quarta-feira, 19 de julho de 2017

OS NOSSOS UTENTES

FILIPE LUÍS PALMA

“A minha vida não tem nada de interessante que valha a pena contar e, quanto a confissões, já fiz as que tinha a fazer”. Foi assim que se iniciou a nossa conversa deste mês com o sr. Filipe Luís Palma. Mas, palavra puxa palavra, ainda nos foi contando alguns pormenores da sua história:


“Sou natural de Ferreira do Alentejo, onde nasci vai fazer 80 anos dentro de poucos meses. Eu era um dos mais novos de 11 irmãos. Alguns de nós andaram à escola e eu ainda fiz o exame da 4ª classe da instrução primária que, para o tempo, já era muito bom. Mas logo que terminei os estudos comecei a dar serventia na construção civil. E foi a carreira que segui até ir para a tropa”.

Onde lhe calhou ir assentar praça?

“Em Beja, onde me mantive durante dezasseis meses. Ao fim deste tempo fui desmobilizado e resolvi ir para Lisboa trabalhar nas obras. Passado relativamente pouco tempo, e quando eu já estava convencido que me livrara definitivamente da tropa, fui surpreendido com nova chamada para me apresentar no quartel em Beja. E pouco tempo depois, mais precisamente no dia 28 de Junho de 1961, embarquei para Angola, a bordo do Navio "Vera Cruz", quando o conflito estava em brasa. E eu, que era incapaz de matar ou fazer mal a quem quer que fosse, vi-me metido naquela balbúrdia. Porém, e devido a uma doença que me surgiu na vista direita, ao fim de seis meses fui recambiado para Portugal para ser internado no Hospital da Estrela. Dali mandaram-me para o quartel na Calçada da Ajuda de onde, passado pouco mais de um mês, me mandaram embora definitivamente.”

E, então, teve de dar novo rumo à sua vida …

“Regressei à minha casa em Ferreira do Alentejo e um amigo nosso, sabendo que eu tinha estado em Angola e actualmente estava desempregado, perguntou-me se eu queria concorrer para guarda-rios. Aproveitei a oportunidade, fiz um curso em Setúbal e passei no exame final, tendo ficado classificado em 5º lugar entre mais de uma centena de candidatos.”

E começou assim uma carreira que só terminaria na reforma…

“Estava destinado a ir para Grândola, mas acabei por ser colocado em S. Cristóvão. Foi-me destinado um curso de água que começava perto da Gamela e ia até à ribeira de Vale Roque. A minha missão era evitar a pesca ilegal mas, sobretudo, não permitir a extracção de areias, a construção de obras e a execução de furos sem a necessária autorização. Por aqui me mantive perto de vinte anos. Dali passei para a zona de Arraiolos, onde estive uns quatro anos após os quais regressei a S. Cristóvão.”

Mas ainda não se referiu à sua vida amorosa…

“Então vamos lá a essa parte. Ainda em Ferreira do Alentejo tive vários namoricos que não deram em nada. Porém, quando fui para S. Cristóvão, portanto ainda solteiro, fui para uma pensão, ou mais propriamente para uma casa particular, onde comecei a namorar a irmã da proprietária. E foi exactamente com ela que acabei por casar. Chamava-se Joaquina Carraça Marquito, infelizmente já falecida há mais ou menos treze anos. Do casamento não nasceram filhos.”

Pronto. Esclarecida essa parte o que aconteceu depois do regresso a S. Cristóvão?

“Já casado, tinha comprado nesta freguesia uma casa onde vivíamos. Mas, algum tempo depois fui colocado em Montemor, onde trabalhei com outro guarda-rios chamado José Abrantes. Então, vendi a minha casa de S. Cristóvão e, com muito sacrifício, comprei outra aqui na Rua de Lisboa, onde ainda moro, infelizmente já sozinho porque a minha mulher, como já disse, faleceu há uns anos.”

O que o decidiu vir para o Abrigo para beneficiar do “Centro de Dia”?

A solidão e a doença fizeram-me, há uns meses, dar este passo de que, aliás, não estou nada arrependido. Sem filhos que me pudessem valer, era a minha única hipótese. Estou agradecido a todos, mas quero aproveitar para deixar vincada a minha gratidão pela forma como fui sempre tratado em S. Cristóvão, cuja terra e o seu povo ainda hoje guardo no meu coração.”

Muitos anos, sr. Filipe, com essa vontade de viver.