quinta-feira, 28 de julho de 2016

OS NOSSOS UTENTES

LUÍS SEGISMUNDO SOVELAS

“Só fui verdadeiramente feliz enquanto vivi ao lado da minha mulher.” Foi com estas palavras que o nosso entrevistado deste mês iniciou a nossa conversa. Mas vamos conhecê-lo melhor:

“Nasci em Fevereiro de 1931 e tenho, portanto, 85 anos. Fui um dos seis filhos que os meus pais trouxeram ao mundo mas apenas quatro viveram ao mesmo tempo. Com 6 anos fomos morar para os Chões, no que é hoje o Largo Gulbenkian. Ali vivi até aos 28 anos, apenas com um pequeno interregno em que morámos na Ruinha”.

Considera que teve uma infância normal ?

“Normal terá sido se considerarmos o que eram esses tempos a vários níveis. Por exemplo: andei na escola primária e conclui a 3ª classe. Ainda frequentei a quarta mas o meu pai retirou-me porque eu tinha um irmão mais velho que era muito estudioso e, com 13 anos, faleceu com uma meningite. Os meus pais associaram a doença ao estudo e, então, retiraram-me da escola.”

Sem escola, cedo começou a trabalhar …

“Pois, com certeza. Logo aos 12 anos comecei como servente de pedreiro e, aos 17, já exercia a actividade como oficial, que continuei até me reformar. Mas enquanto fui solteiro, e especialmente quando era mais novinho, a nossa vida não foi fácil. Havia muita falta de trabalho, os rendimentos resultantes do nosso labor eram poucos e incertos e as dificuldades resultantes dessa situação eram constantes. Tínhamos de recorrer com frequência à boa vontade de alguns comerciantes, que nos iam fiando os produtos alimentares. Foi um tempo desesperante. A minha mãe, coitada, levava o tempo a contar os tostões para ver se chegavam para a comida do dia-a-dia, o que raramente acontecia. E como se não bastasse, a situação ainda se agravava mais porque um meu irmão adoeceu com gravidade e os remédios eram caros. Infelizmente acabou por falecer. Entretanto, éramos nós, os mais novos, que íamos às lojas pedir fiado, o que nos colocava numa situação tremendamente desagradável. Foi um período que me marcou para sempre. Normalmente era às mercearias dos Srs. Henrique Pinto de Sá e Albino Ferreira (Albino da Luz), ali na Rua de Avis, que nós recorríamos. Mas foi a minha tia Constança Sovelas Pereira (que ficou conhecida como a Viúva do Germano) quem mais nos ajudou. Cheguei a estar lá em casa, a comer e a dormir, durante uns meses.”

Mas esse período menos bom foi ultrapassado…

“Sim, mas deixou marcas. Quando tinha 28 anos resolvi mudar de vida e juntei-me com a minha mulher. Isto em Julho de há 57 anos, tendo sido celebrado o casamento em Outubro. Ainda estivemos uns meses numa casa perto da Rua de Avis mas em Janeiro seguinte fomos então residir no Rossio, onde ainda hoje moro. Esta casa pertencia à minha sogra – Cristina Serôdio – que era filha de Generosa Serôdio, que ali mantinha o negócio de taberna, iniciado pelo marido, e que possuía também, num anexo, uma estalagem, que alugava essencialmente a carreiros e a louceiros, para além de uma cocheira onde eram recolhidos os animais. O edifício era de chão de terra e de telha vã e, como eu era pedreiro e a minha sogra entretanto havia terminado o negócio, fui fazendo obras no prédio até chegar ao que é hoje.”

A sua vida, portanto, conheceu uma enorme transformação.

“Sim, e sem dúvida para melhor. Todo aquele drama que tinha vivido, e todas as dificuldades por que passei, deixaram uma marca tão profunda que, quando casei, prometi a mim mesmo que haveria de lutar com todas as minhas forças para nunca mais reviver tais dificuldades. Aliás, a minha vida começou logo a mudar. Primeiro porque, já com trinta anos, conclui o exame da 4ª classe, após o que fui convidado para ir para as Caldas da Rainha trabalhar na construção de uma nova escola. Mas não aceitei porque, entretanto, a minha situação já tinha melhorado, graças à preciosa ajuda da minha mulher – Cecília Maria Serôdio Trindade, minha adorada companheira de sempre e que me deu dois filhos: o António Joaquim, que tem 56 anos, e a Cecília que tem presentemente 49. Vivi 55 anos de um casamento feliz e tranquilo. Foi o melhor período da minha vida. Infelizmente a doença bateu à porta da minha mulher e essa felicidade foi completamente interrompida quando, há dois anos, fiquei sem a sua abençoada companhia. Foi um rude golpe do qual jamais irei recuperar.”

Mas tem de continuar a sua luta para ultrapassar mais esta dificuldade, certamente a mais dolorosa de todas.

“Pois, eu bem tento, mas tem sido muito difícil. Estou aqui no “Centro de Dia” há pouco mais de um mês, mas o regresso a casa, ao final de cada dia, é sempre penosa, sabendo o vazio que me espera.”

O Amigo Luís deu mostras, ao longo da vida, que é um homem de carácter e moralmente forte. Vença mais este desafio.