segunda-feira, 22 de abril de 2013

OS NOSSOS UTENTES



LEOPOLDO JOSÉ GOMES
Um cidadão exemplar



A nossa figura deste mês é de tal forma uma inesgotável fonte de informação, de conhecimento e de recordações que se torna impossível desvendar e descrever neste espaço obrigatoriamente limitado.

Corria o mês de Dezembro de 1926 quando Montemor o viu nascer, tendo depois acompanhado o seu crescimento e toda a sua vida até hoje. Pautando desde tenra idade a sua conduta pelos elevados padrões de uma vida simples e honesta, que haveria de o caracterizar ao longo da vida, o nosso amigo LEOPOLDO JOSÉ GOMES é, sem receio de desmentido, porque o conheço e sou seu amigo há mais de cinquenta anos, um homem bom que nunca precisou de se colocar em bicos de pés para conquistar, com naturalidade, a admiração e o carinho que lhe dispensam todos quantos têm tido o privilégio de com ele conviver de perto.
Gráfico de profissão, outros e variados interesses lhe despertaram o sentido de cidadania, dando o melhor do seu esforço no sentido de contribuir para obras de solidariedade social. Esteve quase sempre ligado a iniciativas de índole cultural que durante muitos anos se realizaram em Montemor, terra que foi o seu berço e que continua a adorar.

O Leopoldo foi músico, amador teatral (e ainda é, quando aqui no Abrigo dele necessitam), continua a manter uma colaboração regular, iniciada há cerca de sessenta anos, no jornal “O Montemorense” e manifesta-se disponível para colaborar em qualquer actividade em que possa ser útil.

Mas deixemo-lo então sintetizar a sua história:

Tenho 86 anos e sou o mais velho de nove irmãos, felizmente ainda todos vivos. Comecei a trabalhar com 13 anos na Tipografia Santos, ali na Rua de D. Vasco, onde se compunha o jornal “A Folha do Sul”, fundado em Agosto de 1897. Estive aqui mais de um ano e, curiosamente, era onde me encontrava quando foi o ciclone, em 15 de Fevereiro de 1941. Numa época de Verão, incluído num grupo de outros rapazes, andei pelas ruas a raspar ervas, por conta da Câmara. Ganhava não sei se quinze se vinte e cinco tostões por dia.”

Começou então uma nova fase da sua vida: “O meu pai faleceu quando eu tinha 17 anos. E se já antes não era fácil governar uma casa numerosa, mais dificuldades surgiram a partir daí. E, como irmão mais velho, recairam sobre mim acrescidas responsabilidades. Logo depois comecei a trabalhar na Tipografia União, onde estive 56 anos, primeiro como aprendiz e mais tarde como gerente. Nesses meus primeiros tempos de gráfico, a oficina situava-se na que é hoje a Rua Capitão Pires da Cruz, perto do Rádio Cine. Era ali que se compunha a primeira edição de “O Montemorense”, semanário fundado pelo proprietário da tipografia, Tomé Adelino Vidigal, e por Jaime Ernesto dos Reis. Estava então longe de imaginar que, anos mais tarde, Tomé Adelino Vidigal, meu patrão, viria a ser também meu sogro.”

A Música …


Alguns anos depois a tipografia mudou-se para as novas instalações na Rua do Pedrão. E prossegue a narrativa:

“Não foram fáceis aqueles tempos, pelo que havia que deitar mão a outros trabalhos que me proporcionassem mais alguns proveitos a fim de ajudar a economia doméstica. Fui, por exemplo, bilheteiro do Rádio Cine, onde mais tarde também haveria de ser gerente, e músico de uma orquestra que formámos na Carlista e com a qual íamos ganhando algum dinheirito, fazendo bailes por aqui e por ali.”

A propósito e na sequência da conversa revelou: “Fui durante vários anos músico da Banda Filarmónica da Sociedade Carlista e, curiosamente, fiz a minha estreia num concerto realizado em Lisboa num pavilhão da “Exposição do Mundo Português”, em Outubro de 1940, sob a batuta do maestro Pires da Cruz.”

Mas a sua actividade musical não se ficou por aqui: “Integrei o Conjunto “Pinto de Sá”, que gozava de um grande prestígio na época. Tocava saxofone e bateria e dele faziam ainda parte, para além do maestro António Pinto de Sá ao piano, o Abílio Delca, que foi um dos melhores músicos que conheci, e que passou, por diversas circunstâncias, ao lado de uma grande carreira internacional. Tocava indiferentemente viola, saxofone e bateria. Faziam ainda parte o acordeonista Joaquim Raposo, o Francisco Salgueiro no violino e contra-baixo e, ainda, o Manuel Justino Ferreira, guitarrista, apresentador, animador e vocalista.


… O Teatro …


O teatro amador também marcou indelevelmente a vida do Leopoldo desde a juventude: “Comecei a representar na Carlista, tendo como encenadores, entre outros, Francisco José Mareco e José Maria Barros. Um dos grandes êxitos, de que ainda hoje me recordo, e de que me orgulho de ter feito parte, foi a peça “Os Vizinhos do Rés-do-Chão”, interpretada também por Francisco Mareco, Alexandre Figueiredo, Emílio Macedo, Manuel Justino, Gracinda Coimbra, Angelina Várzea da Conceição, Estela Gomes, Maria Eugénia Rosado, Joana Maria Caeiro, Maria Custódia Gião e Cristina Maria Rosado. Para além de termos actuado inclusivamente no Rádio Cine, levámos este espectáculo a outras localidades da região.
Em 1950 estreámos “O Perdão”, da autoria do Manuel Justino Ferreira.

Mas não ficou por aqui: “Houve uma fase, também muito dinâmica, dos espectáculos teatrais a favor do Hospital Infantil de S. João de Deus, encenados pelos saudosos Padre David e Prof. Manuel Balbino. Percorremos, com diversos espectáculos, várias localidades alentejanas.

Veio depois um período fecundo do Grupo de Teatro da Pedrista, do qual, naturalmente, também fiz parte. Relembro alguns: No Carnaval de 1955 representámos a opereta “A Tassca”, escrita por Carlos Cebola e Manuel Justino (Karl Osce Bollah e Emanué Justinovsky), antecedida de um “Auto de Carnaval”. Estive em palco, nas duas peças, com excelentes colegas: Ernesto Pinto Ângelo, Abílio Delca, Luís Mira, Emílio Macedo, Francisco Santos e Martinho Delca. Sobretudo com os excelentes textos do Prof. Carlos Cebola e encenações do Prof. Balbino, conhecemos depois muitos outros sucessos: “Três Tardes de Três Outonos”, “A Cigarra e a Formiga”, ”João Cidade” e  a opereta “O Barbeiro de… Patilha” foram alguns dos títulos que permitiram actuações brilhantes a artistas que nesta época áurea pontificavam naquela colectividade montemorense: Abílio Delca, José Gastão Fialho Ferro, Manuel Justino, Emílio Macedo, Rosa Maria Marques e muitos outros. Tive a felicidade de fazer parte deste núcleo que animava os serões culturais de então.”


… e o que mais adiante se verá !


De repente, o nosso amigo Leopoldo ainda estendeu as suas recordações a outra faceta da sua actividade cultural e artística:

Em 1947 integrei o grupo fundador da Biblioteca da Carlista, obra que na época constituiu um marco importante na vida da colectividade.

No início dos anos 50, realizaram-se umas marchas, por ocasião dos Santos Populares. Eram quatro os conjuntos que desfilaram pelas ruas da então vila e prolongaram as suas actuações no Jardim Público, que se encheu de uma multidão entusiasta que adquiriu com agrado os seus ingressos, até porque a receira revertia a favor do Hospital Infantil de S. João de Deus. Os bilhetes, depositados em caixas preparadas para o efeito, serviam ainda para eleger a melhor marcha. Não interessa quem ganhou, porque todas foram antecipadamente vencedoras. Eram elas: “Marcha de S. João de Deus”, ensaiada pelo Padre David; “Marcha do Castelo”, preparada pelo Prof. Manuel Balbino; “Marcha de S. Mateus”, da responsabilidade de Manuel Justino; “ Marcha da Rua Nova”,  que eu próprio orientei.”

Mas se quem nos lê pensa que ficam por aqui as actividades do nosso Leopoldo, desengane-se: “Na década de 50 fui correspondente da secção desportiva do jornal nacional “O Século”, escrevendo crónicas e outros elementos respeitantes ao Grupo União Sport nas épocas áureas em que esteve a um passo de subir à primeira divisão nacional.”

Mais: “Fiz parte da equipa inicial da “Rádio Almansor”, que começou com um estúdio junto à ermida da Sra. da Visitação e depois passou para a sede do União. Tive sob a minha direcção e responsabilidade o programa “Montemor é Praça Cheia” que, como o nome sugere, abordava temas ligados à tauromaquia.”

Estou certo de que se dispuséssemos de mais espaço, a conversa não teria ainda ficado por aqui. Dizia-nos o Leopoldo, quando nos sentámos, que pouco teria a dizer porque a sua memória já o atraiçoava. O que está escrito desmente os seus receios. Tudo o que acabaram de ler foi-nos relatado sem preparação prévia e sem recurso a apontamentos de qualquer género. Afinal, que boa memória que ele tem!

O Leopoldo Gomes está no Abrigo, como utente do “Centro de Dia”, desde Novembro de 2012. Diz que é bem tratado, que não tem nada a apontar, que para além de respeitar os horários das refeições tem absoluta autonomia, podendo sair para dar os seus passeios sempre que o desejar. Confessa no entanto, com uma indisfarçável ponta de tristeza, que se sente só. Falta-lhe a companhia e o convívio dos seus amigos de sempre. É natural, ainda que tenha de ter presente que, infelizmente, alguns deles não voltam mais.
 
Este será, talvez, o problema maior de quem está nas mesmas condições. De entre tanta gente que se encontra num mesmo espaço físico, quer seja neste ou noutro local qualquer, são poucos os que encontram alguém com quem partilhar os mesmos interesses, os mesmos ideais, semelhantes experiências de vida, porque cada pessoa tem a sua personalidade, a sua sensibilidade, fez o seu percurso, conheceu outras realidades, viveu durante décadas num círculo muito próprio e pessoal, num mundo que foi construindo e consolidando à sua maneira e agora vê-se perante um ambiente não hostil mas simplesmente diferente.

Mas o Leopoldo, com a ajuda dos seus familiares e dos muitos amigos que ainda possui, não pode deixar-se abater. Isso é próprio dos fracos e ele já demonstrou que consegue ir buscar forças mesmo nas situações mais adversas. E nos últimos anos conheceu duas bem difíceis.

Vamos, Leopoldo, porque mesmo aqui, no Abrigo, ainda terá oportunidades para desempenhar os papéis principais.

Um abraço de amizade.