quinta-feira, 21 de setembro de 2017

OS NOSSOS UTENTES

ANTÓNIO VENTURA RIBEIRO

“Guardador de várias espécies de animais, ceifeiro, arrozeiro e tirador de cortiça, eu fiz praticamente de tudo” começou por dizer, à laia de apresentação o nosso entrevistado deste mês.

Que continuou: “Nasci há 81 anos no Monte dos Ruivos, da freguesia do Couço. Éramos seis irmãos e o meu pai era maioral de bois de trabalho. Conheço bem este monte mas não tenho recordações desse tempo, porque quando saímos de lá era eu muito novinho. Dali fomos para o Monte do Peso, que se situa mais ou menos à mesma distância de Brotas e Ciborro.”








Houve alguma alteração na vossa vida com essa mudança?

“Não. Com sete anos “enreguei” a trabalhar, guardando uns bácoros, nome que dávamos aos leitões, ou seja, porcos com poucos meses, de raça alentejana. Andando à vontade pelo montado, alimentando-se exclusivamente de boletas e landes e só muito raramente de milho, produziam, isso sim, a verdadeira e saborosa carne de porco. As farinhas não entravam ali.”

E a escola?

“Já deve ter percebido que, por diversas razões, nunca lá pus os pés. Muito mais tarde ainda fiz uma tentativa de aprender a ler e a escrever, mas apenas tive três lições de uma hora cada. Já vê que em tão pouco tempo não aprendi fosse o que fosse. E hoje a situação ainda se mantém igual.”

Assim, encerrado esse assunto, continuou a sua vida de trabalho…

“E nunca mais parei. A seguir aos bácoros foram os rebanhos de ovelhas. Depois, com 12 anos, fui para ajuda do maioral dos bois. Era então, como se chamava, um contratado. Ganhava jorna e, mensalmente, uma porção de azeite e farinha. O contrato estipulava ainda que tínhamos direito a uns tantos quilos de carne de porco em cada ano. Chegada esta altura, o feitor escolhia o porco para cada um dos trabalhadores e se depois o peso da carne excedesse o combinado, tínhamos de pagar a diferença. Curiosamente, eu nunca cheguei a saber quanto ganhava, porque o contrato era feito em conjunto com o meu pai e nunca me foi dado conhecimento de quanto era a minha parte.”

Até quando se manteve esta situação?

"Com 15 anos saí para a “jorna” nos diversos trabalhos agrícolas, o que significava andar já num rancho de homens a aprender e a executar as mais variadas tarefas. Ganhava então, se bem me lembro, dois escudos e cinquenta centavos por dia. E quando chegava ao Sábado, lá ia receber aquela “batulada”. Mas nem sempre, porque quando a minha mãe se via aflita para conseguir dar de comer a tanta gente, pedia ao feitor que lhe adiantasse toda ou parte da minha jorna. Aí, então, pouco ou nada recebia. Mas mesmo que recebesse o salário por inteiro, chegava a casa e entregava-o todo à minha mãe, mesmo quando calhava ter um trabalho extra ao Domingo”.

Os anos foram passando e chegou a altura de gostar de se divertir, como é natural quando se é jovem…

“Tinha entretanto amealhado aos poucos um dinheirito e consegui comprar uma pedaleira, o que já me permitia não só ir para o trabalho como para me deslocar para as Brotas ou para o Ciborro. É que, antes disso, para um lado ou para o outro gastava uma hora a pé.”

E qual o tipo de divertimento de que dispunham?

“Nas Brotas, de vez em quando havia cinema. Um empresário ambulante percorria estas localidades mais pequenas e, desde que disponibilizassem um espaço adequado, ali realizava as suas sessões, normalmente de fitas portuguesas. Mas mesmo acontecendo poucas vezes, eu só muito raramente lá ia porque as entradas eram pagas e o dinheiro no meu bolso sempre pouco. Quanto a outros divertimentos, só os bailaricos. Mesmo no Monte do Peso, uma filha do patrão organizava bailes num celeiro da casa agrícola e era a própria que pagava ao acordeonista Possidónio Raposo, que habitualmente lá ia tocar. Outras vezes, o patrão cedia as mesmas instalações e, então, era a rapaziada que tomava essa iniciativa. Por norma recorria-se a tocadores mais baratos porque as receitas eram incertas. As raparigas não pagavam a entrada e aos rapazes era cobrado um valor quase simbólico. Depois, lá dentro e no decurso do baile, faziam-se os chamados “cravanços” e organizavam-se umas rifas cujos prémios eram uma garrafa de vinho, um frango assado ou outra coisa do género. Havia ainda a popular “valsa a prémio” que contemplava o par vencedor com uma garrafa de bebida para o rapaz e um bolo para a rapariga.”

Eram os cenários e ambientes naturais para começarem os namoros…

“Sim, mas nada de grandes promessas. Uns bailes com uma, outros bailes com outra e o tempo ia passando. Nós queríamos apenas divertir-nos, não desejando, nem podendo sequer, arranjar compromissos.”

Mas chegou a altura em que teve de dar o passo decisivo...

“A certa altura foi chegado o momento de me aparecer aquela que viria a ser a minha mulher. Namorámos, conhecemo-nos melhor e chegámos à conclusão que o namoro teria de acabar em casamento. E assim, com 24 anos, casei com a Maria Custódia, que Deus tem. Tivemos uma filha – Maria Rosalina -, hoje com 55 anos, casada e com uma menina de 10 anos. Vivem em Montemor.”

E para onde foi morar o jovem casal?

“Fomos residir para o Monte da Fanica, igualmente da família Malta, de Coruche. Quando o sr. Malta faleceu, a casa agrícola do Monte do Peso passou para as mãos de uma das filhas, casada com o lavrador António José Teixeira, também de Coruche. Trabalhei na mesma casa durante muitos anos. Em dado momento construí uma moradia nas Fazendas do Cortiço, onde vivi durante cerca de quarenta anos. Entretanto, a minha esposa faleceu. E, com o avançar da idade, a saúde foi sendo abalada. Comecei com um problema grave na anca, que me dificultava imenso a vida. O ano passado fui operado, mas fiquei sempre com impedimentos em deslocar-me. Ainda vivi em casa da minha filha, mas como mora num primeiro andar era bastante difícil e dolorosa a subida e descida da escada. Um dia, lá em casa, foram dar comigo caído no chão, sem dar acordo de mim. Chamaram de imediato a ambulância que me transportou para o hospital de Évora. Até hoje não cheguei a saber o que me tinha acontecido. Só sei é que fiquei com mais dores do que no tempo que se seguiu à operação. Também não sei se os dois acontecimentos estão relacionados.”

E então …

“Um dia, há uns meses, a Segurança Social perguntou-me se, dado o meu estado, eu estaria disposto a ir para um Lar, uma vez que estava demasiado dependente. Eu disse logo que sim e que sugeria o Abrigo dos Velhos Trabalhadores aqui em Montemor, onde eu nunca tinha entrado nem tinha conhecimentos mas do qual tinha boas referências. Assim foi e aqui estou, como residente, desde 20 de Dezembro passado. Terá sido uma das melhores decisões que tomei na minha vida. Sou muito bem tratado, porque também eu me esforço por tratar bem toda a gente. O ambiente é bom e desde que frequento o ginásio tenho sentido umas sensíveis melhoras. Confesso-lhe, e acredite no que lhe digo, que nem tenho saudades da minha casa.”



Desejamos ao Sr. Ribeiro que se mantenha durante muitos anos com essa excelente disposição.