e trabalho, muito trabalho.


A sua memória já não é o que era e, portanto, foi a sua filha Liberdade que nos foi ajudando a preencher algumas lacunas de uma história que já vai longa.

“Comecei a trabalhar ainda em criança, porque éramos oito irmãos e a comida era pouca para tanta boca. Da apanha da azeitona, à monda, à ceifa e de outros trabalhos rurais, de tudo um pouco eu fiz. Depois de casada até pedra parti.”

Com 17 anos juntou-se com o seu homem de sempre, Salvador José Simões, mas só uns anos mais tarde casou civilmente. O seu marido, que era cabouqueiro, já faleceu há bastantes anos.

“Trabalhei no campo até aos 40/50 anos e só por esta idade comecei a percorrer as ruas da então vila, com uma carrocinha, puxada por um burro, um macho ou uma mula, a recolher em latões as sobras que as famílias e os restaurantes  me iam dando, para alimentar os porcos que tínhamos num chiqueiro perto da ribeira, mais ou menos por baixo da ponte de ferro. Chegámos a ter e a engordar mais de 20 animais. Já era casada e já tinham nascido os meus três filhos  - Martinho, Florinda e Liberdade.”

Destas suas deambulações com a carroça, tem umas histórias para contar: 
“Devo ter a minha fotografia espalhada pelos quatro cantos do mundo. Sempre que passava por turistas, sobretudo estrangeiros, logo me solicitavam que me deixasse fotografar. Alguns até me pediam o meu chapéu, que colocavam na cabeça do burro”

Mas as histórias não ficam por aqui:
“Nestas minhas andanças tinha como companheiro e ajudante um cãozinho chamado “Faísca”. Era um animal inteligentíssimo. Quando eu tinha de deixar a carroça sozinha para ir recolher as sobras, bastava dizer-lhe para ele ficar de guarda e eu abalava descansada. Uma vez, fui à lenha para os lados do Raimundo. Andava por ali uma manada de touros e um deles quis atacar-me. De imediato chamei o “Faísca”, dei-lhe ordem para me proteger e o cão agarrou-se ao rabo do animal e este foi forçado a voltar para trás. Dei-lhe ordem para regressar, ele subiu para a carroça e lá fomos à nossa vida. Que saudades eu tenho do meu Faísca.”

 Mas nem todas foram histórias interessantes:
“Já deveria ter cerca de cinquenta anos, andei a coser os rasgões das sacas do carvão e, quando chegavam os homens para encher as sacas e depois carregá-las para as camionetas ou tractores, era eu mesma que “dava carga”, passando-me pelas costas sacas que chegavam a pesar cem quilos.”

Foi sempre uma luta constante para ganhar a vida:
Trabalhei muito. Em determinadas alturas, para ajudar a suportar as despesas, ia com a minha filha Liberdade e com os meus dois netos, a diversas albufeiras e ribeiros apanhar “verdemãs”, que depois vendíamos a dez tostões cada. Apanhávamos centenas, mas corríamos grandes riscos, porque muitas vezes tínhamos de entrar pela água dentro e eu já não era propriamente uma jovem.”

Os anos foram passando e…
“As circunstâncias levaram-me a entrar para o Abrigo e tive a sorte de entrar como residente. Morava com a minha filha Florinda, de 80 anos, no Beco dos Pelomes, ali para os lados das Fontaínhas. Claro que era uma situação insustentável e vi-me forçada a recorrer a esta solução. Mas estou agora preocupada com o problema da minha filha, que já não está em condições de viver sozinha. Vamos ver se num futuro próximo surge uma vaga, quer para o Lar, quer para o Centro de Dia, quer para o Apoio Domiciliário.”

Foi um prazer falar com a D. Palmira.
Oxalá que o seu mais recente problema se resolva em breve.