segunda-feira, 27 de junho de 2016

OS NOSSOS UTENTES

PALMIRA DA LUZ PARREIRA

 

Dia 23 de Junho, véspera de S. João.
O nosso amigo André, que estava de partida para o Porto, para mais uma actuação, nas festas da cidade, com os seus colegas dos “Peña Kalimotxo”, sugerira, para nossa entrevistada do mês, uma Senhora que eu próprio já conhecia por termos sido vizinhos, há muitos anos, na rua dos Almocreves.
Nem chegaram, portanto, a ser necessárias as apresentações. E a conversa que se seguiu, dada a excelente memória e discurso fácil da D. Palmira, foi apenas a de recolher os principais acontecimentos da sua história de vida.

“Completei em Janeiro 91 anos de idade. Sou viúva há 17 anos de Manuel Maria (Mira Serrano) e tenho 1 filho – Cláudio – mas estou deveras arrependida de não termos tido mais. Nasci na Rua de D. Vasco. Éramos três irmãos, dos quais um rapaz e outra rapariga já faleceram. Quando tinha três anos fiquei sem a minha mãe e, nessa altura, fui para casa de umas tias.”

E foi aí que continuou o seu crescimento ?

“Não. Quando fiz 5 anos meteram-me no Asilo de Infância Desvalida. Era então directora uma senhora que tratávamos por D. Maria se bem que, na verdade, eram duas das asiladas mais velhas, a Carolina e a Guiomar, que, tendo já idade para saírem, mas não tendo familiares nem alguém que as acolhesse, ficaram no Asilo a desempenhar as funções de monitoras. Estive nesta Instituição, de que era presidente o Padre Cartaxo, até aos 12 anos, idade em que as minhas tias aconselharam o meu pai a retirar-me de lá. E ele assim fez, tendo eu ido viver com o meu pai que, já viúvo, voltara a casar, e com a minha madrasta – Maria da Conceição – residentes na Rua dos Almocreves.”

Foi uma nova fase da sua vida …

“Com certeza. O meu pai tinha uma carroça e uma mula com as quais fazia fretes, transportando lenhas e outros produtos para quem solicitava os seus serviços. Mas, como se compreende, a vida não era fácil em termos económicos. Então, vi-me desde logo envolvida nos trabalhos agrícolas, tais como ceifa, monda ou apanha de azeitona. Também servi em casas particulares de famílias abastadas de Montemor. Curiosamente, foi na casa do sr. Herculano de Oliveira, que tinha uma barbearia na rua 5 de Outubro, que eu servi pela última vez e que acabou por ser o meu padrinho de casamento. E assim iam decorrendo os anos. Em determinada altura, e porque o ser criada de servir (hoje são empregadas domésticas) envolvia ter de dormir em casa dos patrões e nunca ter um horário, resolvi passar a ir trabalhar a dias, com horas de entrada e de saída.”.

E quando é que entra a fase do namoro ?

“Ainda eu estava em casa do sr. Salvador da Costa, era também lá empregado um rapaz chamado Manuel Maria e em determinada altura chegámos à conclusão de que gostávamos um do outro. Mas não foi namorar e casar logo. Tinha eu já 25 anos quando comecei a namorar o que viria a ser o meu marido. Ele tinha então 19 anos, pelo que nem sequer à tropa tinha ido. Depois de cumprido o serviço militar, e sem perspectivas de melhor emprego, fui eu pedir ao sr. Jerónimo Faria e à Esposa que tentassem, junto dos seus conhecimentos, que ele fosse admitido na Polícia, porque ali teria um futuro mais estável. E a verdade é que esse desejo se concretizou mesmo.”

E então foi casar logo …

“Ainda não. Namorámos durante dez anos e tinha eu 35 anos e o noivo 29 quando, enfim, demos o nó. Casados, fomos morar para o Beco de S. Francisco, para casa dos avós dele. Dali fomos para Évora, onde o meu marido estava colocado. Já o meu filho Cláudio tinha nascido havia pouco tempo. Passados quatro anos, o meu marido pediu para ir fazer uma comissão a Angola enquanto polícia. E fomos. Primeiro partiu ele com os colegas e, uma semana depois, fui eu com a criança. Estávamos em 1964 e o meu filho fez os 4 anos no barco. Chegámos no dia de Finados, 2 de Novembro”.

E como decorreu a sua estada em Angola ?

“Estivemos lá dez anos e as recordações não são das melhores. Trabalhei muito e muitas vezes doente. Como na casa onde vivia tinha um quarto disponível, arrendava-o a membros da polícia ou da tropa. Chegaram a estar lá três ao mesmo tempo, utilizando apenas aquele quarto. Mas era na nossa casa que eles, para além de dormirem, também comiam do que eu lhes cozinhava. Mais: tratava-lhes da roupa e, como se não bastasse, ainda arranjava a roupa de mais dezasseis militares ou polícias. Isto, claro, para além de cuidar do meu marido e do meu filho. Foi uma vida de muito trabalho e sacrifício. E só mais um pormenor que atesta bem o quanto foi importante e laboriosa a minha labuta: em Angola, o meu marido nunca recebeu directamente o seu vencimento. Era o seu pai que o levantava aqui no continente e se encarregava de o ir depositar na Caixa Geral de Depósitos. Foi assim que, durante os dez anos que permanecemos em África, vivemos apenas com o dinheiro que eu ganhava lavando roupa e cozinhando para cerca de vinte militares e polícias.”

Na verdade, não teve uma vida descansada.

“Mas, ao mesmo tempo que tudo isso, ainda tive de suportar as doenças que me afligiram, particularmente o paludismo. E, como se não fosse suficiente, também fui lá operada a um peito quando tinha pouco mais de 40 anos. Mesmo assim, nestas condições, continuava a tratar daquela gente toda.”

Entretanto passaram-se dez anos …

“Em 1975 regressámos a Montemor e fomos para a casa da minha sogra, mas o meu marido comprou uma morada na Rua de Avis, onde fizemos obras e onde eu ainda hoje resido. Mas voltando a esse tempo, o meu marido voltou ao serviço em Évora mas de imediato pediu para ser transferido para Montemor. Ainda aqui esteve algum tempo, mas como sofria de gota e já tinha ultrapassado o tempo de serviço, passou à reforma.”

E a vossa vida, enfim, estabilizou.

“Sim. Tivemos finalmente uma vida mais tranquila. O meu filho entretanto concluiu o que é hoje o 12º ano e fez um curso profissional de electricista, o que lhe permitiu ingressar na EDP, onde ainda hoje se encontra. Infelizmente, o curso normal da nossa vida acabou com o falecimento do meu marido.”

E a situação voltou a alterar-se

“Foi um rude golpe, que ainda hoje me afecta diariamente. Passei a morar sozinha, porque o meu filho já constituíra família e tinha o seu próprio lar . Comecei então a ser abrangida pelo “Centro de Dia” do Abrigo, onde primeiramente estive cerca de um ano. Num Domingo dei uma queda na minha própria casa, feri-me na cara e fracturei uma perna. Fui logo nesse dia transportada para o hospital de Évora mas só fui operada na sexta-feira seguinte. Uns quatro dias depois, ainda bastante combalida, passaram-me a alta. Como não podia ficar sozinha, o meu filho colocou-me no Lar da Quinta da Ponte. Entretanto, ele teve conhecimento de que em Estremoz havia uma clínica da Cruz Vermelha onde poderia ser ajudada na recuperação. Estive lá durante quatro meses. Passado esse tempo, o Abrigo aceitou o meu regresso e desde Março do ano passado que aqui estou de novo.”

E como tem evoluído a sua recuperação ?

“Aqui dentro ainda me desloco com o auxílio de um andarilho, mas tenho vindo a recuperar, sobretudo porque frequento todos dos dias o ginásio desta Instituição, o que acho que me tem ajudado bastante.”

Foi um prazer conversar consigo, D. Palmira. Quem diria que depois de a ter conhecido quando eu era uma criança, nos viríamos a encontrar passados tantos anos. Que tenha as melhoras que deseja.