segunda-feira, 30 de outubro de 2017

OS NOSSOS UTENTES


MARIA JOAQUINA POMBO DE MOURA


“Garanto-lhe que se a memória ainda o permitisse, a minha história daria um romance, tais foram as atribulações que sofri ao longo da vida.”

Com esta advertência iniciámos a conversa com a D. Maria Joaquina que, curiosamente, reconheci logo que nos sentámos, porquanto fomos vizinhos durante os tempos da minha meninice, quando ambas as famílias moravam na Rua dos Almocreves. Foi um reencontro depois de um interregno de muitos anos.

Mas vamos então conhecer um pouco da sua história:

“Nasci na rua de S. Domingos e já estaria na casa dos trinta anos quando nos mudámos para a rua dos Almocreves. Éramos quatro irmãos (4 raparigas e 1 rapaz) dos quais sou a única sobrevivente.”

Há um pormenor muito importante que tem sido praticamente comum em todos os entrevistados. Se nasceram, e viveram no campo os primeiros anos de vida, é certo e sabido que são poucos os que andaram à escola e quase todos desde cedo se iniciaram nos trabalhos agro-pecuários. Se o nascimento ocorreu no espaço urbano, é vulgar vir a saber-se que foi fugaz a sua passagem pelas salas de aulas devido, sobretudo, ao início bem cedo de uma actividade que não fugia muito da costura ou de serviçal doméstica.

“Andei na Escola “Conde de Ferreira” onde conclui a 2ª classe da instrução primária com a classificação de 14 valores. Contudo, nunca cheguei a frequentar a 3ª classe, porque a família era numerosa, o meu pai passava longos períodos hospitalizado, a minha mãe e irmãs eram costureiras e eu tive de assumir a responsabilidade de governar a casa. Quando a minha irmã Amélia casou, comecei também a trabalhar como costureira. Primeiro em obras “faiancas”, isto é, como então se dizia, para “a prateleira”. Eram aquelas peças de vestuário que não se destinavam a um determinado cliente mas seria o início daquilo que hoje é conhecido como “pronto-a-vestir.”

E exercia a sua actividade em casa?

“De uma maneira geral sim, mas também andei a costurar em casa da sua tia Custódia (conhecida familiarmente por Carriça) que, mesmo não tendo uma vida que se pudesse dizer fácil, andava sempre bem disposta. Mas trabalhei igualmente nas alfaiatarias J. Marques, Tello de Morais e Barradas, este ali na rua das Escadinhas.”

Mas em determinada altura houve alteração na sua vida…

“Tinha 36 anos quando conheci e me casei com José Batista de Moura, já divorciado, que vivia em Almada. E foi nesta cidade que a partir daí sempre morei. Porém, tive a infelicidade de enviuvar poucos anos depois, já lá vão quase quarenta. Mas continuei a viver na mesma casa, tendo como rendimento as pequenas reformas. Sempre ia encontrando outros afazeres que me ocupavam e ajudavam na economia doméstica.

         
E enquanto teve forças e saúde foi sempre labutando…
         
“É verdade. Como já lhe disse, a minha vida dava um romance. Trabalhei muito e tive grandes desgostos mas, com mais ou menos dificuldade, lá ia vencendo as contrariedades. Vi falecerem todos os meus familiares, o último dos quais foi o meu sobrinho António Justino Pombo Malta, que era professor de história. Dedicou a última parte da sua vida a reivindicar a justa homenagem a Aristides Sousa Mendes, cuja obra considerava não ser suficientemente conhecida em Portugal. Escreveu até um livro sobre este diplomata humanista. (*) Ainda não consegui refazer-me desta última perda.”
         
E como é que, passado tanto tempo, conseguiu ingressar no Abrigo?
         
“Eu nunca perdi o contacto com esta Instituição, quer pessoalmente quer por interpostas pessoas. Já tinha pedido mais de uma vez, mas não é fácil conseguir vaga. Mas a minha situação estava a degradar-se e depois de uma equipa do Abrigo se ter deslocado a Almada para confirmar a precaridade da minha situação, logo que surgiu a vaga fui contactada e aqui estou, desde o princípio deste mês de Outubro, depois de ter completado 93 anos no dia 28 de Junho.”
         
Passado tanto tempo voltámos a encontrar-nos, D. Maria Joaquina. E tive muito prazer neste reencontro. Que goze este descanso com a saúde possível.


Nota: (*) – Aristides Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus no ano da invasão da França pela Alemanha nazi, durante a 2ª Grande Guerra, desafiou e contrariou as ordens de Salazar e concedeu milhares de vistos de entrada em Portugal a refugiados, particularmente de origem judia. Foi por isso castigado e viu até o seu salário reduzido. Tudo por salvar a vida a milhares de pessoas.