quarta-feira, 30 de abril de 2014

OS NOSSOS UTENTES

MARIA VICÊNCIA PASTANEIRA

Neste final de Abril das águas mil, estivemos à conversa com a nossa utente Maria Vicência Pastaneira, que procurou a ajuda do Abrigo há pouco mais de um ano.

Segundo nos revelou, nasceu há 83 anos no Monte da Giblanceira. Também ali viram pela primeira vez a luz do dia as suas duas irmãs e dois irmãos. Destes apenas resta um irmão, que conta mais de 90 anos.


Em Giblanceira, propriedade da família Reis, onde o meu pai era feitor e a minha mãe se encarregava de desmanchar e tratar das carnes dos porcos, abatidos no matadouro municipal, para além de responsável pela queijaria e de outras tarefas afins, trabalhava toda a família.

E numa altura em que a escola era um luxo, sobretudo para quem vivia fora dos espaços urbanos, “entrava-se ao serviço” ainda em tenra idade.

“Comecei na lida do campo com 11 anos, fazendo praticamente todas as tarefas que a minha idade permitia. Ainda não havia tractores nem essa maquinaria agrícola que só mais tarde apareceu e, portanto, para além da ajuda dada pelas parelhas de machos ou mulas, todos os serviços exigiam grande esforço físico.”

Mas era assim a vida no campo que, para além da dureza dos trabalhos, sob o sol escaldante ou os frios cortantes, ainda havia que percorrer, a pé, longas distâncias  para se chegar de casa até ao local em que se ia enregar.

“Vencidas as primeiras dificuldades, já tinha 17 anos quando entreguei o meu coração e comecei a namorar com o rapaz que viria, aos 21, a ser o meu marido durante 50 anos. Foi meio século de uma vida em comum em que nos demos sempre perfeitamente. Infelizmente, o meu Manuel José Neves faleceu repentinamente há mais de 10 anos, o que para mim foi, e continua a ser, um desgosto enorme."

Ficámos também a saber que quando casaram, e porque o marido também já trabalhava em Giblanceira, ficaram ali a residir, ainda que numa moradia independente da casa paterna.

“Quando os meus pais faleceram fomos morar para perto do Escoural e Torre da Gadanha. Do nosso casamento nasceram dois filhos –  o Alfredo e o Manuel – que nos deram três netos, uma neta e duas bisnetinhas que são o meu enlevo.”

Durante a nossa conversa, a D. Maria Vicência ainda se dispôs a recordar tempos da sua juventude.

“Quando era rapariga nova gostava muito de bailes. Tinha um irmão que tocava concertina e, então, qualquer casa ou monte das redondezas servia para organizarmos uma funçanada. Sobretudo durante o Carnaval, o pessoal mais novo divertia-se a valer. Pode ter a certeza que, apesar de tudo, a mocidade era divertida. Percorríamos os montes mais próximos e em cada casa estava sempre uma mesa posta à medida das possibilidades de cada um. Chegávamos, comíamos e, como se usa dizer, estava logo um baile armado.”

Como já se disse, a D. Maria Vicência nunca frequentou a escola: "Conheço apenas as letras de forma, que aprendi com uma cunhada minha, que se prestou a ensinar-me, no trabalho, durante os breves períodos do almoço ou do jantar.”

Como já vão longe os tempos daquela juventude, lamenta a nossa entrevistada:“Com o falecimento do meu marido, o desgosto e a tristeza apoderaram-se de mim. Provavelmente será por isso, aliado ao avançar da idade, que começou a faltar-me a ideia. Dá a impressão que esgotei o cérebro de tanto pensar. Estou muito esquecida. Bem gostaria de lhe poder contar mais coisas, mas não me ocorrem. Há tempos fiz um exame à cabeça e na chapa até parecia que tinha os miolos brancos.”
         
Agora, a D. Maria Vicência encontra-se no “Centro de Dia” do Abrigo e vai passar a noite a casa do filho Alfredo, ali na Rua Cidade do Fundão.

Agradecendo a disponibilidade, fazemos votos para que vá gozando de boa saúde.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

OS NOSSOS UTENTES


JOAQUIM JOSÉ PEREIRA


Tem oitenta e dois anos, é solteiro e considera-se bom rapaz. Chama-se Joaquim José Pereira e prestou-se de bom grado a revelar algumas particularidades da sua já longa vida.


“Nasci em Montemor no dia 9 de Fevereiro, do já distante ano de 1932, na Rua do Poço do Passo. Nesta casa vivi até aos 14 anos, depois de concluído o ensino primário. Por essa altura a família foi morar para a Quinta das Laranjas, propriedade da D. Antónia Padeira, onde o meu pai era rendeiro. Dali retirávamos os alimentos que a terra nos dava em abundância.

Mas não tinham outra fonte de rendimento ?

“Colada àquela quinta tínhamos o Pomar Bravo, uma pequena propriedade nossa que, para além, de nos proporcionar o valor da renda de umas casitas, ainda nos permitia criar, essencialmente para venda, umas ovelhas, cabras e galináceos. Era daqui que conseguíamos mais alguns rendimentos pecuniários.”

Deixemos esta fase da vida do nosso entrevistado e avancemos no tempo:

“Teria eu trinta e tal anos quando regressámos à então vila. Deixámos a Quinta das Laranjas mas continuámos a explorar o Pomar Bravo que, mais tarde, foi vendido.”

Já em Montemor houve que procurar meio de subsistência:

“Empreguei-me na serração da família Silva Borges, ali na Vilamor. Estive lá uns meses e depois coloquei-me na Câmara Municipal. Fiz aqui os mais diversos trabalhos, desde colocar alcatrão nas estradas, andar no serviço de limpeza até que, finalmente, fui para a secção de pintura e carpintaria, no estaleiro. Por aqui me mantive  até me reformar.”

Depois dos pais falecerem, o sr. Joaquim Pereira vivia, sozinho, na Rua do Poço do Passo, sensivelmente no mesmo local mas depois do prédio ter beneficiado de obras de fundo. Será que nunca pensou em casar ?

“Quando era novo namorei uma rapariga durante cerca de catorze anos. Claro que pensávamos casar, mas ela era tremendamente ciumenta. As constantes cenas, de ciúmes infundados, que previ poderem continuar pela vida fora, foram decisivas para acabar com o romance antes que fosse demasiado tarde.”

Mas voltemos à actualidade.

“Como estava sozinho, durante os últimos cinco ou seis anos tive o “Apoio Domiciliário” prestado pelo Abrigo. Porém, há cerca de seis meses dei uma queda, no passeio junto ao Minipreço, que me provocou uma séria lesão ao nível da bacia e de que resultou uma incapacidade permanente. Na altura fui radiografado e o ortopedista disse-me que o caso não tinha solução.”

E daí …

“Daí que não tive outra solução senão a de pedir ao Abrigo que me aceitasse no “Lar”, uma vez que a minha casa tem degraus que eu não conseguia, nem consigo, subir ou descer. Tenho bastantes dores e dificuldades para me deslocar mesmo em superfícies planas. Com a ajuda de uma bengala lá vou dando uns passos, mas sempre à custa de muito sofrimento.”

Conseguimos saber que o nosso entrevistado deste mês anda a tentar escrever uns versos. Confessou-nos que ainda não estão prontos mas, mesmo assim, prontificou-se a ditar o que a seguir se transcreve:

                     
                       "Se há Deus, eu não acredito
                        É o que a sorte me diz.
                        Não tem dó dum infeliz
                        Que se vê num conflito.

                        Muita gente me tem dito para eu ter devoção
                        E peço tanto a salvação
                        Que não consigo alcançar
                        Só me custa é o penar
                        Dêem-me todos atenção.

                        Choro a minha desventura
                        Eu estou farto de sofrer
                        Vivo assim até morrer
                        Se meu mal não tiver cura."

                     
Amigo Joaquim: Não desespere. Vamos ter esperança de que melhores dias virão.