segunda-feira, 29 de agosto de 2016

OS NOSSOS UTENTES

VITÓRIA MARIA LOPES SERRA


É uma das últimas “aquisições” do Centro de Dia.
Diz-se feliz pela opção que tomou e confessa que veio encontrar um ambiente acolhedor e, pelo menos por enquanto, só pode dizer bem de toda a equipa.
Apresentemo-la então:

“Chamo-me Vitória Maria Lopes Serra, completei 83 anos em Fevereiro passado e sou viúva há 9 anos de João Morraceira. Tenho uma filha – Mila – e dois netos – Mário e Daniela.”

Mas comecemos pelo princípio de tudo:

“Nasci em Lavre, onde vivi até aos 14 anos. Andei à escola mas não concluí a 4ª classe do ensino primário. Mas sei ler e quanto a escrever, lá me vou remediando. Aos 14 anos fui para Coruche como criada doméstica de uma filha do cavaleiro Simão da Veiga. Quando tinha 18 anos, um irmão da minha patroa, recém-casado e que viria a ser o pai do também cavaleiro tauromáquico Luís Miguel da Veiga, pediu à irmã que me dispensasse, a fim de ficar ao serviço da sua casa, aqui em Montemor. Porque me sentia bem, vim um pouco contrariada mas, passado pouco tempo, habituei-me e acabei por gostar também na nova família que, aliás, me tratou igualmente de uma maneira impecável. Aqui estive, de forma permanente, durante cinco anos, tendo visto nascer o Luís Miguel e os restantes irmãos.”

Por esta altura, já com 23 anos, certamente era chegado o momento de pensar em casamento.

“Isso mesmo. Eu já conhecia o João, que estava empregado na casa Mouzinho. E foi exactamente com essa idade de 23 anos que nos casámos, pelo que a partir da

í continuei a ir trabalhar a casa do sr. Luís Fernando da Veiga mas apenas dois dias por semana.”

O casamento originou, como é natural, alteração de morada…

“Quando nos casámos fomos residir para uma casa perto do que é hoje o Hospital de S. João de Deus. Ficámos aqui algum tempo e pouco depois fomos morar para a Rua da Estação, onde ainda hoje tenho casa.”

A nova situação alterou também os seus horários de trabalho…

“Sim. Já não podia estar permanentemente ao serviço de qualquer família. Assim, depois de casada, e mesmo após enviuvar, continuei sempre a trabalhar “a dias” em várias casas e tenho a honra de poder dizer que fiquei amiga de todas essas pessoas, porque em todo o lado fui bem tratada.”

Mas para além disso, e dada a sua reconhecida competência para a cozinha e dedo especial para os doces, ainda era frequentemente chamada para outras situações…

“É verdade. Eu nem sei quantos casamentos, baptizados e outras festas eu fiz ao longo da minha vida. Só tenho gratas recordações.”

Sempre muito ligada a Lavre, por laços familiares e sentimentais, a D. Vitória recorda:

“Tenho realmente por Lavre um carinho muito especial, porque passei lá a minha infância, porque deixei muitas amizades e porque tinha ali a minha família. Recordo o meu tio João Domingos Serra, trabalhador agrícola, cuja figura inspirou uma das personagens que José Saramago criou em “Levantado do Chão”. Também a minha madrinha e grande mulher chamada Maria Saraiva, que nos tempos difíceis matou a fome a tanta gente, ficou imortalizada naquele mesmo livro como “Maria Graniza”.

E desfiando o rosário de recordações, evoca então uma das passagens mais dramáticas por que passou:

“Quando tinha pouco mais de dois anos, morávamos então num monte nos arredores de Lavre, a minha mãe abandonou o lar, levando consigo apenas o meu irmão que teria um ano. Quando vi que a minha mãe ia a sair, sem ter, evidentemente, a noção de que se tratava de um abandono, tentei ir atrás dela pela estrada que liga Lavre a Vendas Novas. Fui andando num grande pranto até que, em determinada altura fui vencida pelo cansaço e por ali fiquei à beira da estrada, nas proximidades do Polígono, até ser encontrada por militares que andavam em exercícios e me transportaram para o quartel em Vendas Novas. Como não poderia ficar ali, o comandante levou-me para sua casa, até ser encontrada uma solução. O meu pai, já tendo dado pela minha falta e muito aflito, teve conhecimento de que uma criança tinha sido achada e levada para o quartel. Foi lá imediatamente e dali foi encaminhado para a casa do comandante. Confirmada a paternidade, lá me levou de regresso a casa.
Curiosamente, o meu pai nunca me contou nada disto. Só muitos anos mais tarde é que, por mero acaso, vim a saber de todos estes pormenores por intermédio de uma senhora que à época era nossa vizinha e me revelou o que acabo de relatar.”

Parece, na verdade, um episódio de novela. Mas, se bem que com uma vida bem preenchida, a D. Vitória também passou por maus bocados no que à saúde diz respeito:

“O pior de tudo foi um grave acidente de automóvel que sofri perto de Coruche e me atirou, primeiro para o hospital de Santarém, e depois para o hospital de Évora, num total de oito meses de internamento e vinte intervenções cirúrgicas.”

Mas como mulher de coragem que é, ultrapassou esses problemas e continuou a fazer pela vida. Hoje está no Centro de Dia do Abrigo. Por quê ?

“Vivia praticamente em casa da minha filha, onde estou completamente à vontade e era tratada como sempre fui, até porque tenho um genro que é tão bom como se fosse meu filho. Porém, como a minha filha trabalha como cozinheira e está praticamente todo o dia ausente, e eu não tenho temperamento para andar da casa desta para a casa daquela, passava os dias sozinha. Então, e porque desde há muitos anos que tinha esta intenção, resolvi inscrever-me no “Centro de Dia”. E aqui estou desde Julho. Sinto-me imensamente satisfeita. Para ocupar o meu tempo vou ao ginásio com frequência e ajudo a descascar batatas, a arranjar feijão-verde e noutras tarefas semelhantes. Agora, por exemplo, estou a fazer pegas para tachos e panelas a fim de serem vendidas, para a Feira da Luz, no pavilhão do Abrigo.”

Mais: por sugestão nossa, já foi ter com o maestro André para vir a fazer parte do coral “Cant’Abrigo”. Na próxima segunda-feira, às 10 horas, lá estará para o primeiro ensaio.

Um beijo, D. Vitória.