segunda-feira, 21 de agosto de 2017

OS NOSSOS UTENTES

Maria Lourença Cabecinha


Para quem sempre teve uma existência mais ou menos calma, sem sobressaltos, e apenas se viu confrontado com os problemas comuns a qualquer um de nós, terá alguma dificuldade em compreender que alguém, por defender uma ideia em que firmemente acredita, sacrifique o seu bem-estar e o dos seus na defesa desses princípios.

Falámos este mês com a D. Maria Lourença Cabecinha, cuja história de vida, não sendo única porque conhecemos outros casos semelhantes, dava um romance, tivéssemos nós o talento para o escrever.
            
Mas vamos dar-lhe a palavra:
            
Tenho 84 anos e vivo em união de facto, desde os 18, com António Joaquim Gervásio. A nossa vida atribulada nem sequer nos permitiu formalizar a relação, mas também nunca foi problema. Temos um filho, com 66 anos, que foi para França, ainda não tinha feito os dezanove, para fugir à guerra colonial.”
            
E como foi a sua infância?
            
“Nasci no Monte da Aldeia, perto da Torre da Gadanha, que pertencia a uma freguesia já extinta e que agora faz parte de S. Cristóvão. Fui filha única de um casal de trabalhadores rurais. O meu pai, ainda miúdo, trabalhava para um patrão que tinha filhos em idade escolar, e era ele quem os acompanhava à escola. Acabou por assistir também às aulas e facilmente concluiu a instrução primária. Depois, como na nossa área de residência não havia escola, foi ele que me ensinou as primeiras letras. E eu, entusiasmada, sempre fui escrevendo e lendo tudo o que me aparecia. Só muito mais tarde fiz o exame da 4ª classe.”
            
E como foi a sua juventude?
            
Dos 12 até aos 19 anos trabalhei no campo, exceptuando os períodos, que eram frequentes, em que não havia trabalho. Tinha 18 anos quando me juntei com o meu marido e um ano depois entrei para funcionária do Partido Comunista Português, onde o António também já trabalhava. Evidentemente que como o partido estava na clandestinidade, também eu adquiri o mesmo estatuto. Passei por inúmeras localidades, com identidades falsas e vivendo em casas clandestinas. Sobre nós pairava sempre a ameaça de a qualquer momento sermos descobertos.
            
E isso aconteceu?
            
“Num dia de Abril de 1964, estava eu numa dessas casas, juntamente com um outro casal, porque o meu marido estava fora, o senhor foi preso, certamente por denúncia. Na prisão não conseguiu resistir às torturas e, certamente com um aperto na alma, acabou por revelar onde morávamos. Então, uma noite, a Pide assaltou a casa e levou-me a mim, à mulher dele e um filhote, com 3 anitos, para Caxias. A criança, ao fim de dois ou três dias foi entregue a familiares, mas a mãe continuou por lá 2 ou 3 anos. Eu estive nesta prisão durante 5 anos e meio, saindo apenas em Setembro de 1969”.
          
Mas não foi julgada?
         
“Estive dez meses à espera de julgamento, que acabou por acontecer num anexo do Tribunal da Boa Hora. E qual era o crime de que me acusavam? Não por ter feito mal a alguém ou roubado qualquer coisa, mas apenas porque pertencia ao quadro de funcionários do Partido e de divulgar os seus ideais. Fui defendida por um advogado já com muita experiência em inúmeros casos deste género, que argumentou como podia, mas tratava-se de uma missão impossível porque já se sabia de antemão que a minha condenação estava traçada. Fui condenada a cumprir, em Caxias, dois anos e dez meses, com medidas de segurança e de vigilância apertada. Como se eu fosse uma criminosa…”
            
Mas por que razão cumpriu uma pena superior?
            
“Porque se tratava de uma pena de prisão maior, o que significava que, no final da pena aplicada, esta ia sendo prorrogada automaticamente por períodos de mais 6 meses. E mesmo assim, quando saí ainda tinha de me apresentar, primeiro quinzenalmente e mais tarde mensalmente, no quartel da GNR aqui em Montemor. Não podia sair do concelho sem revelar onde pretendia ir e a duração da ausência. E, como se isto não bastasse, o controlo continuava e era frequente, isto é, batiam-me à porta para verem se eu estava presente. Estávamos em finais de 1969. Vivia então em casa de minha mãe e foi nessa altura que aproveitei para fazer o exame da 4ª classe com o Professor Jaime Martins.”
            
E enquanto tudo isto se passava, como era o seu casamento?
            
“Estivemos 7 anos sem nos vermos. Quando eu estava presa, o António Joaquim não podia ir ver-me porque corria o risco de ser apanhado. E o mesmo acontecia quando as circunstâncias eram ao contrário.”
            
O seu marido também esteve preso por várias vezes…
           
“O meu António, pelos mesmos motivos que eu, esteve preso pela Pide por três períodos. O primeiro, em 1947, durante seis meses, acusado de agitador e de reclamar melhores condições de trabalho. Depois, em 1960, por ser funcionário do PCP, foi condenado a 5 anos e meio, com medidas de segurança. Terminado o tempo da pena, a Pide apreciava o comportamento do preso e se considerasse que este não tinha alterado a sua convicção política, prolongava o prazo por mais três anos. Isto é: nunca se sabia quando é que iria sair. Mas, aqui, não cumpriu a pena até ao fim. Estava em Caxias e um dia conseguiu fugir, com mais sete companheiros, durante um recreio e, curiosamente, num carro que lá estava guardado, marca Chrysler, à prova de bala, que havia sido oferecido por Hitler a Oliveira Salazar. Mas passados dez anos voltou a ser preso, agora em Peniche, mas um ano e meio depois o 25 de Abril devolveu-o à liberdade.”


           
E que voltas foi dando o seu filho?
           
“Já com 3 anos, o meu filho ficou com os avós. Foi crescendo enquanto nós cumpríamos a nossa missão. Tinha 18 anos tratou dos documentos para se submeter à inspecção militar, mas não chegou a ir à tropa porque, para evitar ir para as colónias, fugiu para França, onde fez vida e ainda se encontra. Visita-nos quando pode”
            
Mas enquanto o seu filho era um jovem, via-o com frequência?
           
“Depois de ter os 3 anos, só vi o meu filho já com 7 anos e depois com 13, quando me foi ver à cadeia. Foi muito difícil.”
          
Está, juntamente com o seu marido, a viver no “Lar” do Abrigo há muito pouco tempo. O que os levou a dar esse passo?
            
“Eu tenho 84 anos, o meu marido tem 90, e a saúde já vai faltando. Não tenho família da minha parte e a família que ainda existe do meu marido também não está em condições de nos prestar qualquer auxílio. Vivíamos sozinhos e, como o meu filho veio de França para nos ajudar a resolver estes assuntos, decidimos optar por esta solução que nos pareceu ser a única possível.”
            

Desejamos ao casal um futuro com a saúde possível e com a paz que bem merecem.