segunda-feira, 30 de novembro de 2015

OS NOSSOS UTENTES

 MANUEL JOÃO CIGARRO

O nosso entrevistado deste mês começou por surpreender-nos logo no início da conversa que tivemos no dia 23 de Novembro. Quando lhe perguntámos a idade, a sua resposta veio pronta e completa : “Ainda que os documentos oficiais registem uma data posterior, a verdade é que nasci no dia 2 de Julho de 1922, pelo que tenho 93 anos, 4 meses e 21 dias.”


E a partir daqui foi um desfiar de recordações, numa manifestação da excelente memória que possui.

“Nasci na Rua de Santo António nº 14. Quando tinha nove anos, por dificuldades financeiras inclusivamente para se pagar a renda da casa, a minha mãe, eu e os meus outros três irmãos - José Lourenço, Filipe e Maria Jacinta - começámos a ir dormir na casa dos Repolhos, família que tinha uma mercearia na Rua Direita e que nos acolheu. Apenas o meu pai nunca lá dormiu porque a sua actividade como guardador de gado o obrigava a ficar nos locais onde trabalhava.”

E mesmo residindo na então vila, não freque

ntava a Escola ?

“Como era habitual, quando fiz sete anos fui para a Escola, na Rua de Aviz, mas só lá andei pouco mais de três meses”

Mas abandonou porquê ?

“A minha professora era muita áspera e tinha uma mania que me desagradava. Eu explico: quando ela fazia uma qualquer pergunta a um aluno, se este não soubesse a resposta, perguntava a outro. Se este último respondesse acertadamente, mandava-o dar umas reguadas no primeiro. Um dia perguntou qualquer coisa a uma miúda que não sabia a resposta e depois interrogou-me a mim. Como eu respondesse certo, deu-me ordem para que desse meia dúzia de reguadas na colega. Ora eu recusei-me bater na miúda, o que me valeu apanhar com a régua na cara. Não gostei, atirei-lhe com um tinteiro acima e fugi.. A minha mãe quando teve conhecimento ainda tentou levar-me mas eu, mal chegava às proximidades da escola, fugia a sete pés.”

Então não sabe ler nem escrever ?

“Acabei por aprender alguma coisa e fazer exame já em adulto.”

E, então, como passou a ser a sua vida?

“Limitei-me a ir fazendo uns recados aqui e além, e a brincar, como era próprio da idade. Logo de seguida pôs-me a aprender a sapateiro na oficina do Sr. Vicente Valentim, na esquina para a rua dos Marmelos. Não cheguei a aprender grande coisa porque entretanto saiu-lhe a sorte grande, ele começou a vender jogo e praticamente deixou o ofício.”

Acabou aí a  hipótese de vir a ser um futuro sapateiro?

“De seguida fui para continuar a aprendizagem na oficina do Sr. Serafim Caldeira, ali na Rua das Pedras Negras, onde tinha também uma mercearia. Ao fim e ao cabo pouco aprendi do ofício, porque o patrão punha-me quase exclusivamente a fazer recados. E quando sobrava leite, que era vendido avulso, mandava-me percorrer a então vila com um cântaro de zinco e umas medidas, apregoando e vendendo porta-a-porta o que tinha sobrado.”

E o tempo foi avançando…

A partir de certa altura fomos morar para uma casa, arrendada, perto da residência do Dr. Angelino Ferreira. Era apenas uma divisão. O meu pai colocou ao meio um tabique com sacas caiadas. De um lado dormia a minha mãe e a minha irmã e no outro ficava eu com o meu irmão mais novo, porque o do meio já então acompanhava o meu pai como ajuda de gado ou noutras tarefas.
Aos catorze anos faleceu-me a minha mãe e pouco depois a minha irmã. Foram dois rudes golpes.
Comecei então a fazer recados para a casa do Dr. Angelino. Gostava muito de lá estar e fui sempre bem tratado. Para além dos recados, ia entretendo os meninos Angelino e António. Não ganhava ordenado. Era-nos diariamente dado um recipiente com comida que dava para mim e para o meu irmão mais novo. Pouco tempo depois de nascer a menina Cristina, foi comigo que ela deu os primeiros passos. Estávamos no quintal, coloquei-a de pé e incentivei-a a caminhar para mim. O que ela fez. Chamei de imediato a mãe, a D. Cristina, para ela ver a gracinha. A miúda repetiu a proeza e a mãe ficou tão contente que me mandou ir à do Sr. Costa, que era da sua família e tinha uma loja na Rua Nova, para eu escolher um fatinho. Já havia dois meses que eu andava com a mesma roupa, por não ter outra.
Mas chegou a altura da família Ferreira ir para a praia e eu fiquei sem emprego.

E então, como foi depois a sua vida ?

“Por essa altura, já teria os meus quinze anos, fomos forçados, eu e o meu irmão mais novo, a juntarmo-nos ao meu pai e ficarmos como ajudas de gado, enquanto o outro meu irmão passou para outros serviços no monte do lavrador. E até ir para a tropa trabalhei sempre no campo.”

Começou então uma nova fase da sua vida…

Assentei praça em Mafra e fui depois mobilizado para ir para os Açores, onde estive mais de nove meses.”

Cumprida essa obrigação, nova volta na sua vida:

“Em 1947, já com 25 anos, conheci a que haveria de ser, quatro anos mais tarde, a minha mulher até hoje. Era, e é, cinco anos mais nova do que eu e chama-se Rosa Maria Caldeira. Tivemos três filhos, felizmente todos vivos, dois rapazes e uma rapariga – José Maria, Joaquim Manuel e Maria Jacinta – que são muito nossos amigos.
Depois de casados morámos primeiro no moinho do Bombico, junto à Ponte de Lisboa. Não estávamos sozinhos porque tivemos sempre a companhia de uma grande quantidade de ratos, que de noite até se passeavam por cima da cama. Estivemos lá pouco mais de um ano. Daí passámos para uma casa junto à dos meus sogros, na Ermida da Sra. da Visitação. Daí a dois ou três anos mudámos para a Fazenda dos Carpinteiros, ali às abas do Cabeço de Santo André. Sucessivamente, passámos ainda pela Courela da Estrada, pela Rosenta e, finalmente, para a Rua dos Almocreves, numa casita que comprámos.”

Como se vê, o nosso Amigo Cigarro não teve uma vida fácil. Longe disso. Mas o seu maior pesar surgiu-lhe há cerca de três meses:

“Há uns anos comecei a ter problemas de visão. Primeiro fui operado em Lisboa à vista direita. Ao princípio comecei a ver melhor mas a partir de certa altura fui piorando até a perder completamente. Da vista esquerda, e com medo de que me acontecesse o mesmo, não quis ser operado. Mas há três meses deixei de ver. O mundo apagou-se completamente para mim. É uma tristeza enorme. Corri muitos médicos mas todos me diziam que não havia nada a fazer e que foi a diabetes que me cegou.

E como se tudo isto não fosse já mais do que suficiente …

“A minha mulher, que também é diabética, tem igualmente muitas dificuldades para ver. Já foi operada aos dois olhos e, por enquanto, ainda me vai ajudando no que pode. Mas tem outros problemas de saúde que também nos preocupam. Depois de uma vida de grandes sacrifícios estamos perante este quadro.”

Compreendemos o estado de alma do Sr. Cigarro, que merecia gozar agora de uma vida tranquila e feliz junto da sua companheira de sempre.