quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

ETELVINA MARIA PREGUIÇA

Com 80 anos bem conservados, a nossa entrevistada deste mês, lúcida e com boa memória, faz questão de se apresentar:
 “Nasci em 1934 e, para minha tristeza, enviuvei há cerca de dez anos. Tenho um filho com 55 anos, electricista, que está actualmente a trabalhar na Suiça, por conta da sua entidade patronal que é portuguesa e tem sede em Setúbal.

Mas vamos começar pelo princípio, que é como devem começar todas as histórias, incluindo as de vida:
 “Vim ao mundo no Monte da Anta que, para quem não sabe, fica entre Escoural e S. Brissos. Éramos cinco irmãos (três rapazes e duas raparigas), de que só restam três. Tive uma infância normal para a época e para quem vivia no meio em que fui criada.”

Apesar de tudo, foi-lhe dada a possibilidade de frequentar a Escola:
Com 6 anos entrei para a Primária, em S. Brissos, num edifício adaptado para esse fim. Aqui completei a primeira classe. Entretanto, o meu pai, que era pastor, teve de se deslocar para o Monte de Monfurado e para aqui mudámos a nossa residência. Então, e mesmo que longe do Escoural,  porque íamos a pé para a Escola, acabei por concluir também a segunda e a terceira classes.”

E a 4ª classe da instrução primária, que era, para a época, o fim da linha para quem não tinha possibilidades económicas para entrar num colégio particular ou no liceu?
 “Por motivos que ainda hoje desconheço,  fui a única escolhida, dos meus lados, para ir frequentar a 4ª classe. Ora, como eu não podia ir sozinha, a pé, para uma tão longa distância e com o caminho a fazer-se, em determinados meses do ano, já de noite, fui obrigada a desistir. Nos dois anos anteriores íamos em grupos que se reuniam vindos de montes ali em volta. Depois, uns porque já tinham concluído a escola, outros porque desistiam, acabava por ser só eu a deslocar-me para o Escoural, o que se tornava impossível.”

E então, acabada a escola …
 “Dados os estudos por terminados, devido às circunstâncias que já referi, fiquei em casa a tomar conta de um irmão mais novo, para que a minha mãe pudesse ir trabalhar.”

Mas, com onze anos, surgiu o que era normal:
 “Foi na verdade com essa idade, que comecei a lida agrícola. Calhou ser a apanhar azeitona que me estreei no mundo do trabalho. E já não parei, tendo feito os mais diversos serviços da faina do campo.”

Como é inevitável, por volta dos 16 anos o coração despertou para o amor e começou a namorar com Jacinto Manuel Gião, que em 1958, tinha a noiva 24 anos, haveria de ser o seu marido para toda a vida.
 “Esta nova situação provocou naturalmente mudança de residência. Fomos morar para o Monte das Caeiras, ali para a zona de Monfurado, até finais do ano 2000, altura em que nos mudámos para a Courela da Pintada. Enquanto a saúde lhe permitiu, o meu marido trabalhava na Quinta das Caeiras onde o meu sogro – António Gião – era rendeiro e ao mesmo tempo explorava um estabelecimento misto, no monte com o mesmo nome.”

Os problemas mais graves estavam para vir, como nos conta:
 “Os problemas resultantes da idade, mas sobretudo da doença,  começaram a surgir. O meu marido teve de reformar-se por incapacidade. Com os anos, o seu estado de saúde foi-se agravando e, então, em Fevereiro de 2005, o meu marido, que há 14 anos vivia numa cadeira de rodas, acabou por falecer.”

E a D. Etelvina viu-se sozinha…
 “Sim, infelizmente fique só e não tive outro remédio senão o de pedir a ajuda do Abrigo, onde me encontro a usufruir da vertente “Centro de Dia” desde Janeiro deste ano. Vão buscar-me e levar-me a casa todos dos dias e, até poder, gostava de não deixar a minha casa.”

Mas propusemos à D. Etelvina terminar a nossa conversa de uma forma mais alegre. E ela concordou.
 “Quando era nova, é claro que gostava de me divertir, mas não me era fácil. A não ser pelo Carnaval ou por uma ou outra ocasião, pouco saía. A minha mãe não era dada a festas e, como compreende, eu sozinha não podia ir. O meu irmão mais velho, que era quem me poderia acompanhar, era pastor e, por isso, tinha a sua vida muito complicada, não podendo dispor de si. Por isso, como vê, não tive uma juventude muito festiva.”

Apesar de tudo, ainda se referiu às festas de Carnaval, com as suas brincadeiras tradicionais:
 “Nas Caeiras, onde naquele tempo viviam muitas famílias, uma dúzia ou mais, todas com vários filhos, brincava-se pelo Carnaval e era frequente organizar-se a “Queima da Boneca”, que servia de pretexto para se lerem versos alusivos às pessoas dali, especialmente às raparigas e aos rapazes.”

Primeiro disse que não era capaz, mas depois puxou pela memória e ainda se recordou destas quadras:

Comadre, que vais ser queimada,
A quem deixas o teu véu ?
São pr’á menina Deolinda
Que parece um anjo do céu.

Comadre, que vais ser queimada,
P’ra quem são as tuas meias ?
Ficam para a menina Rosa
Que até não é das mais feias.


Obrigado e felicidades, D. Etelvina.