terça-feira, 23 de dezembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

MANOEL  ELISEU

Com o final do ano a poucos dias de distância, entrevistámos um utente do Abrigo que, curiosamente, faz anos exactamente neste mês de Dezembro. Nasceu em 1920 e, portanto, acabou de fazer 94 primaveras, ainda que nem tudo na sua vida tenham sido rosas. Também lhe trouxeram alguns espinhos.
Foi casado durante 68 anos com Leonarda Maria, que veio a falecer em Fevereiro de 2011. Tem dois filhos, um com 71 anos e outro com 69.
Vamos saber alguns pormenores da sua história de vida:
“Nasci no Ciborro, lá fui criado e sempre vivi, com excepção de uns anos que estive emigrado em França e de uns outros em que trabalhei em Alhandra. Com a idade de 7 anos ingressei na primeira classe da instrução primária, vivia então na aldeia. Entrei no dia 7 de Outubro, mas nem cheguei a aquecer o lugar porque entretanto fomos viver para a herdade da Zambujeira, onde o meu pai era rendeiro. Um dia, ele foi à feira de Borba e comprou lá uma vara de cinquenta porcos para engorda. E aqui começaram os meus problemas escolares. Para que o meu pai pudesse tratar de todos os outros assuntos, pôs-me a mim, provisoriamente, a guardar os animais por breves períodos. Mas depressa o provisório passou a definitivo e, passados dois meses, já não havia escola. Para além disso, os meus pais tiveram 13 filhos, ao mesmo tempo estiveram vivos onze, e havia que dar comida àquelas bocas,  e todos os braços eram poucos para trabalhar. Estivemos nesta propriedade durante 33 anos e a família sempre ali trabalhou por conta do meu próprio pai.”

A adolescência já aí estava e, com ela…
“Com cerca de 19 anos começaram os namoricos. O primeiro namoro não resultou, mas logo na segunda tentativa conheci aquela que viria a ser a minha mulher. Mas, mesmo assim, o namoro teve fases que nem sempre foram fáceis, sobretudo enquanto estive na vida militar. Como não sabia ler nem escrever, as cartas que a namorada me enviava eram lidas e respondidas por um camarada de armas.”

Entretanto a tropa acabou e…
Pouco tempo depois de regressar à vida civil decidimos casar. Eu tinha 22 anos e a Leonarda tinha 16. Em Agosto de 1943, quando nasceu o primeiro filho, tinha feito os 17 anos em Maio.”

E trabalhou sempre por conta do seu pai ?
“Não. Em certo momento tornei-me independente e meti-me a seareiro por conta própria, ainda que na mesma propriedade da Zambujeira. Porém, como a renda que pagava era muito cara, isto é, um terço ou um quarto do valor da colheita, vi-me forçado a desistir ao fim de três anos. E a partir daqui fui obrigado a trabalhar no campo, nas mais variadas tarefas, por conta de outros patrões.”

Mas deu outras voltas …
Em 1964 tentei a minha sorte como emigrante, em França. Estive lá sempre sem a minha mulher e só vinha a casa uma vez por ano. Trabalhei duramente, sempre na agricultura, e sacrifiquei-me muito porque a minha ideia era a de amealhar o suficiente para comprar ou mandar construir uma casinha. Quando regressei, em 1968, tinha conseguido alcançar esse objectivo. E o regresso nessa altura foi apenas porque tinha cá os meus pais e os meus sogros e não podia abandoná-los.”

Mas ainda não ficou por aqui…
“Claro que não. Algum tempo depois, um meu irmão que  era encarregado de uma quinta, em Alhandra, convidou-me para ir para lá trabalhar com ele. E fui. De seguida, ainda em Alhandra, estive empregado uns quinze anos em diversas fábricas onde eram produzidos ou manuseados pesticidas e outros produtos com componentes químicas tóxicas, o que me arruinou a saúde e me obrigou a reformar-me por invalidez com 63 anos.”

Depois de ter vindo de França, nunca pensou regressar lá?
“Curiosamente, em 1975 fui chamado pelo meu antigo patrão em França, convidando-me a regressar. Garantia-me emprego não só para mim, como também para a minha mulher e para o meu filho. Estava na altura em Alhandra a trabalhar com o meu irmão e não aceitei.”

E como foi a sua vida depois de reformado?
“Fui sempre mexendo, mas algum tempo depois enviuvei e fiquei a viver com o meu filho mais novo que, com graves problemas de saúde, eu não podia abandonar. Porém, o meu filho mais velho, que é emigrante na Alemanha há mais de quarenta anos, regressou provisoriamente a Portugal e ao Ciborro para orientar o irmão e a casa onde vive. A minha saúde também se ia degradando e eu não queria ser mais  um peso para o meu filho. E assim, não tive outra alternativa senão a de pedir ajuda ao Abrigo, onde me encontro como residente há perto de dois meses.


Chegados ao fim da nossa conversa, aproveitamos a oportunidade para endereçar a todos os Utentes, Funcionários(as), Colaboradores(as), Voluntários(as), Membros dos Corpos Sociais e Leitores desta página, UM NATAL FELIZ e um NOVO ANO sobretudo com MUITA SAÚDE !!!


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A ESTRELA DE NATAL BRILHOU NO ABRIGO

E a tradição vai-se mantendo ano após ano.

No dia 16 de Dezembro, a Festa de Natal aconteceu, com a estrela anunciadora do nascimento de Jesus a brilhar no Abrigo dos Velhos Trabalhadores de Montemor-o-Novo.


Com uma versão absolutamente livre do conhecido conto tradicional, que relata a história de “A Cigarra e a Formiga”, adaptada por José Manuel Brejo, que também dirigiu e encenou a peça, contando com a preciosa colaboração de Céu Mestrinho, a sala encheu-se para ver os artistas. E estes deram o seu melhor, na expectativa de se encontrar entre a assistência algum agente artístico que propusesse um contrato chorudo.
Mas vamos dar conta das personagens e respectivos intérpretes:

Formiga – Leopoldo Gomes
Cigarra – Salvador Boleto
Mãe da Formiga – Otília Brejo
Mãe da Cigarra – Angelina Merendeira
Criado da Cigarra – Joaquim Martinho dos Santos
Outras Formigas – José Manuel Brejo, César Arraiolos e Narcisa Ferreira
Dona de Casa que persegue as formigas – Albina da Visitação
Guarda – Francisco Tira-Picos
Ofertantes:
       Joaquim Martins – 1 farinheira
      José Grulha: 1 pão de quilo
      António Lopes: 1 saco de trigo
      Angélica Ferro: 2 mantas
Estrela – Luísa Aldinhas
Virgem Maria – Rosa Cigarro
S. José – Manuel João Cigarro
Narradoras – Céu Mestrinho, Basilissa Pernas e Rosária Baixo


 Muito aplaudido, todo o elenco artístico agradeceu e deu lugar ao “Coral Cant’Abrigo”, sob a direcção do maestro André Banha, que brindou a assistência com um tema alusivo ao Natal.


Depois foi a distribuição das prendas, o lanche e no final um bailarico, onde alguns pares ainda puderam dar ao pé.

… E O ÊXITO REPETIU-SE

Mal seria que um espectáculo com aquela envergadura se limitasse a uma única sessão. Assim, logo dois dias depois subiu de novo à cena “A Cigarra e a Formiga”, agora no ginásio do Abrigo, cujo espaço permitia receber um maior número de  espectadores.
E foi uma sala esgotada que teve a sua oportunidade de apreciar o trabalho das actrizes e dos actores, onde pontifica o experiente Leopoldo. E para gáudio da assistência, a peça até meteu efeitos especiais.
No final da representação, muito ovacionada, também o “Coral Cant’Abrigo” dirigido por André Banha, contemplou os presentes com duas canções tradicionais e um tema natalício. Voltaram a ouvir-se fartos aplausos.


E assim terminou em beleza a manhã do dia 18 de Dezembro.
Parabéns a todos os intervenientes.
Na plateia, para além de gente da casa, podiam ver-se utentes do Centro Social e Paroquial do Ciborro, da Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Novo, da Casa João Cidade e da Cercimor a quem, conforme informações recolhidas no final, o espectáculo agradou.

O Abrigo agradece a vossa presença e deseja a todos um Feliz Natal e que o Novo Ano nos traga muita saúde.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

ETELVINA MARIA PREGUIÇA

Com 80 anos bem conservados, a nossa entrevistada deste mês, lúcida e com boa memória, faz questão de se apresentar:
 “Nasci em 1934 e, para minha tristeza, enviuvei há cerca de dez anos. Tenho um filho com 55 anos, electricista, que está actualmente a trabalhar na Suiça, por conta da sua entidade patronal que é portuguesa e tem sede em Setúbal.

Mas vamos começar pelo princípio, que é como devem começar todas as histórias, incluindo as de vida:
 “Vim ao mundo no Monte da Anta que, para quem não sabe, fica entre Escoural e S. Brissos. Éramos cinco irmãos (três rapazes e duas raparigas), de que só restam três. Tive uma infância normal para a época e para quem vivia no meio em que fui criada.”

Apesar de tudo, foi-lhe dada a possibilidade de frequentar a Escola:
Com 6 anos entrei para a Primária, em S. Brissos, num edifício adaptado para esse fim. Aqui completei a primeira classe. Entretanto, o meu pai, que era pastor, teve de se deslocar para o Monte de Monfurado e para aqui mudámos a nossa residência. Então, e mesmo que longe do Escoural,  porque íamos a pé para a Escola, acabei por concluir também a segunda e a terceira classes.”

E a 4ª classe da instrução primária, que era, para a época, o fim da linha para quem não tinha possibilidades económicas para entrar num colégio particular ou no liceu?
 “Por motivos que ainda hoje desconheço,  fui a única escolhida, dos meus lados, para ir frequentar a 4ª classe. Ora, como eu não podia ir sozinha, a pé, para uma tão longa distância e com o caminho a fazer-se, em determinados meses do ano, já de noite, fui obrigada a desistir. Nos dois anos anteriores íamos em grupos que se reuniam vindos de montes ali em volta. Depois, uns porque já tinham concluído a escola, outros porque desistiam, acabava por ser só eu a deslocar-me para o Escoural, o que se tornava impossível.”

E então, acabada a escola …
 “Dados os estudos por terminados, devido às circunstâncias que já referi, fiquei em casa a tomar conta de um irmão mais novo, para que a minha mãe pudesse ir trabalhar.”

Mas, com onze anos, surgiu o que era normal:
 “Foi na verdade com essa idade, que comecei a lida agrícola. Calhou ser a apanhar azeitona que me estreei no mundo do trabalho. E já não parei, tendo feito os mais diversos serviços da faina do campo.”

Como é inevitável, por volta dos 16 anos o coração despertou para o amor e começou a namorar com Jacinto Manuel Gião, que em 1958, tinha a noiva 24 anos, haveria de ser o seu marido para toda a vida.
 “Esta nova situação provocou naturalmente mudança de residência. Fomos morar para o Monte das Caeiras, ali para a zona de Monfurado, até finais do ano 2000, altura em que nos mudámos para a Courela da Pintada. Enquanto a saúde lhe permitiu, o meu marido trabalhava na Quinta das Caeiras onde o meu sogro – António Gião – era rendeiro e ao mesmo tempo explorava um estabelecimento misto, no monte com o mesmo nome.”

Os problemas mais graves estavam para vir, como nos conta:
 “Os problemas resultantes da idade, mas sobretudo da doença,  começaram a surgir. O meu marido teve de reformar-se por incapacidade. Com os anos, o seu estado de saúde foi-se agravando e, então, em Fevereiro de 2005, o meu marido, que há 14 anos vivia numa cadeira de rodas, acabou por falecer.”

E a D. Etelvina viu-se sozinha…
 “Sim, infelizmente fique só e não tive outro remédio senão o de pedir a ajuda do Abrigo, onde me encontro a usufruir da vertente “Centro de Dia” desde Janeiro deste ano. Vão buscar-me e levar-me a casa todos dos dias e, até poder, gostava de não deixar a minha casa.”

Mas propusemos à D. Etelvina terminar a nossa conversa de uma forma mais alegre. E ela concordou.
 “Quando era nova, é claro que gostava de me divertir, mas não me era fácil. A não ser pelo Carnaval ou por uma ou outra ocasião, pouco saía. A minha mãe não era dada a festas e, como compreende, eu sozinha não podia ir. O meu irmão mais velho, que era quem me poderia acompanhar, era pastor e, por isso, tinha a sua vida muito complicada, não podendo dispor de si. Por isso, como vê, não tive uma juventude muito festiva.”

Apesar de tudo, ainda se referiu às festas de Carnaval, com as suas brincadeiras tradicionais:
 “Nas Caeiras, onde naquele tempo viviam muitas famílias, uma dúzia ou mais, todas com vários filhos, brincava-se pelo Carnaval e era frequente organizar-se a “Queima da Boneca”, que servia de pretexto para se lerem versos alusivos às pessoas dali, especialmente às raparigas e aos rapazes.”

Primeiro disse que não era capaz, mas depois puxou pela memória e ainda se recordou destas quadras:

Comadre, que vais ser queimada,
A quem deixas o teu véu ?
São pr’á menina Deolinda
Que parece um anjo do céu.

Comadre, que vais ser queimada,
P’ra quem são as tuas meias ?
Ficam para a menina Rosa
Que até não é das mais feias.


Obrigado e felicidades, D. Etelvina.