quarta-feira, 20 de março de 2013

OS NOSSOS UTENTES



MARIA FLORINDA CÁGADO
Um exemplo a seguir

A nossa “conversada” deste mês tem 79 anos, casou com José Manuel Azinheirinha já lá vão 55 e deste enlace nasceu um filho que lhes deu dois netos.


“Nasci perto da estação do Paião. A minha infância foi como a da maioria das crianças de então que viviam no campo. Apenas frequentei a primeira classe na Escola Primária de S. Mateus. Éramos sete irmãos e, quando tinha uns nove  anos, os meus pais necessitaram de mim em casa para cuidar e zelar pelos mais pequenos, uma vez que a vida era difícil e a minha mãe também tinha de ir trabalhar para ajudar ao sustento da família.”

Até aqui, a história da D. Maria Florinda é igual a tantas outras. O que difere é que esse pouco tempo de escolaridade despertou-lhe o desejo de aprender mais do que o simples conhecer os números, aprender as primeiras letras, de as juntar nas palavras mais simples ou fazer pequenas operações de somar.

 “É verdade”, confirma. “Nesse ano de escola fiquei com uma luzes e, sobretudo, com a vontade de aprender mais. Em casa, o meu pai foi-me ensinando o que sabia e avancei nos meus conhecimentos. Em rapariga, e na altura devida, comecei a namorar com o que ainda hoje é o meu marido. O tempo foi decorrendo e, entretanto, ele foi para a tropa, pelo que o namoro era só por carta, porque a vinda à terra não era tão fácil como é hoje. Depois, para agravar ainda mais a situação, foi mobilizado para a Índia, onde esteve dois anos. E então, era só mesmo por carta.”

E a D. Maria Florinda recorda passagens desses tempos: “Como eu dava muitos erros, fazia uns rascunhos como que se estivesse a escrever a um irmão e dava-o a corrigir ao meu pai. Ele lá ia emendando aqui e ali, dizendo-me onde estavam os erros e depois eu passava a limpo. Claro que quando escrevia aquelas coisas que só se escrevem ao namorado, eu corria o risco de as cartas irem com erros, mas ele perdoava.”

Sobre a sua actividade ao longo dos anos, diz-nos: “Em solteira trabalhei na agricultura e servi nalgumas casas como empregada doméstica. Depois de casada apenas fiz trabalhos do campo. O meu marido foi guarda-florestal e mais tarde cantoneiro, onde se reformou como capataz”.

O casal está no Abrigo há 9 anos, sensivelmente um ano no “Centro de Dia” e os últimos oito como residente:
 “Depois de ter deixado de ser dirigente do Abrigo, a D. Vitalina Roque Sofio, como é professora, prestou-se durante algum tempo, a dar aulas nas suas horas livres a quem quisesse aprender mais. Claro que aproveitei e aprendi muito. Também a D. Alda Falcão deu, e continua a dar, o mesmo tipo de aulas. Porém, e com grande pena, só eu e outra pessoa é que aproveitamos essa oportunidade. Lamento que haja pouco interesse por parte dos meus colegas, que nem sequer sonham o bem que lhes fazia saber ler. Sei pouco, mas reconheço que quem nada sabe é praticamente como ser cego, porque não tem acesso a tantas coisas que os livros nos ensinam.”

E é já com o entusiasmo estampado no rosto que a nossa entrevistada nos revela: “Calcule que até já sei escrever no computador e utilizar a internet em coisas simples. Estas aulas a que me referi abriram-me os horizontes e o gosto pela leitura. Periodicamente, mais ou menos de dois em dois meses, vem aqui uma equipa da Biblioteca Municipal trazer livros que nós podemos requisitar para ler. Normalmente fico sempre com cinco ou seis, que vou lendo até à visita seguinte. Interesso-me principalmente por livros de história, geografia, ciências naturais e romances históricos. Tenho aprendido tantas coisas que nem sequer imaginava que existissem. Adoro ler.”

Também como é tradicional, a D. Maria Florinda recordou-nos duas quadras que cantava nos seus tempos de menina e moça:

Fui ao jardim às flores,
Logo disse o jardineiro:
Não há flor como a rosa
Nem amor como o primeiro.

Fiz uma jura no trigo
Outro no pé da roseira:
Ou hei-de casar contigo
Ou hei-de morrer solteira.

Mas quis também mostrar os seus dotes de poetisa. Contou-nos que, aqui há tempo, andava com o marido a dar um passeio pela horta do Abrigo quando, inspirada pelo que ia observando, foi fazendo de improviso as seguintes quadras:

Não olhes para a nogueira
                        Que ela nozes tem só duas,
                        Olha aqui para o meu peito
                        Que está cheio d’ofensas tuas.

                        Semeei salsa aos molhinhos
                        Hortelã na outra banda,
                        P’ra lograr os teus carinhos
                        Tenho que andar em demanda.

                        Tudo quanto é verde acaba
                        Em vindo o calor do Verão,
                        Só as penas reverdecem
                        Junto do meu coração.

                        A oliveira esgalhada
                        Sempre parece oliveira
                        Mulher bonita e casada
                        Sempre parece solteira.

                        A flor da fava é branca
E depois faz-se amarela
Minha carta já lá vai
A tua espero por ela.

E se o espaço nos permitisse, muitas mais quadras seriam recolhidas. Ficam para uma próxima oportunidade. 

Entretanto, oxalá que o seu exemplo frutifique e que as suas palavras sensibilizem outros ou outras colegas para que cheguem a alcançar o prazer da leitura.