terça-feira, 23 de maio de 2017

OS NOSSOS UTENTES

JOÃO JOSÉ MELGUEIRA




Este mês, quando cheguei ao Abrigo, para a habitual entrevista, estava longe de esperar que a conversa seria com uma pessoa que eu conheço há muitos anos e, ainda por cima, irmão do meu amigo António.

Nasceu há 85 anos no Monte do Telheiro do Costa, perto da Fidalga, numa família que, para além dos pais, era constituída por 6 irmãos. É casado há mais de quarenta anos com Madalena do Céu Pereira Messias Melgueira. Não tiveram filhos. Aqui fica um resumo da sua história de vida:

“O meu pai era moleiro e lembro-me de que trabalhou no Monte da Azenha,  no Moinho do Canal e no Moinho do Borrazeiro. A nossa infância foi igual ao de tantas outras crianças que, vivendo no campo, poucas oportunidades tinham de alterar uma vida desde cedo destinada ao trabalho rural.”

Mas nunca frequentou a escola?

“De todos os meus irmãos, só os dois mais novos foram à escola. Eu, na verdade também andei, mas apenas um mês. E quer saber porquê? A escola em que eu estava, se é que àquilo se poderia chamar escola, era um local que só tinha uma parede de um lado e, do outro, para segurar o telhado, estavam apenas dois pilares. Ficava no monte do Foro, perto da herdade da Laje. A senhora que dava as aulas não era professora oficial e apenas ensinava a ler e a escrever. Ninguém podia ir assim fazer exame. Mas, de qualquer forma era melhor do que nada. Pagava-se então cinco escudos por mês, sendo que o meu pai ganhava, diariamente, sete escudos e cinquenta centavos, com que tinha de sustentar a família. Ia a meio do segundo mês quando a “propina” aumentou para seis escudos, pelo que a minha mãe tirou-me das aulas.”

Então não chegou verdadeiramente a aprender coisa de jeito…

“Só mais tarde, já em adulto, é que aprendi a ler e a escrever, primeiro com o sr. Francisco Santos e depois com o sr. Mendonça. Também não eram professores, mas adquiri os conhecimentos suficientes para fazer o exame da 4ª classe. Foi meu examinador o sr. Professor Jaime Martins.”

Mas voltemos à sua infância:

“Com pouco mais de oito anos comecei a guardar gado na Quinta de Paiva. Pagavam-me dez tostões por dia e de comer. Fiz isto até aos onze anos. Tendo deixado estas funções, iniciei-me nas fainas agrícolas, trabalhando no que calhava, incluindo charruar com uma parelha, constituída por uma mula e uma burra. Passados uns três anos fui aprender a padeiro, com um tio meu chamado Luís da Venda, ali na Fidalga. Mas não gostei do ofício e regressei aos trabalhos do campo. Já então, com dezasseis ou dezassete anos, ganhava a mesma jorna que os homens. Mais ou menos por esta altura ia para o trabalho montado num burro que tinha mau feitio e não gostava de dar cavalagem. Então, de vez em quando, atirava-me ao chão. Só numa das viagens despejou-me quatro vezes.”

E foi sendo esta a sua actividade pela vida fora?

“Não. Perto dos meus trinta anos tive um grave problema na coluna, de que nunca mais recuperei. Por esse motivo fui forçado a deixar o trabalho no campo e comecei a vender produtos hortícolas, galináceos e caça no mercado municipal. Mantive-me por ali até 1974 ou 1975. Tinha então 42 ou 43 anos. Nessa altura tive de me reformar por incapacidade física.

E ficou por cá?

“Não. Fui para o Vale de Santarém tomar conta de um matadouro, controlando a entrada e a saída dos animais. Passado cerca de um ano a empresa faliu. Com autorização de um dos sócios fiquei a viver nuns anexos e tive de pensar em governar a vida, uma vez que a reforma era muito pequena. Então, resolvi criar animais: porcos, bezerros e animais de penas, que ia vender ao mercado do Cartaxo. E foi à volta dos meus setenta anos que regressei à base, indo morar para uma casa arrendada no Terreiro das Pinas.”





Mas no meio de toda esta azáfama, ainda teve tempo para o casamento.

“Na minha juventude tive vários namoricos mas sem consequências de maior. Só quando estava na ternura dos quarenta é que aconteceu o namoro a sério. Vendia nessa altura no mercado em Montemor e a Madalena era minha freguesa. Tinha menos dez anos do que eu mas deu-se a faísca. Primeiro juntámo-nos e mais tarde casámos oficialmente.”

Hoje estão os dois no Abrigo há poucos meses. Como passam os dias?

“Não há nada como a nossa casa, mas com o meu estado de saúde a agravar-se, tivemos de tomar esta decisão. Mas devo confessar que somos bem tratados e que não temos nada a apontar em desabono. É claro que é muita gente e cada qual com o seu feitio, mas tudo isso vai sendo ultrapassado.”

E como preenchem os dias?

“Quando o tempo permite damos os nossos passeios matinais na zona exterior do Abrigo e, depois, vamos ao ginásio, passeamos com as excursões aqui organizadas, jogamos ao bingo a feijões, vimos televisão, conversamos e já temos assistido, na Biblioteca Municipal, às “Festas dos Contos”, onde até me convenceram a contar histórias, anedotas ou outras curiosidades.”

Quem sabe se um dia destes não vão também integrar-se no Coral ou numa das outras manifestações culturais e recreativas que por aqui se vão realizando. E as marchas populares já estão à porta …