segunda-feira, 26 de setembro de 2016

OS NOSSOS UTENTES

FILIPE SILVESTRE NETO

Com 91 anos feitos em Maio, o nosso entrevistado goza de boa disposição, que facilmente transmite, e possui uma excelente memória.
               
“Nasci no Monte da Figueira, perto de S. Mateus, numa família de 11 filhos, 3 raparigas e 8 rapazes. Veja, portanto, a balbúrdia que, com tanta gente miúda, havia naquela casa.”

 E residiram sempre no mesmo sítio ?

“Não. Como o meu pai era ganadeiro, nas casas agrícolas de João Manuel Malta, António Lopes de Andrade e de Florêncio Alfacinha, percorremos e estacionámos em vários montes, dentro e fora do concelho de Montemor.”

E a escola ?

“O que é isso? Na altura não havia tempo nem condições para nos darmos a esse luxo. Portanto, logo aos sete anos comecei como ajuda de gado, na companhia do meu pai, na herdade do Picote. E ainda hoje apenas leio e conheço as letras de forma e até sei juntá-las, mas escrever … nem sequer o meu nome.”

E esclarece:

“Com 15 anos comecei a fazer outras tarefas, mas sempre ligado à actividade do campo, onde fiz praticamente todos os trabalhos. Alguns anos mais tarde foi chegada a altura de começar a namorar. Não fui muito namoradeiro porque cedo conheci a rapariga – de seu nome Gertrudes Maria Saúde - que haveria de ser minha mulher durante mais de sessenta anos. Para quê andar a fazer outras perder tempo se eu já sabia que era aquela que eu queria ?”.

Tendo chegado a essa conclusão, o casamento era inevitável …

“Casei com 26 anos. Fomos então morar para os Castelos, que pertence à freguesia de S. Sebastião da Giesteira. Trabalhava ali pelas redondezas, fazendo de tudo o que me ia aparecendo e a minha mulher, igualmente filha de ganadeiro, também trabalhava no campo.”

 E vieram os filhos, como era de esperar:

“Exactamente. O primeiro, o José Filipe, apareceu quatro meses depois do casamento, o que o levava mais tarde, por graça, a dizer aos colegas de trabalho que o poupassem porque ele tinha nascido antes do tempo. Anos depois apareceu o segundo filho, o Francisco, que entretanto já me deram dois netos cada um.”
            
E mantiveram-se sempre ali pelos Castelos ?

“Não, ainda passámos por outros locais. Dali fomos para a Cravosa até chegarmos à Quinta de Dom Francisco, que era onde vivíamos antes de ingressarmos no Abrigo. Mas quero ainda dizer que o meu filho mais velho, que já está reformado, era Sargento da Marinha e vive em Cruz de Pau, mais propriamente nas Paivas. Quanto ao filho mais novo é, desde há alguns anos, vendedor da Nigel e era com ele que eu saía quase todas as semanas. Lembro-me, até, que na última vez que o acompanhei comemos um belo arroz de tamboril em Ponte de Sor. Isto pouco tempo antes de termos vindo para o Abrigo, em Maio de 2012.

Ainda que conhecesse as várias tarefas do mundo rural, diz-nos que tinha particular interesse pela carvoaria, tendo chegado a tirar um curso relacionado com a limpeza de árvores, a fim de poder desenvolver com mais conhecimentos aquela actividade.

“É verdade, sim senhor. Comecei até a encarar de outra forma a vida das plantas. Fiquei a saber, por exemplo, que a cor verde das folhas é devida à função clorofilina e que as plantas libertam oxigénio e absorvem o anidrido carbónico, pelo que são muito úteis para todos nós. A partir de então fiquei a olhar com mais respeito para as árvores.”

Mas o sr. Neto ainda quis falar, se bem que de um modo muito resumido, sobre a forma como se preparava uma carvoaria:

“No local escolhido para o efeito colocam-se primeiro as “repas”, que são as raízes das árvores. Sobre estas vai-se colocando a lenha mais miúda, com o cuidado de deixar as “goteiras”, que são praticamente túneis para o lume poder respirar. A envolver tudo aquilo ainda se coloca palha, que tem sobretudo a função de isolar a lenha da terra com que se cobre o monte. E por uma porta que se deixou aberta atiça-se então o fogo. De qualquer modo, há sempre que manter vigilância para se poder verificar se tudo está normal. Até se retirar o carvão, a combustão dura um mês ou mais, dependendo do tipo de lenha que se utilizou.”

Era, com certeza, um trabalho muito difícil e penoso.

“Nesses tempos era tudo feito à força de braços, desde o “terrar” os fornos até, mais tarde, se irem “desenlevar”, que significava tirar a terra e abrir os fornos, ainda o carvão estava em brasa. Este trabalho era muito custoso de suportar. Hoje, felizmente, já há máquinas para se fazer praticamente tudo isto.”

Tendo perdido a mulher há cerca de dois anos, o sr. Neto ficou mais sozinho. Como passa o tempo?

“Para além das horas em que sentimos mais a solidão, passo os dias na conversa com os meus colegas, assisto às actividades que aqui se vão fazendo, jogo às cartas e vou por vezes aos passeios organizados pela Instituição. E assim vou passando os dias. Até um dia.”

Foi um prazer falar consigo, sr. Neto.