quarta-feira, 17 de outubro de 2018

OS NOSSOS UTENTES

PERPÉTUA MARIA SAIOTE PEREIRA


         Considera que o Pai foi um homem com ideias avançadas para a sua época, tendo especialmente em conta a forma como era comum naquele tempo, e especialmente nas zonas rurais, por questões económicas e outras, não se considerar como necessária a frequência escolar, sobretudo para as raparigas. E inicia a sua história:

         “Nasci no dia 24 de Abril de 1939 no Monte da Gamela, numa família de nove irmãos. O meu pai era o responsável, feitor ou como lhe queiramos chamar, da herdade com o mesmo nome, pertencente à família Alves.”

         E como era então a vossa vida?

         “Como a minha mãe não podia ir para a jorna, uma vez que tinha uma enorme casa de família para governar, ia sempre que possível para um pedaço de terra, que nos era cedido pelo patrão, apanhar azeitona de um pequeno olival onde os filhos também ajudavam na proporção das suas capacidades. Dali tirávamos o azeite com que nos íamos governando o ano inteiro.”

         Mas não era só com esse rendimento que se governavam…

         “O meu pai era aquilo a que se chamava concertado, isto é, não auferia qualquer ordenado. A sua remuneração traduzia-se na concessão anual de um povilhal (ou pegulhal) de cinco porcos e mais dez sacos de farinha, com a qual fazíamos o pão. Para além disso, como tínhamos uma hortazita, dali tirávamos as hortaliças para a alimentação. Íamos aviar-nos a uma mercearia do sr. António Mira, no Monte das Caeiras. Trazíamos poucas porções de cada vez, fiadas, e quando o meu pai vendia uns ovos, a criação ou qualquer outro produto produzido na horta, ia satisfazer as suas dívidas.”

         Falou há momentos do seu pai e do que ainda hoje pensa dele. Quer especificar?

         “Só mais tarde me apercebi que realmente o meu pai tinha umas ideias que naquele tempo não eram comuns. Sempre quis que os filhos tivessem instrução. Então, pensou criar para todas as crianças daquela zona um local que pudesse ser adaptado a escola. Ali perto, em Rio Mourinho havia uma casa que estava devoluta e, não sei como, conseguiu transformá-la em sala de aulas. Também ainda hoje não sei por que artes, arranjou carteiras, secretária para professora e o quadro preto. Chegaram a frequentar a improvisada escola mais de duas dezenas de crianças. E não iam mais porque, como se sabe, havia ainda quem pensasse que saber ler não fazia falta a ninguém. Todos os meus irmãos andaram na escola, com excepção dos dois mais velhos que só aprenderam a ler e a escrever já depois de adultos. Era nossa professora a D. Maria Cristina Simão, filha de um GNR e que vivia em Montemor na Rua de Aviz.”

         E até onde chegaram os seus estudos?

         “Fiz apenas a 3ª classe porque, entretanto, tinha chegado a altura de começar a trabalhar. E a partir dos 12/13 anos iniciei-me nos trabalhos agrícolas, que só terminei com a reforma.”

         E como viveu a sua juventude?

         “Na Gamela havia um celeiro, espaçoso, onde nos era permitido fazer bailes nos dias tradicionais, ainda que sob a vigilância do meu pai, que ao menor sinal de desordem ou brincadeira exagerada acabava com a função. Divertíamo-nos mas com regras. E juntávamos ali muita juventude, com harmónios, concertinas e alegria.”

         Foi também a altura de começar o namorico…

         Com cerca de vinte anos comecei a receber umas cartas de um rapaz que era meu companheiro de trabalho. Abria, lia e guardava, mas sem lhe responder. Havia um motivo forte para eu proceder assim aos seus apelos românticos. É que a minha mãe tinha falecido e eu, como a mais velha ainda solteira, tive de me dedicar à casa, ao meu pai e aos meus irmãos mais novos.”

         Mas essa situação acabou por se resolver…

         Um dia, vinha eu com a minha irmã mais nova, encontrei o tal rapaz, de nome Marcelino Joaquim Pereira. Falámos, eu voltei a explicar-lhe que não podia abandonar o meu pai e os meus irmãos. Nesse dia ficámos por ali mas, mais tarde, tinha eu 34 anos, acabámos por nos juntar e vir morar para o mesmo monte dos meus sogros. Mas o meu pai não via com bons olhos o facto de eu não estar oficialmente casada. E um dia disse-me que gostava de ver a situação legalizada e que seria ele próprio o padrinho do casamento. E assim foi.

         E assim se iam passando os dias, semanas, meses …

         “Por esta altura já só estava em casa, solteira, a minha irmã mais nova que ficou a viver com o meu pai. No entanto, rara era a semana em que eu não os ia visitar. Mas o meu pai faleceu e a minha irmã, que ainda viveu comigo uns meses, acabou também por casar.”

         Estávamos a chegar ao fim da nossa conversa, mas ainda assim a D. Perpétua acrescentou:

         “Já casada, continuámos os dois a trabalhar, mais ou menos sempre juntos, cada qual na sua tarefa, já se vê. E os anos foram passando e eles por nós. Já reformados, viemos viver para uma quintinha, à Saúde, mesmo junto a Montemor. Mas a idade não perdoa e os problemas de saúde começaram a manifestar-se mais duramente. Primeiro, em 2011, começámos a usufruir do “Apoio Domiciliário” por parte do Abrigo, até que em Agosto deste ano de 2018 entrámos como residentes.”

         E como vai passando os seus dias?

         Para além do tempo em que estou com o meu marido, tenho a sorte de ter vindo encontrar aqui muitas pessoas minhas conhecidas, com algumas das quais até trabalhei, pelo que vou falando com esta e com aquela, o que me permite ocupar o tempo. E quando tiver as minhas coisas todas arrumadas vou começar a frequentar o ginásio. E depois logo se vê.”

         D. Perpétua, que se vá sentindo bem junto do seu Marcelino, são os nossos melhores votos.