segunda-feira, 20 de maio de 2013

OS NOSSOS UTENTES



MARIA OCTÁVIA PEREIRA
Admirável lucidez!

No Abrigo desde Junho de 2005, a nossa entrevistada deste mês tem dois grandes desgostos na vida: perdeu o marido há 7 anos e sofre actualmente de graves problemas de visão que a impedem de ler e de exercer outras actividades que a ajudariam a suportar melhor os seus dias.



Nasci em Novembro de 1923, pelo que irei completar 90 anos dentro de alguns meses. Sou a mais velha de 10 irmãos (5 rapazes e 5 raparigas) dos quais seis ainda estão vivos. Vim ao mundo numa casa da Travessa da Adega Funda, mas depois vivi noutros locais.

E explica porquê:

O meu pai era moleiro e, por isso, andámos por vários sítios do concelho onde podia desempenhar a sua arte. Recordo-me de vivermos em S. Geraldo, no Moinho do Porto da Estaca de Baixo (S. Cristóvão), e no Moinho Novo, da família Ananil, perto do Monte da Borracha aqui no Almansor. O meu pai esteve também mais tarde a trabalhar nos celeiros da antiga Federação Nacional dos Produtores de Trigo, lá em baixo junto à Estação do Caminho de Ferro.

Já na zona urbana, mas ainda em solteira, morou na Frontaria do Rossio, actualmente Largo Banha de Andrade, na Rua de Avis e finalmente na Ruinha.

A minha infância e juventude foram iguais a tantas outras. Andei à escola até à terceira classe. De salientar que o meu pai, sendo analfabeto, não quis, por isso mesmo, deixar de dar a todos os filhos a oportunidade de aprenderem a ler e a escrever. De resto, andei à azeitona, na monda e aprendi a costurar. Nesta arte, trabalhava em casa, à tarefa, e a minha especialidade eram os casacos de homem.

Vamos então virar a página e entrar noutro capítulo desta história da sua vida:

Tinha 24 anos quando comecei a namorar o que viria a ser meu marido e namorámos durante 17, pelo que já tinha 41 anos quando juntámos os trapinhos, num dia 27 de Agosto. Residimos primeiro na Rua Condessa de Valenças e depois na Rua das Ricas. O meu marido, Joaquim Poças de seu nome, era pedreiro e bastante conhecido, especialmente junto dos pescadores desportivos. Quase toda a gente o tratava por “Mestre”. Com a doença, que o foi destruindo aos poucos, e porque o destino não quis que tivéssemos filhos, não tivemos outra alternativa que não fosse virmos para o Abrigo. Infelizmente só cá esteve dois meses.

Regressemos a outros tempos mais felizes:

Sempre gostei de cantar, mas só no ambiente da família. E também na minha juventude gostava de dançar, mas como morávamos no campo poucas hipóteses tinha de ir a bailes, tanto mais que os meus irmãos não mostravam interesse em me acompanhar.

Apesar de se queixar de falta de memória, esse facto é completamente desmentido quando começa a evocar versos da sua juventude. Aqui oferecemos aos nossos leitores um poema curioso que reflecte particularidades da alma humana e que, segundo nos diz, fazia parte do seu livro de leitura da 3ª classe:

Em certa aldeia indigente,
Isto em tempos já passados,
Viviam muito santamente
Dois velhinhos bem casados.

A mulher e o companheiro
Diziam juntos os dois:
Se tu morreres primeiro,
Morrerei logo depois.

E num coro afectuoso,
Ambos diziam ali:
Eu só peço a Deus bondoso
Que me leve antes de ti.

E nisto uma pancada forte
Na porta se fez ouvir.
Quem é? E responde a morte:
Quero entrar, venham abrir.

Diacho, diz o marido,
Como há-de isto agora ser?
Tenho aqui um pé dorido,
Vai lá tu abrir, mulher.

Mas ela logo se queixa:
Valha-me Nosso Senhor,
Este flato não me deixa.
Vai lá tu, fazes favor.

E então a morte enfadada
Investiu pelo postigo
E entrando assim na pousada                  
Levou os velhos consigo!

Votos de boa saúde, D. Maria Octávia! Foi um gosto falar com a Senhora!