segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

OS NOSSOS UTENTES


ELISIÁRIO ANTÓNIO (PINTO)



 Em Janeiro vai completar 89 primaveras, mas a memória, não sendo já o que era, ainda lhe permite recordar muitos episódios de uma vida que teria muito para contar.

Chamo-me apenas e só Elisiário António. Todos os meus irmãos, e fomos nove, tinham o apelido de Pinto mas eu, ainda hoje não sei por que carga de água, fui o único assim baptizado.”



E foi abrindo o seu álbum de recordações: “Nasci e sempre vivi no Ferro da Agulha, mesmo depois de, com vinte e poucos anos, ter casado com a minha companheira de sempre, de nome Custódia Maria Roque. Devido à idade, e sobretudo à doença da minha mulher, entrámos para o “Centro de Dia” do Abrigo dos Velhos Trabalhadores em Julho de 2007 e porque as nossas condições de saúde se foram agravando, ficámos a residir permanentemente  no “Lar” desta mesma Instituição a partir de Fevereiro de 2010. Foi o melhor passo que demos, e posso afirmar que fomos aqui felizes. No entanto, quis o destino que a minha mulher partisse vai para dois anos. Sinto bastante a sua falta, mas tenho de me conformar porque a vida dá-nos estes desgostos.”


Mas tudo teve um princípio: “Andei à escola na Associação Operária e conclui a 4ª classe. Aliás, de todos os meus irmãos, só o Manuel não aprendeu as letras. Logo depois comecei a trabalhar no campo, como era norma na altura. Uns anos depois, estava eu a trabalhar na Quinta de Santo António e no lagar do Sr. Daniel Borges (ou Daniel Passinha, como era conhecido) fui vítima de uma doença que me impossibilitava de fazer trabalhos pesados. Estando ainda indeciso quanto ao rumo a dar à minha vida, o Sr. Daniel Borges (também proprietário de um armazém de fazendas) chamou-me e disse: - Elisiário, vai tratar da papelada nas Finanças porque a partir de agora vais ser vendedor ambulante. 


E assim foi. Mas ainda havia outras dificuldades a ultrapassar: “Quando me convenci que aquele seria o meu modo de vida no futuro, reparei que tinha uma carroça, mas não tinha burro nem dinheiro para o comprar. Fui ter com o meu irmão Luís, para quem eu tempos antes tinha comprado um animal, e pedi-lhe que mo vendesse. Ele concordou e ajustámos o preço: 750$00 a pagar em prestações semanais. Já equipado, voltei ao Sr. Borges que logo ordenou que me fosse fornecido o material com que haveria de iniciar o negócio. Foi um avio no valor de 5 contos, fiado, porque eu não tinha um centavo. Fiquei sempre reconhecido a esse Homem, que me incentivou e depositou em mim tal confiança, que eu sempre tive a máxima preocupação de merecer pela vida fora.

Comecei então a andar de monte em monte, com a carrocinha, a vender panos, roupas e outros artigos pertencentes ao mesmo ramo. Foi esta a minha actividade até me reformar.

Foi, como é bom de ver, uma vida de sacrifícios: “Saía de casa à terça-feira e só regressava no sábado. Fazia uma volta muito grande, percorrendo muitos quilómetros. Dormia em cocheiras, em palheiros, onde calhava. A segunda-feira estava reservada para ir repor a existência.


Como se não bastasse toda esta labuta, o nosso amigo Elisiário também teve problemas com a sua “viatura”: Seis meses depois de iniciar estas andanças, e já com o burro pago, partiu-se-me a carroça. Fui ter com o mestre Zé da Gaita para me fazer um orçamento. Levava 600$00 pelo conserto mas demorava dois meses o arranjo. Está visto que não podia ser. Então, dirigi-me ao Mestre Valério de Carvalho, que me levou os mesmos 600$00 e me emprestou uma carroça durante o tempo do amanho.


Mas se as carroças têm história, que dizer dos burros? “O meu primeiro burro chamava-se “Jeremias” e pertenceu-me durante 15 anos. Era muito esperto. Conhecia a freguesia quase tão bem como eu. Quando nos aproximávamos de um monte, eu começava a imitar a voz do burro e ele continuava a zurrar, como que anunciando a nossa visita. Por outro lado, se estávamos perto de um local onde morava freguesa com dívida em atraso, e não convinha por isso pô-la de sobreaviso, dava-lhe um determinado toque e ele já não zurrava. Era manso, mas se durante os nossos percursos via uma “moça” da sua espécie, começava a ficar amalucado. Chegava até a morder, se calhar de raiva por não lhe poder chegar. Tive de me desfazer dele, vendendo-o ao Mestre Fortunato Guita e comprando-lhe um cavalo por 12 contos, que se chamava Neco e que tive de vender anos mais tarde porque lhe apareceu uma pulmoeira. Comprei então uma mula, a que foi dado o nome de  “Cigana”.


Para além de registarmos os acontecimentos mais recentes da vida do nosso entrevistado, recordámos juntamente, e aproveitamos para transcrever, algumas passagens das peripécias que foram contadas, já há mais de vinte anos, ao autor destas linhas, que as publicou então num jornal local. Daí para cá, muitas voltas deu o mundo e as vidas de cada um de nós.


“Claro que não há nada como a nossa casa, mas chega uma altura em que, por diversas circunstâncias, somos forçados a pedir ajuda. Foi o que eu fiz. Mas em boa hora recorri ao Abrigo. Sempre fui bem tratado. Penso até que todo o pessoal tem muita paciência para tratar de tanta gente com feitios tão variados. Aqui, como em todos os lugares semelhantes, todos temos de perceber que tem de haver regras para serem cumpridas porque, de contrário, isto seria um pandemónio, com cada um a fazer o que lhe apetecesse. Vejo que muitas vezes há falta de compreensão.”


Sr. Elisiário: Que os anos se vão sucedendo com a qualidade de vida que bem merece.