terça-feira, 17 de dezembro de 2019

OS NOSSOS UTENTES


MANUEL DOMINGOS DA SILVA


                      Com o Natal à porta e a dois passos do novo ano, estivemos à conversa com o nosso Amigo e conhecido de há muitos anos sr. Manuel Domingos da Silva, com 83 outonos celebrados em Novembro passado.

                     “Nasci na Quinta da Terrinha, perto das Silveiras. Éramos três irmãos, dos quais eu era o do meio. O mais velho, o Virgílio, já faleceu e o mais novo, o Josué Nicolau, felizmente ainda está entre nós e vive em Grândola.”

                     Como foi a vossa infância?
                  “Felizmente que sem grandes problemas. O meu pai era hortelão no Vidigal, da família Reis Malta, ainda que antes tivesse aprendido e executado todos os trabalhos ligados à lavoura. Todos nós andámos à escola. Enquanto crianças, os dois mais velhos completaram a 3ª classe da instrução primária, e só já em adultos fizeram o exame da 4ª classe. Apenas o mais novo atingiu o mesmo grau ainda na idade escolar.”

                     E depois da escola?
                  “Com onze anos, morando já no Vidigal, iniciei-me a guardar porcos, como ajuda do meu pai. E depois foram as ovelhas e o gado vacum. Mais tarde, e como então se dizia, comecei na “trincha” dos bois, isto é, a trabalhar com eles. Tinha a meu cargo uma junta destes animais, com que charruava, lavrava e “arrojava” a terra, para que esta ficasse plana a fim de receber a semente do cereal.”

                     E qual foi, então a fase seguinte?
                   “Bem, como era de calcular, chegou a altura de ir “às sortes”, isto é, à inspecção militar. Lá fui, e no fim disseram-me que ficava “de espera” para verem se eu desenvolvia o físico. E, na verdade, no ano seguinte verificaram que eu tinha ganho mais dois quilos, pelo que fiquei apurado para todo o serviço militar.”

                     E em que unidade foi cumprir essa obrigação?
                     “Espere, porque a história ainda não terminou. Quando chegou o dia em que se ia à Câmara saber a data e a localidade onde cada rapaz ia assentar praça, soube que tinha ficado na situação a que se chamava “livre aos editais”. Só não me livrei, claro está, de pagar durante vários anos a taxa militar, que era devida por quem, na inspecção, tinha ficado livre de ir à tropa.

                     E depois?
                     “Ainda continuei a trabalhar no Vidigal mas, a partir daí, a executar os restantes serviços do campo: ceifar, gadanhar, varejar, tirar cortiça e, enfim, tudo o resto que compete à arte.”

                     Ainda não nos falou do seu lado romântico e namoradeiro…
                     “Na idade própria tive os meus namoricos, normalmente arranjados nas folgas do trabalho ou nos muitos bailes que havia com frequência nos montes próximos. E foi assim que, com 27 anos, casei com a Rosalina Maria Nabo, com quem, graças a Deus, ainda vivo e sou feliz. Temos apenas uma filha – a Guida – e um neto – o João Carlos.”

                     E ficaram a residir também no Vidigal?
                    “Não. Após o casamento fomos residir para uma casita da herdade de Casa Branca, da mesma família Reis Malta. Estivemos lá cerca de dois anos. Depois passámos para o monte do Reguinguete, junto à Adua. E por aí fomos trabalhando os dois nos serviços agrícolas. Passados mais dois anos transferimo-nos para o monte da Cabouqueira, já mais perto de Montemor. Aqui cumprimos mais uma vez os habituais dois anos e nasceu a Margarida. Passámos então para a Courela do Teias, aqui já durante quatro anos. Finalmente chegámos mesmo a Montemor propriamente dito, ao Bairro da Quinta de D. Francisco, onde ainda residimos. Todas estas mudanças tinham a ver com o facto de termos de ir procurando os locais onde havia trabalho. Estive ainda a trabalhar na Cooperativa Agrícola “Pedras Alvas“ durante cerca de 17 anos.

                     E o que o levou a solicitar a ajuda do Abrigo?
                 “Tive um enfarte e tenho problemas a nível pulmonar, que me obriga cuidados especiais e à aplicação frequente de oxigénio. Estive internado no Hospital de Évora, após o que entrei no Lar de Idosos dos Foros de Vale Figueira onde me mantive durante dois anos. Porém, em Agosto passado surgiu a oportunidade de entrar no “Centro de Dia” aqui do Abrigo e eu aproveitei de imediato.

                     Já no período das despedidas, o Amigo Manuel revelou-nos que nas suas horas vagas também é poeta. E dispôs-se a dizer-nos umas décimas, subordinadas a mote. Leiam, por favor:

Mote
                                                               Procurei a paz no mundo,
                                                               Tentei mas não fui capaz
                                                               Porque os interesses do Homem
                                                               São mais fortes do que a Paz.

               I                                                                              III
Segundo se ouve dizer,                                              As guerras eliminadas
As guerras são mesmo assim,                                   E o terrorismo abatido,
Antes de umas terem fim                                           O vandalismo detido
Já outras estão a nascer.                                           E outras arestas limadas,           
Estamos todos a sofrer                                              Estas medidas tomadas
Com este terror profundo,                                         Talvez se evitasse a fome.
Destrói-se mais num segundo                                   Bem sei que o mundo é enorme
Que se faz paz num ano inteiro.                                Mas conquistava-se a paz
Já disse e sou verdadeiro:                                         Deixar-se os ódios p´ra trás
Procurei a paz no mundo.                                       Porque o interesse é do Homem.

             II                                                                               IV

Se houvesse alguém com poder,                                Num cemitério eu já vi,
Ou varinha de condão,                                              Onde passei certo dia,
Que tomasse a decisão                                              Um letreiro que dizia
Para tudo se entender,                                              Não há paz senão aqui.
O mundo passava a ter                                             Pois desta vez esmoreci,
Uma Vitória de Paz.                                                  Que nada me satisfaz.
Mas sei que ninguém o faz                                        Do Homem não ser capaz
Porque a luta continua,                                             De unir os povos na Terra
Procurei a paz na rua,                                              Porque os interesses da guerra
Tentei mas não fui capaz.                                       São mais fortes do que a Paz.


                     Parabéns ao seu talento e obrigado por nos ter contado alguns pormenores da sua vida. Muitas felicidades para toda a Família.

                     Queremos, agora, desejar um FELIZ NATAL e um NOVO ANO com saúde, a todos os Utentes do Abrigo, aos membros dos Corpos Sociais, Funcionários, Colaboradores, Voluntários e Leitores, agradecendo a estes a atenção e paciência que nos dispensaram ao longo do ano. Um obrigado sentido.


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

OS NOSSOS UTENTES


MARIA FELÍCIA HENRIQUES DA CRUZ





Nascida no dia 27 de Outubro de 1928, no seio de uma família com nove filhos, dos quais era a terceira mais velha, teve o Monte do Vidigal como berço.

“O meu pai era feitor da casa agrícola da família Malta e por aqui, por estes sítios, todos nós fomos abrindo os olhos para a vida. A nossa meninice praticamente não teve história digna de registo. Apenas de salientar, porque essa circunstância era pouco comum naquele tempo, que todos nós, com a excepção da filha mais velha, frequentámos a escola. E a mais velha só não foi porque no seu tempo a única hipótese era ainda a de ter de vir a Montemor. Além de ser longe, a minha mãe não a podia acompanhar por causa dos outros filhos.”

E viveram ali sempre? 

 “Não. Mais tarde deslocámo-nos para o Pomar das Almas, perto do Ferro da Agulha e também não muito longe do Vidigal. Ali morámos trinta e cinco anos.”

E como foi a sua juventude?

“A minha juventude foi breve porque aos 19 anos já estava casada com Jerónimo Veríssimo da Cruz, que era guarda-florestal, e que, para minha grande mágoa, faleceu fará agora em Dezembro quatro anos. Até lá trabalhei em casa. Ajudava na lida da casa, a tratar dos meus irmãos mais novos, a fazer o almece, o requeijão e os queijos. Quando casei ainda fui apanhar umas azeitonas mas, porque o meu marido não queria que eu trabalhasse no campo, limitei-me a gerir a casa e a tratar dos meus filhos.”

Quantos filhos teve?

“Dois. O mais velho já faleceu e o Carlos Manuel, com 52 anos, vive em Montemor e trabalha numa empresa perto de Lisboa. Deve ser o maior desgosto na vida, uma mãe ver morrer um filho. Não há nada que se compare.”

Voltando um pouco atrás, a família viveu toda no Pomar das Almas?

“Não, nessa altura a minha irmã Cristina e os meus irmãos mais novos, o Joaquim Albino e o João, foram morar, juntamente com a minha mãe, para uma casa na Rua dos Almocreves. Por esta altura já a Cristina, depois de ter sido Regente Escolar, era Ajudante do Tesoureiro da Fazenda Pública, o Joaquim Albino era Ajudante de Notário ali na rua 5 de Outubro e o João era mecânico na União Metalúrgica, de onde saiu para cumprir o serviço militar em Angola.

 E agora?

“Agora é ver passar os dias. Como vê, já estou limitada a uma cadeira de rodas e os desgostos vão-me consumindo aos poucos. Estou aqui no “Lar” há quatro anos. Não há nada que se equipare à nossa casa mas, fora dela, não podia ter escolhido alternativa melhor.

Gostei muito de falar com a Senhora. Melhoras e dias felizes.