terça-feira, 17 de setembro de 2019

OS NOSSOS UTENTES


MANUELA DA CONCEIÇÃO MESTRE


            Dona de uma sensibilidade e lucidez notáveis, a nossa entrevistada deste mês ainda hoje sente frustração por não ter atingido na vida um patamar que estava perfeitamente ao seu alcance. Vamos conhecer a história da D. Manuela:

             “Nasci no dia 8 de Abril de 1937, em Vale de Açor, freguesia de Alcaria Ruiva, concelho de Mértola e só vim fixar-me em Montemor quando casei, em 1972. O meu pai tinha uma carrocinha com que ia comprar ao mercado de Beja todo o tipo de hortaliças, frutas e legumes, que depois ia vender pelos montes próximos. A vida não era fácil, mas conseguiu criar sete filhos, dos quais eu sou a mais velha, sem que alguma vez faltasse a comida na mesa. Muitas vezes, e dada a miséria que na altura grassava pelo Alentejo, as clientes nem tinham dinheiro para pagar as compras. Então, entregavam-lhe em pagamento os ovos das suas galinhas ou a própria criação, que o meu pai ia vender ao mercado de Beja ou, no caso dos ovos, a pastelarias que sabiam ser produtos de qualidade.”

            E quantos dos irmãos foram à Escola ?
             “Apesar de sermos pobres, todos nós frequentámos a escola e concluímos a 4ª classe. O meu pai fazia questão disso. Eu entrei para uma escola particular aos 6 anos e quando chegou a altura de me ir matricular na escola oficial, a professora viu que eu já tinha mais conhecimentos e colocou-me logo na 3ª classe. E com 9 anos terminei a instrução primária.”

            E ficou por aí em termos escolares?
             “No imediato, sim. Livre da obrigação escolar, fiquei a tomar conta dos meus irmãos mais novos, mas isso também não impediu que, ainda com nove anos, fosse mondar. E a partir daí foi sempre a trabalhar no campo. Até aos 19 anos fiz vários tipos de trabalhos, incluindo ceifas em empreitadas que o meu pai tomava. Aquilo era trabalhar à bruta, até cair para o lado.”

            Estou mesmo a adivinhar que nessa altura algo mudou…
             “Completados os 19 anos tirei o Curso de Regente Escolar, em Beja. Passei por vários concelhos: Almodôvar, Odemira e em Mértola, mais concretamente em Corte Gafo de Baixo, onde a escola possuía uma pequena habitação para a professora. Primeiramente estive como eventual, com contratos anuais provisórios e que eram renovados anualmente, se bem que no final de cada ano o lugar nunca estava certo. Mais tarde passei a efectiva e, aí, já o lugar estava garantido. Assim se passaram sete anos.”

            Algo então aconteceu de importante na sua vida …
             “Por esta altura comecei a namorar o que viria a ser o meu marido. Os meus pais entretanto tinha ido viver para a Amadora, onde construíram uma casa e se fixaram definitivamente. E eu fiquei, com uma irmã, no lugar onde tinha já um emprego fixo. Mas o meu namorado não queria que eu ficasse lá sem os meus pais e forçou-me a deixar o ensino e a deslocar-me para o pé deles. Foi uma tremenda asneira, mas diversas circunstâncias para isso contribuíram. Mas não desisti de me valorizar. Na Amadora e em Lisboa estive empregada em vários escritórios e tirei o Curso de Contabilidade.”

            Foi sempre lutando para se valorizar …
             “Cerca de cinco anos depois, tive conhecimento de que abrira um concurso na Câmara Municipal de Lisboa para dactilógrafa, que era então o primeiro degrau de uma possível carreira. Concorri, fui admitida e fiquei lá a trabalhar uns 5 ou 6 anos. Mas, mesmo assim, enquanto aqui estive consegui tirar, em dois anos, o antigo 5º ano dos liceus. Este passo permitia-me, inclusivamente, candidatar-me a outros concursos internos.”

            Mas, de novo, algo se passou que não lhe permitiu atingir o que pretendia?
             “Infelizmente, é verdade. O meu namorado mais uma vez me cortou as pernas em termos profissionais, acenando-me com a promessa de casamento. Pedi a exoneração, tendo dado assim o primeiro passo para a destruição dos meus sonhos. Primeiro juntámo-nos e depois, em 20 de Janeiro de 1972, casámo-nos e viemos morar para Montemor. E então, como primeira medida, o meu marido não me deixou encontrar emprego.”

            Ficou, naturalmente, desiludida …
             “Comecei a concluir que tinha sido enganada desde o princípio. Com a ingenuidade de quem nunca até então tinha tido um namorado, nem coisa que se assemelhasse, parece que fiquei embasbacada. Enganei-me redondamente. Para além de me ter impedido de seguir um caminho que gostaria de ter percorrido, fez de mim, literalmente, uma escrava. O meu marido tinha um feitio irascível e cedo começou a ser violento, tanto para mim como para os nossos filhos. Passámos muitas dificuldades porque ele esbanjava tudo o que ganhava em bebida e mulheres. A violência a que estávamos sujeitos era uma constante. Nem quero recordar os dias amargos que passei com os meus filhos. Punha-nos frequentemente na rua, até que um dia saímos mesmo. Ainda hoje passo o tempo a pensar o que foi e o que poderia ter sido a minha vida.”

            Qual era a actividade profissional do seu marido?
             “Era negociante de palhas, carvões, estrumes e outros materiais. Quando os filhos ainda trabalhavam com o pai, antes deste os ter posto fora de casa, chegaram a ter quatro camionetas. Mas o José não só não pagava aos filhos como gastava tudo na boémia. E eu trabalhava como uma louca, de noite e de dia. Chegámos a ter mais de quinhentos porcos, além de bezerros e ovelhas. E era apenas eu que tratava dos animais. Na altura em que as porcas pariam, chegava a ter de ficar com delas durante a noite para que não molestassem as crias. Isto durante anos. O meu marido nunca me dava uma ajuda e ainda me batia a mim e aos rapazes. Era um inferno que ainda hoje me martiriza a memória.”

            Quer dizer o nome do seu marido?
             “Com certeza. Chamava-se José Manuel Prates e faleceu em Março de 2018. Estávamos divorciados desde 2005.

            Obrigado, D. Manuela, por nos ter aberto as portas do seu coração. Esperamos que encontre aqui no Abrigo a paz que lhe faltou durante parte da sua vida.