segunda-feira, 20 de novembro de 2017

OS NOSSOS UTENTES


ANTÓNIO JOAQUIM GERVÁSIO



         Dono de uma forte convicção nos seus ideais de justiça social, e sempre com a liberdade como meta a atingir, António Joaquim Gervásio cedo compreendeu que, sem luta, tais desígnios nunca seriam alcançados. E sofreu na carne manter-se coerente com os seus princípios.

         Mas vamos ouvir o que tem para nos dizer:

         “Nasci no Monte da Regadia, então pertencente à freguesia de S. Mateus, e depois Na. Sra. da Vila, no dia 25 de Fevereiro do já distante ano de 1927. Fui o mais velho de oito irmãos (5 rapazes e 3 raparigas). Não era nada fácil a vida nesse tempo mas o meu pai, que era um excelente operário agrícola, ia ganhando a vida e, com muito sacrifício, sempre conseguiu que à mesa nunca faltasse o alimento para a família. Para além das horas em que trabalhava como assalariado ia, simultaneamente, arrendando pedaços de terra para cultivar produtos hortícolas, cuja produção servia os interesses familiares e o que sobrava, sobretudo a fruta, era vendido.”

         Mas, sendo o mais velho dos irmãos, foi também o que começou a trabalhar mais cedo…

         “Com sete anos iniciei-me a guardar uma vara de sete ou oito porcos e ia para o trabalho descalço. Poucos anos depois passei a ser ajuda, na guarda de outros animais: ovelhas, cabras e ainda porcos. Aos 13 anos o proprietário para quem eu trabalhava, que vigiava a cavalo os empregados, gostava de bater nos seus assalariados por dá cá aquela palha. Possuía meia dúzia de cavalos e um dia, um deles, ao espojar-se no chão pedregoso, ter-se-á ferido. O patrão veio ter comigo acusando-me de lhe ter feito aquilo com uma pedrada. Claro que eu nunca faria uma coisa dessas, até porque gostava dos animais. Ameaçou-me que me daria uma tareia, mas eu, que estava inocente, agarrei numas pedras e disse-lhe que se ousasse bater-me é que, então sim, lhe mandaria uma pedrada.”

         E o assunto ficou por aí, sem mais conversa?

         “Não. O lavrador, que como eu já disse, gostava de “molhar a sopa”, hesitou e respondeu-me ameaçadoramente: deixa estar, meu filho da p…, que hás-de pagá-las. Fiquei com medo e fui para casa dos meus pais, a quem contei o sucedido, dizendo-lhes que para ali já não regressava.”

         E, então, como é que o assunto se resolveu?

         “O meu pai, ainda que analfabeto, era muito sensato e possuidor de uma grande sabedoria. Então, disse-me ele, visto que não queres regressar para aquele patrão, a solução passa por ires comigo trabalhar na carvoaria. E assim foi. Fiquei como “coqueiro” (*), que consistia em fazer o lume e ir vigiando as panelas de barro que cada trabalhador levava de casa, juntando-lhe água se via que era necessária e chegando-as mais ao lume ou afastando-as, conforme os casos. Durante esta fase ganhava apenas metade da jorna dos homens.”

         E esse sistema continuou ainda por muito mais tempo?

         “Poucos anos mais tarde passei à categoria de adulto, no que ao trabalho dizia respeito, ganhando estão a jorna normal. Fazia todos os trabalhos agrícolas e sentia-me um homem completo, ainda que jovem. Foi uma fase muito importante da minha vida.”

         Mas, apesar de tudo, não se sentia completamente realizado…

         “Desde muito novo que comecei a interessar-me pelos problemas sociais e a tomar conhecimento, directa ou indirectamente, das injustiças que se cometiam e cujas vítimas eram essencialmente os trabalhadores. Tendo aprendido a ler com os meus companheiros de trabalho, através da Cartilha João de Deus, e tendo aprofundado mais tarde os meus conhecimentos, fiquei ainda mais desperto para as realidades da vida. As notícias que, por vias não oficiais, se iam sabendo sobre o que se passava na Guerra Civil de Espanha e na 2ª Guerra Mundial, reforçaram a minha consciência política. Por cá, o desumano horário de sol a sol imposto no trabalho rural pelos agrários, as jornas de miséria e os longos períodos de desemprego ainda mais fizeram crescer em mim a vontade de lutar contra as injustiças que então eram comuns. E foi assim que, em 1945, aderi ao Partido Comunista Português. Tinha 18 anos.”

         E a partir daí muita coisa aconteceu…

         “Em 1952 entrei na clandestinidade. Nesta condição me mantive durante 22 anos, isto é, até à libertadora manhã do 25 de Abril de 1974. Entretanto, durante aqueles anos estive por três ou quatro vezes fora do país e, numa delas, visitei os fornos crematórios mandados construir por Hitler. Deu para fazer uma pálida imagem dos horrores ali infligidos.”

         Entretanto, por cá as coisas também nem sempre lhe correrem bem …

         “É verdade. Passei por muitos períodos difíceis, mas gratificantes, porque me davam a certeza de que a razão haveria de triunfar. Estive preso por três vezes. Em 1947, na sequência de uma greve de ceifeiros, durante seis meses; em 1960, por ser funcionário do PCP, fui condenado a 5 anos e meio, com medidas de segurança. Isto significava que terminado o tempo da pena, a Pide apreciava o comportamento do preso e se este não tivesse alterado a sua convicção política, prolongava o prazo por períodos sucessivos de mais 3 anos, o que equivalia a dizer que nunca se sabia quando iria acabar a prisão. Aconteceu, porém, que desta vez não cumpri a pena até ao fim, simplesmente porque eu e mais sete companheiros conseguimos fugir, durante um recreio, da prisão de Caxias. Curiosamente, a fuga foi concretizada em pleno dia, aproveitando a distracção dos guardas. De uma garagem retirámos um carro que lá estava guardado, da marca Chrysler, à prova de bala, que havia pertencido a Oliveira Salazar por oferta de Hitler; depois, em 1971, voltei a ser preso, agora em Peniche, mas em Abril de 1974 regressei de vez à liberdade por que tanto lutara e sofrera. Na prisão sofri muitas torturas, chegando até a perder os sentidos.

         Como é que os presos receberam a notícia da revolução?

         “A certa altura da noite de 24 para 25, o director chamou-nos para nos informar que estava em curso uma revolução. As primeiras reacções foram de surpresa, ainda que tivéssemos a convicção de que mais tarde ou mais cedo ela se iria realizar. No entanto, ficámos de alguma forma na expectativa, sem sabermos se o golpe era de direita, o que ainda iria agravar mais a situação, ou se seria de esquerda, o que nos devolveria todas as esperanças. Ficámos portanto a aguardar o curso dos acontecimentos, até que na manhã do dia 25 de Abril tivemos a certeza de que iriamos ser libertados. Foi indescritível o que se seguiu. Uns choravam de alegria, outros cantavam, outros davam vivas à liberdade, enfim, cada um reagindo à sua maneira.”

         E depois?

         “Bem, depois, cada um seguiu o seu caminho, sabendo que podíamos, finalmente, expor as nossas ideias e defender os nossos direitos.”

         Nunca registou as suas memórias de tantos anos de luta antifascista?

         “Publiquei três livros: “Lutas de Massas em Abril e Maio de 1962, no Sul do País”, “Histórias da Clandestinidade” e “A Reforma Agrária é necessária”.

         Para além destes três livros, António Gervásio, que durante a clandestinidade adoptou o pseudónimo de “Lemos”, escreveu também um extenso artigo sob o título de “A Luta do Proletariado Agrícola – De Sol a Sol até à Reforma Agrária”  incluído no livro de António Murteira “Uma Revolução na Revolução – Reforma Agrária no Sul de Portugal”, editado em 2004.

         Resta-nos agradecer ao Sr. António Gervásio o tempo que nos dispensou e desejar-lhe um futuro com saúde na companhia da sua Esposa.



(*) –Palavra livremente adaptada de coque, que significa cozinheiro.